quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Carbonos do pop

Em uma manhã de novembro de 1975, Guto Graça Mello, um jovem de 27 anos, recebeu um telefonema na sede da gravadora Som Livre, da qual era diretor: “Guto? Preciso falar com você, urgente! Larga o que estiver fazendo aí e vem pra cá agora!” A ordem era de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, todo-poderoso da Globo.

Boni precisava resolver um problema sério: não aprovara a trilha sonora que um produtor havia feito para a novela Pecado Capital, que estava prestes a estrear, e tinha quatro dias para preparar uma nova. Guto disse que a única maneira de conseguir isso em tão pouco tempo seria fazer uma coleta nas gravadoras e escolher as melhores músicas de cada uma. Boni concordou, mas fez uma exigência: o tema de abertura teria de ser inédito. Guto pediu socorro a Paulinho da Viola: “Fui à casa do Paulinho e ele compôs Pecado Capital (“Dinheiro na mão é vendaval...”) ali, na minha frente, em menos de duas horas. Foi uma coisa assombrosa.”

Guto correu às principais gravadoras e conseguiu uma ótima seleção, incluindo Moça (Wando), Se Você Pensa (Moraes Moreira), Você Não Passa de uma Mulher (Martinho da Vila), Meu Perdão (Beth Carvalho), Beijo Partido (Nana Caymmi) e Juventude Transviada (Luiz Melodia). “Várias faixas do disco eram sambas, e a gente era meio proibido de usar samba em novela, mas o Boni estava com a faca no pescoço e teve que engolir.”

Na época, a Globo tentava consolidar uma imagem “sofisticada” em sua programação, o que explica essa repulsa pelo samba (em 1972, Chacrinha saiu da emissora e, com ele, muitos dos artistas considerados “bregas” e “cafonas”). Nelson Motta, então produtor da casa, diz que Guto foi corajoso ao colocar um samba na abertura: “Antes de Pecado Capital, nenhuma novela abria com um samba. Nas novelas que eu fiz, usava pop moderno (Véu de Noiva), ‘baiano épico’ (Verão Vermelho) ou sertanejo ‘heroico’ (Irmãos Coragem).” Até meados dos anos 70, a venda de discos com a trilha sonora internacional superava em muito a dos discos com a trilha nacional. Isso acontecia porque os LPs internacionais reuniam sucessos que a Som Livre pegava de outras gravadoras, enquanto os nacionais eram quase sempre compostos de músicas inéditas ou pouco conhecidas. A trilha nacional de O Rebu (1974–75), por exemplo, foi assinada por Raul Seixas e Paulo Coelho e trouxe faixas que, em sua maioria, não haviam entrado nos discos de Raul. Já o LP internacional da mesma novela tinha sucessos de Elton John, Stevie Wonder e Sérgio Mendes. A soundtrack nacional era, nas palavras de Guto Graça Mello, “o patinho feio da Som Livre”.

A trilha nacional de uma novela raramente ultrapassava 70 mil, 80 mil cópias vendidas. Pecado Capital, entretanto, mudou essa história: o LP chegou a 300 mil cópias, superando o internacional, que tinha canções de Michael Jackson, Domenico Modugno e Gladys Knight & The Pips.

A Som Livre havia sido fundada por João Araújo – o pai de Cazuza – em 1969, com o objetivo de lançar as músicas das novelas da Globo. A primeira trilha de Guto Graça Mello para a emissora foi uma parceria com Nelson Motta, Cavalo de Aço (1973). Guto não tem boas lembranças do disco: “Ficou uma merda. O Boni também achou e me deu um esporro danado.” Em 1975, Guto acumulava as funções de diretor da Som Livre e diretor musical da TV Globo, o que o deixava na estranha posição de ser cliente de si mesmo. Como ele tinha liberdade para escolher o que tocaria nas novelas, tornou-se um dos executivos mais influentes e poderosos da indústria do disco no Brasil.

Na trilha internacional de Pecado Capital, em meio a artistas consagrados como Michael Jackson e The Trammps, destacava-se um tal de Dave D. Robinson, que interpretava a balada Words of Love. O que o público não sabia era que a música não fora gravada em Los Angeles ou Nova York, mas no estúdio da Gazeta, na avenida Paulista. E eram também poucos os que conheciam o verdadeiro nome de Dave D. Robinson: José Eduardo França Pontes, conhecido por Dudu França.

