segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Lênin, por H. G. Wells

O britânico H.G.Wells (1866-1946) já tinha publicado seus famosos romances A Guerra dos MundosA Ilha do Dr. Moreau e O Homem Invisível quando foi à Rússia, em outubro de 1920, e se encontrou com Vladimir Ilitch Lenin (1870-1924), o líder da revolução ocorrida no país três anos antes. Wells nunca foi marxista nem acreditava na chegada do socialismo ao poder pela via revolucionária. Sim, era socialista, mas um socialista utópico.

No entanto, ganha visível simpatia e admiração intelectual por Lenin nesse encontro que um amigo em comum, o também escritor Máximo Gorki (1868-1936), tornou possível. Wells chega ressabiado, cheio de críticas ao que viu no país até ali e cético com o futuro da União Soviética, mas nada foi capaz de causar tensão entre os dois: o papo flui de maneira agradável até o fim. Era a segunda vez que Wells visitava a Rússia. Ainda iria lá mais uma vez em 1934, quando entrevistou Stalin, a quem também admirou, mas achou “rígido demais”.
A entrevista foi publicada no The Sunday Express (edição de domingo do Daily Express), entre vários artigos que Wells escreveu sobre a viagem. No ano seguinte, saiu em livro, com o título Russia In the Shadows (Rússia nas Sombras). A conversa com Lenin, que traduzi e transcrevo aqui quase na totalidade, ocupa o penúltimo capítulo do livro. A edição original pode ser encontrada online, em inglês. É uma narrativa fascinante, rica em descrições e muito saborosa, que nada deixa a desejar ao “new journalism” que surgiria apenas 40 anos depois. Espero que desfrutem.
***

O Sonhador no Kremlin

Por H.G.Wells

Meu principal propósito ao ir de Petersburgo a Moscou era encontrar e conversar com Lenin. Eu estava muito curioso para vê-lo e estava disposto a ser hostil com ele. Encontrei uma personalidade totalmente diferente de tudo que eu esperava encontrar.

Lenin não é um escritor; seus trabalhos publicados não o retratam. Os pequenos panfletos e ensaios que circulam em Moscou com o seu nome, cheios de falsas ideias sobre a psicologia do trabalho no Ocidente e defensores obstinados da proposição impossível que é a profetizada revolução marxista que aconteceu na Rússia, mostram muito pouco da real mentalidade do Lenin que eu encontrei. De vez em quando há alguns momentos de inspirado brilhantismo, mas em geral estas publicações não mais que abordam as ideias e as frases do marxismo doutrinário. Pode ser que isso seja necessário. Talvez seja essa a única linguagem que o comunismo entenda; uma ruptura em um novo dialeto seria inquietante e desmoralizante. O comunismo de esquerda é a espinha dorsal da Rússia hoje; infelizmente é uma espinha dorsal sem partes flexíveis, uma espinha dorsal que não pode ser dobrada a não ser com extrema dificuldade e que deve ser dobrada mediante adulação e deferência.
Em Seattle!
Sob o brilhante sol de outubro, entre as folhas amarelas esvoaçantes, Moscou nos impressionou como sendo ao mesmo tempo mais relaxada e mais animada que Petersburgo. Há muito mais movimento de gente, mais comércio e um comparável número de droshkys (carruagens). Os mercados estão abertos. Não há a mesma ruína geral de ruas e casas. Há, isso é certo, muitos rastros dos desesperados enfrentamentos de rua dos princípios de 1918. Um dos domos da absurda catedral de São Basílio, exatamente do lado de fora do portão do Kremlin, estava amassado por um morteiro e ainda necessita conserto. Os bondes que encontramos não carregavam passageiros; estavam sendo usados para transportar comida e combustível. Neste aspecto Petersburgo parece melhor preparada do que Moscou.

