sexta-feira, 18 de maio de 2012

Alan Moore, uma entrevista



Quase todo mundo que já leu uma HQ na vida concorda que Alan Moore é o melhor escritor do gênero na história do formato. Nos anos 80, ele foi o cara que praticamente sozinho fez adultos covardes admitirem gostar de gibis.

Um filho orgulhoso de Northampton, Inglaterra, que ainda vive perto da área onde cresceu, Moore amadureceu no começo da década de 80 na 2000 AD, a maior fábrica britânica de HQs de ficção científica e fantasia. Sua tira do Judge Dredd reimaginava o personagem com complexidades até então inexploradas. Sua criação, Halo Jones, foi o primeiro título nessa mídia que não retratava uma personagem feminina como uma supermulher peituda ou uma vítima.

Lá pela metade daquela década, Moore tinha revolucionado as HQs norte-americanas, primeiro fazendo o estagnado título da DC Monstro do Pântano pegar no tranco, transformando-o em um livro de busca existencial com preocupações ecológicas, e depois criando Watchmen, que foi a primeira HQ a realmente virar as tropas de super-heróis de ponta cabeça, e que acabou virando um filme abismalmente horrível no ano passado (o qual Moore, felizmente, desaprova).

Várias batalhas legais sobre propriedade e direitos sobre suas criações depois, Moore começou sua própria linha, que meio de brincadeira batizou de America’s Best Comics. De 1991 a 1996, ele produziu Do Inferno, sua própria versão linda e austera da história de Jack o Estripador. Disso também fizeram um filme de merda que Moore desaprova. A série A Liga Extraordinária começou em 1999 e virou um vasto mamute, que mistura histórias ficcionais e imaginadas com versões da nossa própria realidade. Outra vez: filme de merda, Moore desaprova. Em V de Vingança, Moore nos deu sua visão sobre o totalitarismo. E, novamente, filme de merda, Moore desaprovando.

Nos anos mais recentes, Moore produziu um romance complexo, A Voz do Fogo (1996), e um poema longo que trata de garotas que gostam de garotas e garotos que gostam de garotos, chamado The Mirror of Love (2004). Ele também publicou 25.000 Years of Erotic Freedom (2009), que examinava bem o que o título sugere, e Lost Girls (2006), que ele criou com Melinda Gebbie e que envolve Wendy do Peter Pan, Alice de Alice no País das Maravilhas, e Dorothy de O Mágico de Oz tendo muitas e muitas aventuras explícitas. Uma comédia total.

Atualmente Moore está trabalhando em Dodgem Logic, uma revista underground, em seu segundo romance, Jerusalem, e em um guia de magia. Na verdade, Moore é um mago praticante (e não é daqueles de coelho e cartola). Recentemente ligamos pra ele em sua casa em Northampton, e depois que ele nos assegurou que tinha uma xícara de chá em mãos e “quantas xícaras fossem necessárias pra fazer isso”, ficou claro que o Sr. Moore estava a fim de conversar conosco por bastante tempo sobre seu trabalho e suas ideias. E sim, foi um lance mágico.

Vice: A Dodgem Logic é um dos seus novos projetos. Por que não começamos falando sobre ela?
Alan Moore:
Dodgem Logic é uma colisão agressiva e aleatória de todo o tipo de coisas, de textos absurdistas de ficção feitos por Steve Aylett a novos pedaços de trabalho feitos por Savage Pencil e Kevin O’Neill. Esteticamente e em termos de formato ela veio de uma fascinação com a imprensa underground, que é uma cultura que data de antes do jornalismo impresso, mas que se tornou uma realidade popular nas décadas de 60 e 70 quando era uma parte vital da contracultura.

Quais eram as grandes entidades da imprensa underground no Reino Unido naquela época?
Os principais jornais eram o International Times e o Oz, que começou como uma revista de sátiras na Austrália e mudou pra cá, onde se tornou muito mais controverso e psicodélico. Eram tempos inebriantes, e foi a imprensa underground que agia como a cola que mantinha todo aquele elemento da sociedade junto e em contato um com o outro. Sem aqueles jornais, você teria apenas algumas pessoas que usavam roupas parecidas, tinham um gosto musical similar e usavam drogas parecidas. Você não teria um discurso político ou cultural coerente.

E a Dodgem Logic é pra ser uma continuação daquela tradição?
Nós decidimos fazer da Dodgem Logic uma revista de 48 páginas de cores vivas que tenta reinventar a noção de publicação independente para o século XXI. Estamos constantemente tentando deixá-la sem muito polimento. Não queríamos que ela fosse impressa em papel brilhante, porque isso poderia ser algo intimidante, poderia criar uma barreira entre a revista e seus leitores. Nós escolhemos esse visual mais bruto deliberadamente.