Dave/Dudu era um dos muitos artistas brasileiros que cantavam em inglês e fizeram parte de um dos fenômenos mais populares e curiosos do pop brasileiro: o dos falsos gringos. E ele não foi um fenômeno isolado: Jessé era Tony Stevens; Ivanilton de Souza virou Michael Sullivan; Thomas Standen foi Terry Winter. Alguns cantores se valiam de mais de um pseudônimo: Fábio Jr. gravou em inglês, com os nomes de Mark Davis e Uncle Jack; Dudu França também gravou como Joe Bridges, tradução do prosaico José Pontes. Outros adotavam nomes parecidos com os de astros internacionais: Hélio Costa Manso ficou famoso como Steve Maclean, nome inspirado no galã do cinema Steve McQueen. Em 1975, quando o argentino de pais britânicos Chris de Burgh estourou com Flying, uma balada de sucesso, Jessé regravou a canção, assinando Christie Burgh. A EMI, selo do Burgh original, chiou, obrigando o brasileiro a trocar o nome.



De todos os falsos gringos, o mais famoso foi o carioca Maurício Alberto Kaiserman. Filho de uma família de classe alta do Rio, ele ganhou o concurso “O Homem Mais Bonito do Brasil” no programa de Flávio Cavalcanti, na TV Tupi, e integrou grupos de rock no fim dos anos 60, como Hangmen e The Thunders. No início da década de 70, estudou alguns anos nos Estados Unidos. Quando retornou ao Rio de Janeiro, tentou a carreira de cantor, interpretando músicas em português com seu nome verdadeiro e, em inglês, com o pseudônimo de Morris Albert.

Em 1974, Albert lançou pela gravadora Beverly o compacto de Feelings, uma balada romântica em inglês. A música acabou na novela Corrida do Ouro, da Globo, e fez um tremendo sucesso. A norte-americana United Artists, que tinha um contrato de distribuição internacional com a Beverly, não gostou da canção e deixou que a brasileira negociasse internacionalmente com arca. Resultado: Feelings chegou ao sexto lugar na parada norte-americana, vendeu muito na Europa e América Latina, foi cantada em shows por Frank Sinatra e gravada por Nina Simone, Johnny Mathis e Ella Fitzgerald. Morris Albert foi o único cantor da leva de brasileiros que gravavam em inglês a fazer sucesso no exterior. Em 1976, recebeu três indicações ao Grammy, principal prêmio da indústria musical nos Estados Unidos: música do ano, melhor cantor pop e artista revelação. Nos anos 80, foi acusado pelo compositor francês Loulou Gasté de ter plagiado a canção Pour Toi, lançada em 1957.



A onda de falsos gringos era coisa antiga no pop brasileiro. Desde o início dos anos 60, vários artistas nacionais se projetaram cantando em inglês ou imitando astros do pop estrangeiro. Em 1964, o cantor americano Trini Lopez, filho de mexicanos, fazia sucesso no mundo todo com a canção If I Had a Hammer. O compacto foi número 1 nas paradas de 36 países e saiu no Brasil pelo selo Reprise, com a canção Americano lado B. Mas a brasileira RGE tinha sido mais rápida e, pouco antes, pusera na praça um disco com as mesmas canções. Só o nome do cantor era diferente: Prini Lorez. Meses depois, a Reprise lançou outro sucesso de Trini Lopez, La Bamba, versão de uma tradicional canção folclórica mexicana que havia sido gravada originalmente em ritmo de rock por Ritchie Valens – na certidão de batismo, Ricardo Valenzuela, outro filho de mexicanos nascido nos Estados Unidos, morto em 1959, aos 17 anos, em um desastre de avião que também tirou a vida de dois outros astros

do rock, Buddy Holly e The Big Bopper. A RGE contra-atacou imediatamente com seu próprio compacto de La Bamba, na versão do dublê. “Modéstia à parte, meu disco era tão bom quanto o do Trini”, diz Prini Lorez, ou melhor, José Gagliardi Filho, um roqueiro do bairro da Pompeia, em São Paulo.