As dez mil cruzes de Moscou ainda brilham à luz da tarde. Sobre um pináculo visível do Kremlin as águias imperiais estendem suas asas; o governo bolchevique tem estado muito ocupado ou muito indiferente para tirá-las dali. As igrejas estão abertas, as imagens de santos são uma indústria florescente, e os mendigos todavia cortejam a caridade nas portas. O famoso santuário milagroso da Madona Ibérica, do lado de fora da Porta do Salvador, estava particularmente cheio. Havia muitas mulheres do campo, incapazes de entrar na pequena capela, beijando as pedras do lado de fora.
Do lado oposto, em um painel de gesso colocado em frente a uma casa, está aquela agora célebre inscrição colocada por um dos primeiros governos revolucionários em Moscou: “A religião é o ópio do povo”. O efeito que a inscrição produz é enormemente reduzido pelo fato de que o povo na Rússia não pode ler.
Os arranjos prévios a meu encontro com Lenin foram tediosos e irritantes, mas no fim lá estava eu a caminho do Kremlin na companhia do Sr. Rothstein, uma velha figura dos círculos comunistas londrinos, e um camarada americano com uma câmera enorme que era também, suspeitei, um oficial do ministério das relações exteriores russo.
O Kremlin como eu lembrava em 1914 era um lugar muito aberto, tanto quanto o Castelo de Windsor, com peregrinos e turistas em grupos e casais passeando através dele. Mas agora é fechado e difícil de entrar. Houve uma grande confusão com passes e autorizações antes de que pudéssemos passar ainda pelos portões externos. E nós fomos checados e inspecionados em quatro ou cinco salas de guardas e sentinelas antes de sermos recebidos. Isto pode ser necessário para a segurança pessoal de Lenin, mas o coloca fora de alcance da Rússia e, mais grave talvez, se há de fato uma ditadura, isso põe a Rússia fora de seu alcance. Se as coisas são filtradas até ele, devem ser filtradas abaixo, e então podem vir muitas mudanças no processo.
Encontramos finalmente Lenin, uma pequena figura em uma grande mesa, numa sala bem iluminada com magnífica vista. Achei sua escrivaninha um tanto bagunçada. Sentei-me a um canto da mesa, e o homenzinho –seu pé mal tocava o chão quando ele se sentou na ponta da cadeira– virou-se para conversar comigo, colocando os braços ao redor e sobre uma pilha de papéis. Ele falava um inglês excelente, mas, pensei, era característico da atual condição das relações russas que o sr. Rothstein se metesse ocasionalmente na conversa, fazendo observações e oferecendo ajuda. Enquanto isso o americano começou a trabalhar com sua câmera, e, discreta mais persistentemente, tirava fotos. A conversa, entretanto, estava muito interessante para que isso pudesse ser um incômodo. Esquecemos os cliques bastante rápido.
Eu tinha vindo com a expectativa de discutir com um marxista doutrinário. Não encontrei nada parecido. Tinha ouvido falar que Lenin gostava de dar lições às pessoas; ele certamente não o fez nesta ocasião. Muito se falou de sua risada nas descrições, uma risada que poderia ser prazerosa a princípio e cínica ao final. Esta risada não apareceu. Sua testa me lembrou a de alguém –não pude lembrar quem, até que em uma outra tarde eu vi Sr. Arthur Balfour (ex-primeiro-ministro britânico) sentado e falando sob uma luz fraca. É exatamente a mesma abóbada, o crânio ligeiramente unilateral. Lenin tem uma agradável, mutável, face amorenada, com um vívido sorriso e o hábito (talvez por alguma dificuldade em enxergar) de apertar um olho quando pausa a conversação; ele não se parece muito com as fotografias que você conhece dele porque é uma dessas pessoas cuja mudança de expressão é mais importante que os rasgos; ele gesticulava um pouco com suas mãos sobre os papéis amontoados enquanto falava, e falava rapidamente, muito perspicaz sobre a sua matéria, sem nenhuma pose ou pretensão ou reserva, como um bom homem de ciências falaria.
Nossa conversa esteve alinhavada e unida por dois –como diria? –temas. Um, de mim para ele: “O que você acha que está fazendo da Rússia? Que tipo de Estado está tentando criar?” O outro, dele para mim: “Por que a revolução socialista não começa na Inglaterra? Por que vocês não trabalham pela revolução? Por que vocês não estão destruindo o capitalismo e estabelecendo o Estado Comunista?” Estes temas se entrelaçavam, afetavam um ao outro, iluminavam-se. O segundo trouxe de volta o primeiro: “Mas o que vocês estão fazendo da revolução socialista? Está sendo um sucesso?” E este de volta para o segundo: “Para ser um sucesso o mundo ocidental deve participar. Por que não o faz?”
Antes de 1918 todo o mundo marxista pensava na revolução socialista como um fim. Os trabalhadores do mundo tinham que se unir, derrotar o capitalismo e serem felizes no final. Mas em 1918 os comunistas, para sua própria surpresa, se encontravam no comando da Rússia e desafiados a produzir seu milênio. Eles tinham, na continuidade das condições de guerra, no bloqueio, etcétera, uma pretensa desculpa para o atraso na produção de uma nova e melhor ordem social, mas é claro que começam a se dar conta do tremendo despreparo que implicam os métodos marxistas de pensamento. Em uma centena de pontos –já apontei o dedo em um ou dois deles –eles não sabem o que fazer. Mas o comunista comum simplesmente perde o controle se você se arrisca a duvidar que tudo está sendo feito, sob o novo regime, precisamente da melhor e mais inteligente maneira. Ele é como uma dona de casa irritadiça que quer que você reconheça que tudo está em perfeita ordem no meio de uma ação de despejo. É como uma dessas agora esquecidas “suffragettes” (mulheres que lutaram pelo voto feminino) que costumavam nos prometer o paraíso na Terra tão logo escapássemos da tirania das “leis feitas por homens”. Lenin, por outro lado, cuja franqueza muitas vezes deixa seus discípulos sem fôlego, recentemente desnudou a última pretensão de que a revolução russa seja algo mais do que a inauguração de uma época de experimentação sem limites. “Aqueles que estão engajados na formidável tarefa de vencer o capitalismo”, ele escreveu, “devem estar preparados para tentar método após método até achar aquele cujas respostas atendam melhor a seu objetivo”.
Iniciamos nossa conversa com uma discussão sobre o futuro das grandes cidades sob o comunismo. Eu queria ver até onde Lenin estava acompanhando a morte das cidades na Rússia. A desolação de Petersburgo me trouxe a compreensão de algo que eu nunca tinha me dado conta antes: que toda a forma e a existência de uma cidade são determinadas pelo comércio e pelo mercado, e que a abolição deles torna nove entre dez edifícios, em uma cidade comum, direta ou indiretamente sem significado ou sem uso. “As cidades ficarão muito menores”, ele admitiu. “Elas serão diferentes. Sim, bastante diferentes”. O que, eu sugeri, implicaria em um enorme desafio. Isto significaria riscar todas as cidades existentes e substituí-las. As igrejas e os grandes edifícios de Petersburgo se tornariam então como os de Novgorod o Grande (cidade russa) ou como os templos de Paestum (Grécia). A maioria das cidades se dissolveria. Ele concordou, bastante alegremente. Acho que o confortou achar alguém que entendesse a necessária consequência do coletivismo, o que até mesmo muitos de sua própria gente não conseguiam. A Rússia tem que ser reconstruída inteiramente, tem que se tornar uma nova coisa…
E a indústria também tem que ser reconstruída inteiramente?
Eu me dei conta do que já está acontecendo na Rússia? Da eletrificação da Rússia?
Lenin, que, como um bom marxista ortodoxo, rejeita todos os “utópicos”, sucumbiu afinal a uma utopia, à utopia dos eletricistas. Ele aposta suas fichas em um esquema de desenvolvimento de grandes estações de energia na Rússia para atender todas as províncias com luz, transporte e energia industrial. Dois distritos experimentais já foram eletrificados, ele disse. Alguém pode imaginar um projeto mais corajoso em uma terra enorme e plana, de florestas e camponeses ignorantes, sem energia hidráulica, e com o comércio e a indústria em seu último suspiro? Projetos de eletrificação parecidos estão em desenvolvimento na Holanda e estão sendo discutidos na Inglaterra e, nestes centros densamente povoados e industrialmente desenvolvidos, pode-se concebê-los como exitosos, econômicos e totalmente benéficos. Mas sua aplicação na Rússia representa um ganho ainda maior sobre a imaginação construtiva. Eu não consigo imaginar nada disso acontecendo nesta bola de cristal turva da Rússia, mas este pequeno homem no Kremlin pode; ele vê as decadentes ferrovias substituídas por um novo transporte elétrico, vê novas estradas se estendendo sobre o país, vê um novo e feliz comunismo industrial recomeçando. Enquanto conversávamos ele quase me persuadiu a compartilhar de sua visão.
“E você fará tudo isso com os camponeses fixados em sua terra?”
Mas não somente as cidades serão reconstruídas; toda a agricultura também será.
“Mesmo agora,” disse Lenin, “toda a produção agrícola da Rússia não vem dos camponeses. Nós temos agricultura em larga escala em alguns lugares. O governo já controla grandes propriedades com trabalhadores no lugar de camponeses, onde as condições são favoráveis. Isso pode ser ampliado, primeiro para outra província, e então para outra. Os camponeses em outras províncias, egoístas e ignorantes, não saberão o que está acontecendo até chegar sua vez…”
Pode ser difícil derrotar o campesinato russo em massa; mas por partes não há dificuldade. À menção dos camponeses a cabeça de Lenin chegou perto da minha; seu jeito de falar se tornou confidencial. Como se todos os camponeses pudessem ouvi-lo.
Não é apenas a organização material da sociedade que você tem de construir, argumentei, mas a mentalidade de todo o povo. Os russos são, por hábito e tradição, negociantes e individualistas; suas almas devem ser remodeladas para este novo mundo ser conquistado. Lenin me perguntou o que eu tinha visto do trabalho educativo que está sendo feito. Elogiei algumas das coisas que vi. Ele assentiu e sorriu com prazer. Tem uma confiança ilimitada em seu trabalho.
“Mas são apenas esboços e começos”, eu disse.
“Em dez anos volte e veja o que nós fizemos na Rússia”, ele respondeu.
Em Lenin eu me dei conta de que o comunismo podia ser, a despeito de Marx, enormemente criativo. Após estes fanáticos chatos da guerra de classes que encontrei entre os comunistas, homens previsíveis tão estéreis quanto o sílex, após numerosas experiências com o orgulho treinado e vazio do devoto homem marxista, este impressionante homenzinho, com sua franca admissão da imensidade e complicação do projeto do comunismo e sua singela concentração sobre a concretização dele, foi muito revigorante. Ele pelo menos tem a visão de um mundo transformado a planejar e construir de novo.
Ele queria mais das minhas impressões sobre a Rússia. Eu lhe disse que achei que em muitos lugares, e mais particularmente na Comuna de Petersburgo, o comunismo estava se impondo muito forte e rapidamente, e destruindo antes de estar pronto para reconstruir. Eles destruíram o comércio antes que estivessem prontos para o racionamento; a organização cooperativa foi  destroçada em vez de ser utilizada, e coisas assim. Isso nos trouxe à nossa diferença essencial, à diferença entre o coletivista evolucionário e o marxista, à pergunta se a revolução é, afinal, necessária, se é necessário destruir um sistema econômico completamente antes que um novo possa começar. Eu acredito que através de uma intensa campanha educativa o sistema capitalista existente pode ser civilizadoem um sistema coletivista mundial; Lenin, por outro lado, se prendeu anos atrás aos dogmas marxistas da inevitável guerra de classes, à derrota da ordem capitalista como prelúdio para a reconstrução, à ditadura do proletariado e coisas do gênero. Ele tinha que argumentar, portanto, que o capitalismo moderno é incuravelmente predatório, perdulário e impossível de reeducar, e que até que ele seja destruído irá continuar a explorar a humanidade estupidamente e sem rumo, que lutará e se prevenirá contra qualquer administração de recursos naturais que seja para o bem geral, e que, porque é essencialmente uma disputa, inevitavelmente fará guerras.
Eu era, admito, um osso duro de roer. De repente, ele sacou o novo livro de Chiozza Money, The Triumph of Nationalisation, que tinha evidentemente lido com muito cuidado. “Veja, se você começa a ter um bom trabalho de organização coletiva com interesse público, os capitalistas destroem de novo. Eles aniquilaram seus estaleiros nacionais; eles não irão deixar vocês trabalharem seu carvão economicamente”. Ele deu um tapinha sobre o livro. “Está tudo aqui”.
E contra o meu argumento de que as guerras vieram do imperialismo nacionalista e não da organizacão capitalista da sociedade ele saiu-se com esta: “Mas o que você pensa do novo imperialismo republicano que vem até nós da América?”
Aqui o Sr. Rothstein interveio em russo com uma objeção a que Lenin não deu importância.
E a despeito da súplica do Sr. Rothstein por reserva diplomática, Lenin continuou a explicar os projetos com os quais pelo menos um americano procurava deslumbrar a imaginação de Moscou. A assistência econômica para a Rússia e o reconhecimento do governo bolchevique. Uma aliança defensiva contra a intervenção japonesa na Sibéria. Uma estação naval na costa da Ásia, e arrendamentos a longo prazo, por 50 ou 60 anos, dos recursos naturais do Kamchatka e possivelmente de outras largas regiões na Rússia asiática. Bem, eu acho que isso seria para a paz? Não seria nada mais que o começo de um novo conflito mundial? O que achariam os imperialistas britânicos deste tipo de coisa?
Sempre, ele insistiu, o capitalismo compete e disputa. É a antítese da ação coletiva. Não pode evoluir para a unidade social ou mundial.
Mas alguma potência industrial poderia vir e ajudar a Rússia, eu disse. Ela não pode se reconstruir agora sem essa ajuda…
Nossos múltiplos argumentos findaram inconclusivamente. Nos despedimos de forma amistosa, e eu e meu colega fomos colocados para fora do Kremlin barreira após barreira, da mesma maneira como entramos.
por Cynara Menezes
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Stalin, por H. G. Wells