Tem várias partes dela que parecem colagens, o que faz com que ela pareça um híbrido entre um jornal underground e um fanzine.
Isso para mim é um elogio. Fanzines costumavam ser uma parte vital da cultura na qual eu cresci, dos fanzines de poesia nos anos 60 até os fanzines de HQ, ficção científica e fantasia dos anos 70 que produziram grande parte do talento que hoje domina os gêneros de HQ e ficção científica. Eles eram pequenas publicações incrivelmente produtivas e continham muita energia. Talvez isso tenha vindo do quão fácil era produzi-los. Não era tão fácil como seria fazê-los hoje em dia, mas agora toda a tecnologia está aqui para fazermos algo muito mais ambicioso do que jamais sonhamos que fosse possível, o ímpeto desapareceu. Talvez o grau de paixão que era colocado em algo como o Sniffin’ Glue ou quaisquer outros dos zines associados com o movimento punk exista de fato hoje em dia, só que online. Eu não sei. Posso parecer antiquado, mas eu ainda acredito que sempre haverá uma diferença entre algo que você olha na tela e algo que você pode segurar com as mãos.

Coisas físicas são melhores. Elas são mais reais.
Tem mais um sentido de um artefato que é parte de uma comunidade e parte de uma cultura.

Uma insatisfação generalizada com o governo e o declínio inexorável da civilização, assim como uma preocupação com a erosão das comunidades locais e da cultura, são temas recorrentes no seu trabalho de O Monstro do Pântano a Watchmen e além. Dodgem Logic parece mais uma maneira direta de lidar com essas questões.
Para falar a verdade, estou bem por fora das HQs. Eu estou continuando A Liga Extraordinária e estou desenhando algumas tiras para a Dodgem Logic, mas não me interesso pela indústria de HQs. Não me considero mais parte dela.

As coisas que você está abordando na Dodgem Logic poderiam ser abordadas em HQs?
Sim, poderiam ser abordadas no formato HQ. Porém, se eu fizesse isso, iria agradar meu público leitor de HQs, e não um mundo mais abrangente, que é onde essas questões precisam estar. Eu devo ressaltar que Dodgem Logic não é uma revista especificamente a respeito de Northampton. É apenas de onde eu e alguns contribuintes somos. Porém, nós olhamos a partir do ponto de vista de que Northampton é o centro exato do país, geográfica, econômica e politicamente. É um modelo bom o suficiente para representar uma cidade comum. As ruas principais estão sendo interditadas, as pessoas estão sofrendo abusos por parte da administração, e há lixo em todo lugar.

O que te levou a falar sobre essas questões tão diretamente agora? Não que faltassem problemas sociais nos anos 80.
Há uns dois anos um grupo de ex-criminosos juvenis entrou em contato comigo. Eles ti-nham trabalhado com música na área de Burrows em Northampton. Foi lá que eu nasci, cresci e onde a maior parte do meu próximo romance se passa. Eles tinham decidido fazer um filme sobre essa área negligenciada. Já que eles sabiam que eu tinha vindo de lá, me perguntaram se eu gostaria de ser entrevistado pro filme. Eles estavam trabalhando em parceria com o Central Museum em Northampton. Eu fui até lá, encontrei com eles, e nos demos muito bem. Eu queria continuar em contato com eles além da duração daquele projeto inicial, então fui todas as semanas para os escritórios de uma organização de ajuda à comunidade local chamada CASPA que estava fazendo um trabalho brilhante na área. Encontrei com os meninos e a tutora deles, que era uma jovem maravilhosa chamada Lucy, e eu inevitavelmente contei a eles sobre a cena local, a cultura underground e os clubes de arte que existiam enquanto eu tava crescendo e que fizeram tanto para me tornar a pessoa que sou hoje. Eu também contei a eles sobre como nós produzíamos revistas e fanzines e organizávamos leituras de poesia e coisas desse tipo. Tenho certeza que foi muito chato pra eles escutarem todas aquelas histórias, mas parece que as ideias colaram. Eles decidiram fazer uma revista sozinhos, para a qual eu contribuí. Tanto eu quanto os meninos queríamos falar sobre alguns dos verdadeiros problemas que afligiam a área, e como era uma vergonha que nós provavelmente não poderíamos tratar disso na revista porque ela era financiada pela Prefeitura. Nós discutimos a possibilidade de fazermos uma revista independente e decidimos tentar. As edições pareceram ser tão importantes para as pessoas daquela área que não podíamos abstê-las da comunidade local. Eu escrevi um artigo que chamava Os Incineradores. Era sobre um velho incinerador que estava na área de Burrows. Era pra lá, antigamente, que o lixo da cidade inteira ia.