O disco da RGE copiava o original em tudo. Os compactos de Trini Lopez vendidos no Brasil foram tirados do LP Trini Lopez at P.J.’s, gravado ao vivo na famosa boate de Los Angeles. A imitação de Americaera tão fiel que começava com um apresentador dizendo, em inglês, a mesma frase que abria o disco gringo: “And now, P.J.’s proudly presents...”(“E agora, a P.J.’s orgulhosamente apresenta...”). Quando Prini foi gravar La Bamba na RGE, no bairro da Luz, o dono da gravadora lotou o estúdio de adolescentes e mandou que gritassem e aplaudissem. Entre eles estava uma menina de 17 anos, que cantava no grupo Teenage Singers: Rita Lee.

“Muita gente no Brasil não sabia que Trini e Prini eram cantores diferentes”, conta Antonio Paladino, produtor musical e executivo de gravadora na época. Paladino sugeriu a José Scatena, o dono da RGE, que criasse um clone de Trini Lopez. E Scatena achou o homem certo quando viu Gagliardi Filho, o Zezinho, cantando na boate Lancaster, na rua Augusta. Na época, Zezinho tinha 22 anos, mas já era um veterano do rock paulistano: havia fundado a banda The Rebels em 1959 e gravara compactos com o pseudônimo de Galli Júnior. Um de seus primeiros fãs foi Erasmo Carlos, que teve uma epifania ao entrar na Lancaster e ver o cantor interpretar What’d I Say, de Ray Charles. “Ele cantava igualzinho ao Ray Charles, era impressionante”, recorda o Tremendão. Na Lancaster, o público se surpreendia com a voz potente e a boa pronúncia de inglês do cantor. “Meu pai era bicheiro e tinha grana para pagar uma professora particular de inglês.” E o nome Prini Lorez pegou: “Hoje, até minha mulher me chama de Prini.”

Confusões entre artistas nacionais e estrangeiros não eram incomuns no Brasil. Luiz Calanca, que em 1978 abriria em São Paulo a Baratos Afins, importante loja e gravadora de rock brasileiro, conta que, na década de 60, discos estrangeiros podiam demorar dois anos para sair no país. “Eu trabalhava em farmácia e discotecava em bailinhos. A gente curtia Ronnie Cord e Renato e Seus Blue Caps cantando versões dos Beatles, antes de conhecer as músicas originais. Então, quando ouvíamos os Beatles, achávamos que eles é que estavam imitando Renato e Seus Blue Caps.”

Ronnie Von foi pivô de uma história exemplar: no início de 1966, seu pai, membro do corpo diplomático brasileiro em Londres, trouxe para ele de presente o disco Rubber Soul, dos Beatles, que acabara de sair na Inglaterra. Semanas depois, Ronnie gravou Meu Bem, versão da música Girl. “Um dia, eu estava ouvindo a Rádio Bandeirantes e tocaram Girl. No final, o locutor disse: ‘Acabamos de ouvir Meu Bem, com os Beatles.’ Fiquei nas nuvens!”, lembra Ronnie Von.



Antonio Paladino havia transformado a Eletroarte, um negócio de material elétrico do pai, na rua Augusta, numa das melhores lojas de discos de São Paulo nos anos 50. Ele fez amizade com alguns pilotos de avião, que lhe traziam do exterior todos os lançamentos da época. Ponto de encontro de bandas, fãs de rock e programadores de rádios, a loja tinha uma seleção tão boa que se tornou fornecedora de emissoras de rádio como

Difusora e Excelsior, em São Paulo, e Mundial, no Rio de Janeiro. Não era raro Paladino chegar à loja às nove da manhã e encontrar um sujeito sentado na calçada. Era Big Boy – Newton Alvarenga Duarte, famoso disc jockey da época –, que vinha do Rio de Janeiro só para comprar discos. O trabalho na Eletroarte fez de Paladino um especialista em prever o gosto do público. Ele sabia que discos tinham mais chance de vender e que artistas faziam a cabeça da moçada. Também começou a notar que as gravadoras demoravam a lançar certos discos: músicas de grande sucesso lá fora nem sequer saíam no país. Foi então que teve a ideia de montar grupos brasileiros para gravar em inglês, valendo-se do atraso das empresas estrangeiras.