Entrevista lendária e histórica realizada pelo escritor, gênio e visionário H.G.Wells(1866-1946) com Josef Stálin. Era 1934 e Wells estava em visita à União Soviética. A entrevista aconteceu no dia 23 de julho e durou das 16h às 18:50h. A conversa foi anotada por Konstantin Oumansky - Comissariado do Exterior da URSS.

— Wells: Fico-lhe muito grato, senhor Stálin, por ter aceitado ver-me. Estive recentemente nos Estados Unidos. Mantive longa conversa com o Presidente Roosevelt e procurei saber quais eram suas idéias principais. Agora venho perguntar ao senhor o que está fazendo para mudar o mundo...

— Stálin: Na verdade, não muita coisa...

— Wells: Vagueio pelo mundo e como um homem comum, observo o que se passa em volta de mim.

— Stálin: Os homens públicos importantes, como o senhor, não são "homens comuns". Evidentemente, só a história pode determinar quão importante foi este ou aquele homem público. Em todo o caso, o senhor não vê o mundo como um "homem comum".

— Wells: Não pretendi ser modesto. Quis dizer que procuro ver o mundo com os olhos do homem comum, e não como um político de partido ou um estadista. A minha visita aos Estados Unidos me causou forte impressão. O velho mundo financeiro está desabando, e a vida econômica do país está sendo reorganizada sobre novas linhas. Lênin disse que era "preciso aprender a fazer negócios" aprendendo com os capitalistas. Hoje, os capitalistas tem de aprender com os senhores, devem captar o espírito do socialismo. Parece-me que nos Estados Unidos se está levando a cabo profunda reorganização - a criação de uma economia planificada, isto é, socialista.

O senhor e Roosevelt partiram de dois pontos de vista diferentes. Porém, não há uma relação de idéias, uma espécie de parentesco de idéias, entre Washington e Moscou?

Em Washington, impressionaram-me as mesmas coisas que se passam aqui: ampliação do aparelho de direção, criação de uma série de novos organismos reguladores do Estado, organização de um serviço público universal. Como os senhores, necessitam de habilidade na direção.

— Stálin: Os Estados Unidos buscam propósito diverso do que buscamos na U.R.S.S. O propósito que perseguem os norte-americanos surgiu das dificuldades econômicas, da crise econômica. Os norte-americanos pretendem desembaraçar-se das crises à base da atividade capitalista privada sem mudar a base econômica. Estão tratando de reduzir ao mínimo a ruína, as perdas causadas pelo sistema econômico existente. Aqui, entretanto, como o senhor sabe, foram criadas, em lugar do velho sistema econômico destruído, bases inteiramente diferentes; uma nova base econômica.