Certo, o que é um detalhe esclarecedor.
Isso passou uma mensagem muita clara sobre o que as pessoas da administração pública pensavam das pessoas que moravam naquela área, e ainda que o incinerador tenha sido demolido na década de 30, a mensagem permanece aplicável à área hoje em dia. É para onde a administração pública manda as coisas com as quais não quer lidar: grupos de imigrantes, ex-presidiários e pessoas que estavam em asilos. Todas as pessoas problemáticas são enfiadas nessa vizinhança, muitas vezes em acomodações que foram condenadas pelos bombeiros. Coisas horríveis acontecem aqui todos os dias.

E a administração acabou bloqueando esse artigo?
Sim. Nos disseram que não podíamos publicar o artigo porque era crítico à administração, então Lucy e eu demos um jeito para que ela pudesse trabalhar só três dias da semana na CASPA e nos outros dois trabalhasse em uma revista independente comigo. A administração logo disse a ela que se ela fosse trabalhar dois dias da semana em uma revista independente ela não teria seu emprego na administração nos outros três dias, foi aí que decidi que isso já era demais e convidei a Lucy para trabalhar na Dodgem Logic por tempo integral. As questões que estamos tratando são importantes, e a revista oferece um lugar onde essas coisas podem ser discutidas. Nós não somos presos a nada e podemos dizer o que quisermos. Porém nós não queremos deixar as pessoas deprimidas, então temos tentado colocar o máximo de coisas lá que sejam verdadeiramente divertidas, assim como as coisas sociais e políticas. Essas são estratégias para ajudar as pessoas a passarem por tempos difíceis—dar a elas informação de que elas precisam, mas também dar algo que as anime.

É uma boa causa.
Eu não fiz muita coisa além de passar pela área por muitos anos. Conhecer pessoas boas que moravam lá nessa situação podre foi o que me fez resolver que eu queria fazer alguma coisa com foco naquela área. Burrows está no topo dos 2% de escassez no Reino Unido. Existem áreas iguais por todo o país, mas elas são varridas pra baixo do tapete. Eu também sinto uma ligação emocional com essa área, que eu sempre tive, e vi uma oportunidade de produzir algo lindo e útil sobre aquele ambiente e ao mesmo tempo criar um modelo para outras áreas semelhantes.

No passado você defendeu anarquia tanto no seu trabalho quanto na sua vida pessoal. Essa seria sua resposta aos problemas sociais discutidos na Dodgem Logic?
Bem, na verdade, para a segunda edição eu escreverei um artigo introduzindo a anarquia e explicando como ela poderia ser aplicada de maneira prática na nossa situação atual. Então sim. Uma das coisas para a qual eu estarei voltando minha atenção é o princípio da loteria ateniense. Isso basicamente dita que uma questão que precisa ser resolvida em nível nacional ou administrativo, você aponta um júri por loteria. Eles podem vir de qualquer lugar de dentro da cultura e são escolhidos de maneira completamente aleatória. Os prós e os contras do caso são então apresentados para o júri, eles ouvem, debatem e votam. Após a decisão, eles não fazem mais parte do júri. Eles voltam à sociedade, e para a próxima questão outro júri é escolhido. O sistema parece, para mim, se aproximar de algo como a democracia, que é algo que nós não temos nesse momento. A palavra “democracia” vem de “demos”, o povo, e “cratos”, mandar—“o povo manda”. Ela não diz nada a respeito de representantes do povo eleitos que governam, que é o sistema que temos no momento. Mudando para algo próximo disso, iríamos criar um sistema livre dos muitos abusos do nosso modelo atual de governo. É bem difícil comprar o apoio do povo se você não sabe quem são as pessoas que você deveria estar amaciando. Também seria difícil para o corpo dominante temporário agir em interesse próprio, já que faria mais sentido para eles agirem no interesse da sociedade para a qual eles estariam retornando.

Isso é interessante. Tem elementos de anarquia e democracia.
Sim, isso enquadraria o círculo entre as ideias de anarquia e governo. Minha definição de anarquia é a grega: sem líderes. É difícil pensar em uma sociedade ordenada que se conforme a esse ideal, mas com a loteria ateniense você não teria líderes, você teria indivíduos tomando decisões balanceadas. Seria necessária uma quantidade enorme de mudança constitucional, mas eu gosto de colocar a ideia no mundo para que se torne uma possibilidade e algo a ser discutido. Nossa forma de governo atual claramente não está funcionando, e não dá para continuar tentando remendar um modelo que é inerentemente fracassado. Talvez seja a hora de termos um novo modelo, em vez de colocar remendos no radiador do velho modelo de Ford Bigode que chegou ao fim de sua vida útil.

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