Embora os americanos citados pelo senhor atinjam parcialmente o seu propósito, quer dizer, reduzam ao mínimo tais dificuldades, não destruirão as raízes da anarquia que é inerente ao sistema capitalista.

Estão preservando o sistema econômico que deve conduzir inevitavelmente - e não pode senão conduzir - à anarquia na produção. De modo que, na melhor das hipóteses, o que atingirem será, não a reorganização da sociedade, não a abolição do velho sistema social que engendra a anarquia e as crises, mas a limitação de algumas de suas características negativas, certa restrição aos seus excessos. Subjetivamente, talvez os norte-americanos pensem que estão reorganizando a sociedade; objetivamente, entretanto, estão preservando as bases atuais dela. É por isso, objetivamente, que daí não resultará nenhuma reorganização da sociedade.

Nem haverá absolutamente economia planificada. Que é economia planificada? Quais são alguns dos seus atributos? A economia planificada cuida de abolir o desemprego. Suponhamos que seja possível, enquanto se preserva o sistema capitalista, reduzir o desemprego até certo mínimo. Porém, nenhum capitalista aceitará jamais a abolição total do desemprego, a abolição do exército de reserva dos desempregados, cuja razão de ser é fazer pressão no mercado do trabalho para garantir a oferta de trabalho barato. Aí tem o senhor uma das fendas da "economia planificada" da sociedade burguesa. E ainda mais, a economia planificada pressupõe aumento da produção naqueles ramos da indústria que produzem as mercadorias de que o povo mais necessita. Mas o senhor sabe que a expansão da produção, sob o capitalismo, se dá por motivos inteiramente diferentes; sabe que o capital flui para aqueles ramos da economia onde é mais alta a taxa de lucro. O senhor jamais conseguirá que um capitalista aceite uma taxa de lucro menor para satisfazer as necessidades do povo. Por isso, sem se desembaraçar dos capitalistas, sem se abolir o princípio da propriedade privada sobre os meios de produção, é impossível criar-se uma economia planificada.

— Wells: Estou de acordo com muita coisa que o senhor disse, porém gostaria de insistir sobre o fato de que se um país adota o princípio da economia planificada, se os governantes, de modo gradual, passo a passo, começam conseqüentemente a aplicar esse princípio, a oligarquia financeira será por fim abolida e se estabelecerá o socialismo, no sentido anglo-saxão da palavra. O efeito das idéias do New Deal de Roosevelt é muito poderoso, e elas são, na minha opinião, idéias socialistas. Parece-me que, em vez de se por em tensão o antagonismo entre os dois mundos, deveríamos, nas circunstâncias atuais, esforçarmo-nos por estabelecer uma linguagem comum para todas as forças construtivas.

— Stálin: Ao falar da impossibilidade de realizar os princípios da economia planificada enquanto se conserva a base econômica do sistema capitalista, não desejo, de forma alguma, diminuir as destacadas qualidades pessoais de Roosevelt, sua iniciativa, sua coragem e determinação. Indubitavelmente, Roosevelt se projeta como uma das figuras mais fortes entre todos os capitães do mundo capitalista contemporâneo. Por isso gostaria, ainda uma vez, de repisar que a minha convicção de que a economia planificada é impossível sob as condições do capitalismo, não significa que tenha dúvidas sobre a qualidade pessoal, o talento e a coragem do Presidente Roosevelt. Mas quando as circunstâncias são desfavoráveis, nem o capitão de maior talento pode atingir a meta a que o senhor se referiu.

Para começar, teoricamente não está excluída a possibilidade de se caminhar gradualmente, passo a passo, sob as condições do capitalismo, até a meta pelo senhor chamada socialismo no sentido anglo-saxão da palavra. Mas que "socialismo" será esse? Na melhor das hipóteses, será um freio aos representantes mais obstinados do lucro capitalista, certo reforçamento do princípio regulador na economia nacional. Tudo isso está muito bem. Porém, assim que Roosevelt, ou qualquer outro capitão do mundo contemporâneo burguês, comece a empreender algo de sério contra os fundamentos do capitalismo, sofrerá inevitavelmente séria derrota. Os bancos, as indústrias, as grandes empresas, as grandes fazendas, não estão nas mãos de Roosevelt. São todas propriedades privadas. As estradas de ferro, a marinha mercante, tudo isso pertence a proprietários privados. E, finalmente, o exército dos trabalhadores especializados os engenheiros, os técnicos, não estão tampouco sob o mando de Roosevelt, mas dos proprietários privados; todos trabalham para eles. Não devemos esquecer as funções do Estado, no mundo burguês. O Estado é uma instituição que organiza a defesa do país, organiza a manutenção da "ordem": é um aparelho para cobrar impostos. O Estado capitalista não se ocupa muito com a economia no sentido estrito da palavra; a economia não está nas mãos do Estado. Ao contrário, o estado é que está nas mãos da economia capitalista. Por isso, receio que, apesar de toda a sua energia e capacidade, Roosevelt não alcance a meta a que o senhor se refere,se essa é, em realidade, a sua meta. Talvez, no curso de várias gerações, seja possível aproximar-se um pouco dessa meta, porém pessoalmente considero que nem mesmo isso seja provável.

— Wells: Talvez eu creia mais fortemente que o senhor na interpretação econômica da política. As invenções e a ciência moderna puseram em movimento enormes forças dirigidas para a organização melhor, para o melhor funcionamento da comunidade, isto é, para o socialismo. A organização e a regulamentação da ação individual tornaram-se necessidades mecânicas, independentemente das teorias sociais.

Se principiássemos pelo controle estatal dos bancos e continuássemos com o controle dos transportes, das indústrias pesadas, da indústria em geral, do comércio etc., tal controle universal equivaleria à propriedade do Estado sobre todos os ramos da economia nacional. Este será o processo da socialização. Socialismo e individualismo não se opõem como o preto ao branco. Há muitos estados de permeio entre eles. Há o individualismo que roça no bandoleirismo, e há o espírito de disciplina e de organização que são equivalentes ao socialismo. A introdução da economia planificada depende, em grau considerável, dos organizadores da economia, dos técnicos, os quais, passo a passo, podem ser convertidos aos princípios socialistas de organização. E isso é da maior importância, porque a organização precede o socialismo. Sem organização, a idéia socialista não passa de mera idéia.

— Stálin: Não há, nem deve haver, contraste irreconciliável entre o indivíduo e a coletividade, entre os interesses individuais e os interesses da coletividade. Não deve haver tal contraste, porque o coletivismo, o socialismo, não nega e sim combina os interesses individuais com os interesses da coletividade.

O socialismo não pode se esquecer dos interesses individuais. Somente a sociedade socialista pode satisfazer completamente esses interesses pessoais. Ainda mais: só a sociedade socialista pode salvaguardar firmemente os interesses do indivíduo. Neste sentido, não há contraste irreconciliável entre "individualismo" e socialismo. Porém, podemos negar o contraste entre as classes, entre a classe dos proprietários, a classe dos capitalistas, e a classe dos trabalhadores, a classe dos proletários? De um lado, temos a classe dos proprietários, que é dona dos bancos, das fábricas, das minas, do transporte, das plantações nas colônias. Tais pessoas não vêem senão seus próprios interesses, sua ambição pelos lucros. Não se submetem à vontade da coletividade; esforçam-se, isso sim, por subordinar cada coletividade à sua vontade. De outro lado, temos a classe dos pobres, a classe explorada, a que não possui nem fábricas, nem usinas, nem bancos, a que é obrigada a vender sua força de trabalho aos capitalistas e que carece de oportunidades para satisfazer as suas necessidades mais elementares. Como se podem conciliar interesses tão opostos? Pelo que sei, Roosevelt não teve êxito em encontrar a senda da conciliação entre esses interesses. E é impossível, como já o demonstrou a experiência. Afinal, o senhor conhece a situação dos Estados Unidos melhor do que eu, que nunca estive lá e observo os assuntos norte-americanos sobretudo através do que se escreve sobre esse assunto. Porém tenho alguma experiência de luta pelo socialismo e esta experiência me diz que, se Roosevelt tentar satisfazer os interesses da classe proletária, à custa da classe capitalista, esta porá outro Presidente no lugar dele. Os capitalistas dirão: os Presidentes passam, porém nós permaneceremos; se esse ou aquele Presidente não defende os nossos interesses, encontraremos um outro. Pode o Presidente opor-se à vontade da classe capitalista?

— Wells: Oponho-me a essa classificação simplista da Humanidade em pobres e ricos. Evidentemente há uma categoria de pessoas que visa o lucro. Mas não são essas pessoas olhadas como obstáculos, tanto no Ocidente como aqui? Não há no Ocidente muita gente para quem o lucro não é um fim em si, gente que possui certa quantidade de recursos e que deseja inverter e obter lucros com as suas inversões, porém que não faz disso o seu objetivo principal? Para essa gente as inversões são uma inconveniência necessária. Não há grandes núcleos de engenheiros capazes e estudiosos, organizadores da economia, cujas atividades são estimuladas por alguma coisa mais que o lucro? Na minha opinião, há uma classe numerosa de pessoas capazes que admitem ser o sistema atual não-satisfatório e que estão destinadas a um grande papel na futura sociedade socialista. Durante os últimos anos tenho pensado muito na necessidade, tenho-me dedicado muito à tarefa de levar a cabo a propaganda em favor do socialismo e do cosmopolitismo entre amplos círculos de engenheiros, aviadores, elementos técnicos militares etc. É inútil aproximar-se desses círculos com a propaganda direta da luta de classes. Essas pessoas compreendem a situação em que se encontra o mundo, que se transforma num pântano sangrento, mas para tais pessoas o antagonismo primitivo da luta de classes é algo sem sentido.

— Stálin: O senhor se opõe à classificação simplista das pessoas em ricos e pobres. E claro que há as camadas médias, há a intelectualidade técnica a que o senhor se referiu e, entre elas, há pessoas muito boas e honradas. Entre elas há também pessoas desonestas e perversas, toda espécie de gente. Porém, antes de mais nada, a Humanidade está dividida em ricos e pobres, entre proprietários e explorados; e abstrair-se dessa divisão fundamental e do antagonismo entre pobres e ricos significa abstrair-se do fato fundamental. Não nego a existência de camadas intermediárias, que podem ficar do lado de uma ou de outra dessas duas classes em conflito, ou podem tomar posição neutra ou semineutra nessa luta. Todavia, repito, abstrair-se dessa divisão fundamental da sociedade e da luta fundamental entre as duas classes principais significa ignorar os fatos. Esta luta continua e continuará. O resultado dela será determinado pela classe proletária, a classe dos trabalhadores.

— Wells: Porém, não há muitas pessoas que, não sendo pobres, trabalham produtivamente?

— Stálin: Para começar, há pequenos proprietários de terras, artesãos, pequenos comerciantes, mas não são esses os que decidem da sorte de um país, e sim as massas trabalhadoras que produzem todas as coisas requeridas pela sociedade.

— Wells: Contudo há muitas classes diferentes de capitalistas. Há capitalistas que só pensam nos lucros; mas há também os que estão preparados para fazer sacrifícios. Tomemos o velho Morgan por exemplo: só pensou nos lucros; foi um parasita da sociedade. Acumulou riquezas simplesmente. Agora tomemos Rockfeller. É um organizador brilhante, tendo dado o exemplo de como organizar a produção de petróleo, exemplo esse digno de ser imitado. Ou tomemos Ford. É claro que Ford é egoísta: Porém, não é um organizador apaixonado da produção racionalizada, de quem os senhores tomaram lições?

Desejaria insistir no fato de que recentemente se deu importante mudança de opinião a respeito da U.R.S.S. nos países de língua inglesa. A razão da mudança está ligada, antes de mais nada, à posição do Japão e à situação da Alemanha. Mas há outras razões que não decorrem somente da política internacional. Há uma razão mais profunda: refiro-me ao reconhecimento, por muita gente, do fato de que o sistema baseado no lucro privado está desmoronando. Sob estas circunstâncias, parece-me que não devemos pôr em primeiro plano o antagonismo entre os dois mundos, e sim devemos nos esforçar para combinar todos os movimentos construtivos, todas as forças construtivas, na medida do possível. Parece-me que estou mais à esquerda do que o senhor, pois considero que o mundo está mais próximo do fim do velho sistema.

— Stálin: Quando falo dos capitalistas que se esforçam somente em obter lucros, somente em tornarem-se ricos, não quero dizer que sejam os últimos dos homens, incapazes de mais nada. Muitos deles, inegavelmente, possuem grande talento de organização que nem penso negar. Nós, o povo soviético, temos aprendido muito com os capitalistas. E Morgan, a quem o senhor descreveu de maneira tão desfavorável, foi sem dúvida um bom organizador, capaz. Porém, se o senhor se refere a pessoas que estejam preparadas para reconstruir o mundo, não poderá, para começar, encontrá-las nas fileiras daqueles que servem fielmente a causa dos lucros. Eles e nós estamos em campos opostos. O senhor mencionou Ford. Certamente que ele é um eficiente organizador da produção. Mas conhece o senhor a atitude dele para com a classe operária? Sabe o senhor quantos operários ele põe na rua? O capitalista está preso aos lucros, e força alguma no mundo poderá separá-lo deles. O capitalismo será liquidado, não pelos "organizadores" da produção, não pela intelectualidade técnica, e sim pela classe operária, uma vez que aquelas camadas não desempenham um papel independente. O engenheiro, o organizador da produção, não trabalha como gostaria, mas como lhe ordenam, no sentido de servir aos interesses dos patrões. Há exceções, é claro; há pessoas nessa camada média que se libertaram do ópio capitalista. A intelectualidade técnica pode, sob certas condições, fazer "milagres" e beneficiar altamente a Humanidade. Porém, pode também fazer-lhe muito mal. Nós, o povo soviético, temos experiência, e não pouca, sobre a intelectualidade técnica. Depois da Revolução de Outubro, certa parte da intelectualidade técnica se recusou a participar do trabalho de construir uma nova sociedade. Opuseram-se a esse trabalho de construção e o sabotaram. Fizemos o possível para atrair a intelectualidade técnica a este trabalho de construção; experimentamos vários caminhos. Não se passou pouco tempo para que a nossa intelectualidade técnica acedesse em apoiar o novo sistema.

Hoje, a melhor parte da intelectualidade técnica está nas primeiras fileiras dos construtores da sociedade socialista. Com esta experiência, estamos longe de subestimar o lado bom e o lado mau da intelectualidade técnica, e sabemos que uma parte pode causar o mal e a outra pode realizar "milagres". Contudo, as coisas seriam diferentes se fosse possível, de um só golpe, arrancar espiritualmente a intelectualidade técnica do mundo capitalista. Mas isso é utopia. Haverá muitos técnicos que se atreveriam a se desprender do mundo burguês e pôr-se a trabalhar para reconstruir a sociedade? Pensa o senhor que há muita gente dessa classe, digamos na Inglaterra ou na França? Não, há poucos que se desprenderiam voluntariamente dos seus patrões e começariam a reconstruir o mundo.

Além disso, podemos perder de vista o fato de que, para transformar o mundo, é necessário ter-se o poder político? Parece-me, Senhor Wells, que o senhor subestima enormemente a questão do poder político, que fica excluída da sua concepção. Que podem fazer os que, ainda que com as melhores intenções do mundo, não estão em condições de traçar o problema da tomada do poder e não têm esse poder em suas mãos? Quando muito, poderão ajudar à classe que toma o poder, porém não podem mudar o mundo. Isso só o pode fazer uma grande classe que tome o lugar da classe capitalista e venha a ser senhor soberano, como esta o era. Tal classe é a classe operária. Certamente o apoio da intelectualidade técnica deve ser aceito, e essa intelectualidade, por sua vez, deve receber ajuda, mas não se pense que ela representa papel histórico independente. A transformação do mundo é processo complicado e doloroso. Para esta grande tarefa precisa-se de uma grande classe. Para viagens longas, grandes barcos.

— Wells: Sim, mas para uma longa viagem é preciso um capitão e um navegador.

— Stálin: E certo, porém o que se requer em primeiro lugar, para uma viagem longa, é um grande barco. Que é um navegante sem um grande barco? Um homem ocioso.

— Wells: O grande barco é a Humanidade, não uma classe.

— Stálin: O senhor parte da presunção de que todos os homens são bons. Eu, entretanto, não posso esquecer que há muitos homens perversos. Não creio na bondade da burguesia.

— Wells: Recordo-me da situação da intelectualidade técnica há várias décadas. Naquele tempo, era numericamente pequena, porém havia muito a fazer, e cada engenheiro, técnico ou intelectual, encontrava a sua oportunidade. Por isso era a classe menos revolucionária. Agora, entretanto, há excedente de intelectuais técnicos e a mentalidade deles mudou profundamente. Os técnicos, que antigamente não faziam caso da linguagem revolucionária, estão agora muito interessados nela. Assisti recentemente a um banquete da Royal Society (Sociedade Real), a nossa maior sociedade científica inglesa.

O discurso do Presidente foi um discurso a favor da planificação social e da gestão científica. Há trinta anos atrás, não se poderia ter escutado algo semelhante. Hoje o homem que preside a Royal Society mantém pontos de vista revolucionários e insiste na reorganização científica da sociedade humana. As mentalidades mudam. A vossa propaganda de luta de classes não leva em conta estes fatos.

— Stálin: Sim, eu sei disso, e isso se explica pelo fato de a sociedade capitalista se achar agora num beco sem saída. Os capitalistas estão procurando. porém não podem encontrar uma saída deste impasse que seja compatível com a dignidade da sua classe, com os interesses da sua classe.

Poderiam, até certo ponto. sair da crise arrastando-se nas quatro patas porém não encontrarão uma porta que lhes permita sair de cabeça erguida. uma porta que não altere fundamentalmente os interesses do capitalismo. Amplos círculos da intelectualidade técnica bem que se dão conta disso. Grande parte dela está começando a compreender a vinculação dos seus interesses aos interesses da classe capaz de sair desse impasse.

— Wells: Senhor Stálin, melhor do que ninguém o senhor sabe algo sobre as revoluções, no lado prático. As massas levantam-se? Não é uma verdade estabelecida que todas as revoluções são feitas pelas minorias?

— Stálin: Para levar-se a cabo uma revolução é necessário uma minoria revolucionária dirigente, porém a mais inteligente, apaixonada e enérgica minoria seria impotente se não contasse com o apoio. pelo menos passivo, de milhões.

— Wells: Pelo menos passivo? Talvez subconsciente?

— Stálin: Digamos semi-instintivo e semi-consciente, mas sem o apoio de milhões de homens a minoria mais capaz será impotente.

— Wells: Tenho observado a propaganda comunista no Ocidente, e parece-me que, nas condições atuais, tal propaganda soa muito fora de moda, por ser uma propaganda insurrecional. A propaganda a favor da derrubada violenta do sistema social soava bem quando dirigida contra as tiranias. Mas, nas atuais condições, quando o sistema se desmorona de todas as maneiras seria preciso dar mais destaque à eficiência, à competência, à produtividade, do que à insurreição. Parece-me que.o tom insurrecional é antiquado. Do ponto de vista das pessoas de mentalidade construtiva a propaganda comunista no Ocidente é um obstáculo.

— Stálin: Para começar, o velho sistema se desmorona, está em decadência. Isso é certo, Porém também é certo que novos esforços se fazem, por outros métodos, por todos os meios, para proteger, para salvar este sistema agonizante. O senhor tira conclusão errônea de premissa certa, O senhor estabelece, corretamente, que o velho mundo se afunda. Mas o senhor está enganado pensando que se afunda por si mesmo. Não. A substituição de um sistema social por outro é processo revolucionário complexo e de longo fôlego. Não é simplesmente um processo espontâneo, e sim uma luta, um processo relacionado com o choque entre as classes. O capitalismo está em decadência, porém não deve ser comparado simplesmente com uma árvore que haja apodrecido tanto que virá ao chão com seu próprio peso. Não, a revolução, a substituição de um sistema social por outro, foi sempre uma luta, luta cruel e dolorosa, luta de vida e de morte. E cada vez que os representantes do novo mundo chegam ao poder têm de se defender contra as tentativas do velho mundo de restaurar pela força a ordem antiga; os representantes do novo mundo têm sempre de estar alerta, de estar preparados para repelir os ataques do velho mundo contra o sistema novo.

Sim, o senhor tem razão quando diz que o velho sistema social desmorona, porém não desmorona por si mesmo. Veja o fascismo, por exemplo. O fascismo é uma força reacionária que tenta preservar, por meio da violência, o velho mundo. Que farão os senhores com os fascistas? Discutirão com eles? Tratarão de convencê-los? Isso não teria, absolutamente, nenhum efeito. Os comunistas não idealizam, em absoluto, os métodos violentos, não querem, porém, ser apanhados de surpresa; não podem esperar que o velho regime se retire da cena, espontaneamente; vêem que o velho sistema se defende violentamente, e, por isso, dizem à classe operária: Preparem-se para responder com violência à violência; façam todo o possível para impedir que a ordem agonizante os esmague, não permitam que lhes algemem as mãos, estas mesmas mãos que demolirão o sistema velho. Como o senhor vê, os comunistas consideram a substituição de um sistema social por outro, não simplesmente como processo pacífico e espontâneo, e sim como processo complicado, longo e violento. Os comunistas não podem ignorar os fatos.

— Wells: Contudo, observe o que se está passando no mundo capitalista. Não é um simples colapso; é o estouro da violência reacionária que está degenerando em gangsterismo. E parece-me que, quando se chega ao conflito com a violência reacionária e não inteligente, podem os socialistas apelar para a lei e, em vez de considerar a polícia um inimigo, devem apoiá-la na luta contra os reacionários. Penso ser inútil trabalhar simplesmente com os rígidos métodos da insurreição do velho socialismo.

— Stálin: Os comunistas se baseiam na rica experiência histórica, a qual ensina que as classes caducas não abandonam voluntariamente o cenário histórico. Lembre-se da história da Inglaterra no século XVII. Não eram numerosos os que diziam que o velho sistema social estava apodrecido? Entretanto não foi necessário um Cromwell para esmagá-lo pela força?

— Wells: Cromwell agiu baseado na Constituição e em nome da ordem constitucional.

— Stálin: Em nome da Constituição recorreu à violência, decapitou o Rei, dissolveu o Parlamento, prendeu uns e decapitou outros!

Tome também o exemplo da nossa história. Não foi evidente, durante muito tempo, que o regime tzarista estava decaindo, que estava desmoronando? Mas, quanto sangue se teve de derramar para abatê-lo!

E a Revolução de Outubro? Eram pouco numerosas as pessoas que sabiam que nós, os bolcheviques, éramos os únicos a apontar o caminho certo? Não estava claro que o capitalismo russo achava-se em decadência? Contudo, o senhor sabe quão grande foi a resistência, quanto sangue se teve de derramar para defender a Revolução de Outubro de todos os seus inimigos internos e externos?

Ou tome a França do fim do século XVIII. Muito antes de 1789, era evidente a podridão do Poder Real, do feudalismo. Porém não se pôde evitar uma rebelião popular, um choque de classes. Por quê? Por que as classes que devem abandonar o cenário da história são as últimas a se convencerem de que seu papel terminou. É impossível convencê-las disso. Pensam que as fendas do decadente edifício da ordem antiga podem ser remendadas, que o vacilante edifício da ordem antiga pode ser restaurado e salvo. É por isso que as classes agonizantes tomam as armas e recorrem a todos os meios para salvar sua existência de classe dominante.

— Wells: Mas havia bastante advogados à frente da grande Revolução francesa.

— Stálin: Nega o senhor o papel da intelectualidade nos movimento revolucionários? Foi a grande Revolução francesa uma revolução de advogados, e não uma revolução popular, que alcançou a vitória levantando grandes massas do povo contra o feudalismo convertendo-s em chefes do Terceiro Estado? E por acaso atuaram os advogados existentes entre os líderes da grande Revolução francesa de acordo com as leis da ordem antiga? Não instituíram uma legalidade nova, a legalidade revolucionária burguesa?

A rica experiência da história ensina que até hoje nenhuma classe cedeu voluntariamente o lugar a outra. Não há tal precedente na história mundial. Os comunistas assimilaram essa experiência histórica. Os comunistas aplaudiriam a retirada voluntária da burguesia.

Mas tal processo é improvável, eis o que ensina a experiência. Por isso é que os comunistas querem estar preparados para o pior e concitam a classe operária a ser vigilante, a estar preparada para o combate. Quem deseja um capitão que se descuide da vigilância do seu exército, um capitão que não compreenda que o inimigo não se renderá, que deve ser esmagado? Tal capitão enganaria, trairia a classe operária. Por isso penso que o que ao senhor parece antiquado é, de fato, método revolucionário oportuno para a classe operária.

— Wells: Não nego que se tenha de empregar a força, porém penso que as formas de luta devem adaptar-se o mais estreitamente possível às oportunidades que oferecem as leis existentes, que devem ser defendidas dos ataques dos reacionários. Não há necessidade de desorganizar-se o velho sistema porque ele está se desorganizando, e bastante. Assim, parece-me que a rebelião contra a ordem, contra a lei, é coisa antiquada, fora de moda. Incidentalmente, exagerei de propósito, para apresentar mais claramente a verdade.

Posso formular o meu ponto de vista da seguinte maneira: primeiro, sou pela ordem; segundo, ataco o sistema atual naquilo em que não possa garantir a ordem; terceiro, penso que a propaganda das idéias da luta de classes é capaz de isolar do socialismo as pessoas instruídas de que ele necessita.

— Stálin: Para atingir um grande objetivo, um objetivo social importante, é necessário uma força principal, um baluarte, uma classe revolucionária. Depois, é necessário organizar-se a ajuda de uma força auxiliar para essa força principal; nesse caso, a força auxiliar é o Partido, ao qual pertencem as melhores forças da intelectualidade. Agora, o senhor fala de "círculos instruídos". Porém, que pessoas instruídas tem o senhor em mente? Não havia muitos homens instruídos ao lado da ordem antiga na Inglaterra do século XVII, na França em fins do século XVIII e na Rússia à época da Revolução de Outubro? A ordem antiga tinha a seu serviço muita gente de instrução elevada que defendeu tal estado de coisas, que se opôs à ordem nova. A educação é arma cujo efeito é determinado pelas mãos que a esgrimem. Está claro que o proletariado, o socialismo, necessita de gente altamente instruída, pois é evidente que não são os simplórios que poderão ajudar o proletariado a lutar pelo socialismo, a construir a nova sociedade. Eu não subestimo o papel da intelectualidade, ao contrário, reforço-o. A questão, entretanto, é sobre que espécie de intelectualidade estamos discutindo, porque há diversos tipos de intelectuais.

— Wells: Não pode haver revolução sem mudança radical no sistema de instrução pública. Basta assinalar dois exemplos: o da República alemã, que deixou intacto o velho sistema educacional e, por isso, nunca chegou a ser uma República; e o Partido Trabalhista britânico, a quem falta coragem para insistir na mudança radical do sistema de educação.

— Stálin: Essa é uma observação acertada. Permita-me agora rebater os seus três pontos de vista.

Primeiro: O principal para a revolução é a existência de um apoio social. Esse apoio é a classe operária.

Segundo: É indispensável uma força auxiliar a que os comunistas chamam Partido. Nele se incluem os trabalhadores intelectuais e os elementos da intelectualidade técnica que estão estreitamente vinculados à classe operária. A intelectualidade somente pode ser forte se se une à classe operária. Se se opõe a ela, anula-se.

Terceiro: E preciso o poder político como alavanca, para se conseguir as mudanças. O novo poder político cria uma legalidade nova, uma nova ordem, que é a ordem revolucionária. Eu não sou por qualquer ordem. Sou pela ordem que corresponda aos interesses da classe operária. Entretanto, se algumas leis do antigo regime podem ser utilizadas em benefício da luta pela ordem nova, tais leis devem também ser empregadas. Não posso opor-me à sua tese de que é preciso atacar o sistema existente quando ele não assegurar a ordem necessária ao povo.

E, finalmente, o senhor se equivoca ao pensar que os comunistas têm sede de violência. Ficariam muito satisfeitos suprimindo os métodos violentos se a classe dominante consentisse em ceder o lugar à classe operária. Porém, a experiência da história fala contra tal suposição.

— Wells: Há na história da Inglaterra, entretanto, o caso de uma classe que entregou voluntariamente o poder a outra classe. No período de 1830 a 1870, a aristocracia - cuja influência era ainda considerável no fim do século XVIII - cedeu o poder voluntariamente, sem luta séria, à burguesia, que serve como apoio sentimental à monarquia. Conseqüentemente, esta transferência do poder conduziu ao estabelecimento do domínio da oligarquia financeira.

— Stálin: Porém, o senhor passou, imperceptivelmente, do problema da revolução ao problema das reformas. Não é a mesma coisa. Não crê que o movimento cartista representou o grande papel nas reformas da Inglaterra no século XIX?

— Wells: Os cartistas pouco fizeram e desapareceram sem deixar rastro.

— Stálin: Não concordo com o senhor; os cartistas e o movimento grevista por eles organizado representaram grande papel; obrigaram as classes dominantes a fazer uma série de concessões no domínio do sistema eleitoral, na esfera da liquidação do que se chamava os "burgos podres", na realização de certos pontos da "Carta". O cartismo representou papel histórico não pouco importante e incitou uma parte da classe dominante a fazer certas concessões, certas reformas, para evitar grandes choques. Em geral, deve-se dizer que de todas as classes dominantes, as classes dominantes da Inglaterra, a aristocracia e a burguesia, demonstraram ser mais inteligentes, mais flexíveis do ponto de vista de seus interesses de classe, do ponto de vista da manutenção do poder. Tome como exemplo, digamos, da história moderna, a greve geral da Inglaterra em 1926. A primeira coisa que qualquer outra burguesia teria feito para enfrentar a situação, quando o Conselho Geral dos Sindicatos chamou à greve, seria a de encarcerarem os dirigentes dos sindicatos. A burguesia britânica tal não fez e agiu habilmente, segundo seus próprios interesses. Não posso conceber que a burguesia dos Estados Unidos, da Alemanha ou da França empregue estratégia tão flexível. Para manter predomínio, as classes dominantes da Grã-Bretanha não se têm negado nunca a fazer pequenas concessões, reformas. Mas seria erro pensar-se que estas reformas representam a revolução.

— Wells: O senhor tem uma opinião mais elevada das classes dominantes do meu país do que eu mesmo. Porém, há grande diferença entre uma pequena revolução e uma grande reforma? Não é uma reforma uma pequena revolução?

— Stálin: Obedecendo à pressão de baixo, à pressão das massas, pode a burguesia conceder, algumas vezes, certas reformas parciais, enquanto permanecem inalteráveis as bases do sistema social-econômico existente. Agindo dessa maneira, calcula que tais concessões são necessárias para preservar o seu predomínio de classe. Esta, a essência da reforma. A revolução, entretanto, significa a transferência de poder de uma classe para a outra. Por isso é impossível descrever qualquer reforma como uma revolução. Por isso é que não podemos contar com mudanças nos sistemas sociais que se operem como transição imperceptível de um sistema para o outro por meio de reformas, por concessões da classe dominante.

— Wells: Fico-lhe grato por essa conversa que muito significou para mim. Ao dar-me esta explicação, o senhor se recordou, provavelmente, de como explicava os fundamentos do socialismo, nos círculos ilegais, antes da Revolução. Atualmente, há no mundo apenas duas pessoas cuja opinião, cada palavra, é ouvida por milhões: o senhor e Roosevelt.

Outros poderão pregar tudo que lhes agrade; o que disserem nunca será escrito ou escutado. Ainda não pude apreciar que os senhores fizeram no país; cheguei ontem. Porém já vi os rostos felizes de homens e mulheres saudáveis, e sei que algo de considerável está- se fazendo aqui. O contraste com 1920 é assombroso.

— Stálin: Muito mais teríamos feito nós, bolcheviques, se fôssemos mais capazes.

— Wells: Não, se em geral os seres humanos fossem mais inteligentes. Seria uma grande coisa inventar um plano qüinqüenal para a reconstrução do cérebro humano que, evidentemente, carece de muitas coisas necessárias para uma ordem social perfeita. (Risos)

— Stálin: O senhor não vai ficar para assistir ao Congresso da União de Escritores Soviéticos?

— Wells: Infelizmente, não. Tenho vários compromissos e só poderei demorar uma semana na União Soviética. Vim vê-lo, e estou muito satisfeito com a nossa entrevista. Porém, tenho intenção de falar com os escritores soviéticos, para ver se consigo que se filiem ao P.E.N. Club. Esta é uma organização internacional de escritores fundada por Galsworthy. Depois da morte dele, o sucedi como presidente. A organização ainda é débil, mas tem seções em numerosos países e, o que é mais importante, as intervenções dos seus membros são amplamente comentadas na imprensa. Essa organização defende o direito da livre expressão de todas as opiniões, nelas compreendidas as de oposição. Espero poder discutir este ponto com Gorki. Não sei se uma tão ampla liberdade pode ser permitida aqui.

— Stálin: Nós, os bolcheviques, chamamos a isso "auto-crítica". É amplamente usada na U.R.S.S. Se há algo que eu possa fazer para ajudá-lo, fa-lo-ei com muito prazer.

— Wells: Muito agradecido.

— Stálin: Agradeço pela entrevista.

AQUI, a versão em inglês.

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