Em 1966, Paladino percebeu que duas músicas famosas no exterior não haviam sido lançadas no Brasil: See You in September”, do grupo The Happenings, e Sunny, de Bobby Hebb. Ele procurou Hélio Costa Manso, cantor do grupo de rock paulistano The Mustangs, que fazia shows de covers em inglês, e propôs à banda um compacto com as duas canções. O conjunto foi batizado de The Happiness. “O pessoal escutava a música original no rádio e, sem saber o que tinha ouvido, dizia na loja: ‘Ontem ouvi uma banda, não lembro direito o nome, acho que é happy não sei o quê...’ O vendedor, então, respondia: ‘É essa’, e sacava o nosso disco. O cliente sempre levava”, conta Hélio.

A versão original do Happenings foi comercializada no Brasil pelo pequeno selo Mocambo, enquanto o compacto “trambique” do Happiness teve a chancela da poderosa estrangeira RCA, o que prova que não eram apenas as empresas menores que apelavam para essas jogadas. Hélio define a cena musical da época como “uma terra de ninguém”, onde todos tentavam ser mais espertos que a concorrência. Os covers, porém, não eram ilegais: bastava pedir autorização e pagar à editora que representava o autor.

No fim dos anos 60, a falta de informação do público e o pequeno número de brasileiros que falava inglês incentivaram a indústria dos falsos americanos. Além de Os Mustangs, conjuntos como Lee Jackson, Sunday, Kompha, Memphis e Watt 69 eram confundidos com grupos internacionais e bombavam. O Sunday chegou a ter um programa na TV Excelsior, com o bizarro nome de Sunday é Sábado. Os grupos lotavam as domingueiras de clubes tradicionais de São Paulo, como Paulistano, Harmonia, Pinheiros e Círculo Militar, atraindo um público de classe alta que tinha preconceito contra a música cantada em português. “Hoje é até ridículo dizer isso, mas a turma que frequentava esses clubes tinha vergonha de ouvir Roberto Carlos”, diz Dudu França, que antes de ficar famoso como Dave D. Robinson foi vocalista do Memphis. “Roberto Carlos era considerado o cantor das empregadas.”

O inglês imperfeito não era barreira. “Estudei inglês quando garoto, mas falar mesmo eu não falava. Eu mal sabia o que estava cantando”, confessa Dudu. O grupo Pholhas escrevia letras juntando frases tiradas de um velho livro de conversação em inglês. Fábio Jr. revelou que evitava conversar com as fãs, para que não percebessem que Mark Davis não era americano: “Eu dava autógrafos, mas não podia falar nada com elas. Era tudo rápido, e de óculos escuros.” Chrystian, da dupla Chrystian e Ralf, foi gravar um disco em Nashville, nos Estados Unidos, produzido por Hélio Costa Manso. Quando terminou o trabalho, um técnico do estúdio lhe perguntou alguma coisa, e o cantor, que não falava uma palavra de inglês, permaneceu mudo. O sujeito ficou impressionado: “Como assim? A pronúncia dele é perfeita!”

O fenômeno dos falsos estrangeiros, embora execrado pela crítica da época, foi importante para o desenvolvimento da indústria de discos do país. Executivos sentiram que o público estava gostando cada vez mais de música pop internacional e tentaram criar produtos para esse consumidor. Havia outro fator que incentivava as gravadoras a lançar músicas em inglês: canções estrangeiras não passavam pelo departamento de censura e, portanto, não corriam risco de ser proibidas.

Os falsos gringos ficaram tão populares que acabaram nas trilhas de novelas: Hélio Costa Manso e a irmã, Maria Amélia, que depois seria cantora do grupo de discoteca Harmony Cats, gravaram com a banda Sunday uma versão de I’m Gonna Get Married, do norte-americano Lou Christie, para a novela Super Plá (1969–70), da TV Tupi. A faixa foi produzida por – quem mais seria? – Antonio Paladino.

Cantar em inglês foi o caminho que muitos artistas encontraram para obter algum destaque na cena musical. O idioma, entretanto, limitava a chance de um sucesso mais duradouro. “As bandas dos anos 60, como Sunday, Lee Jackson, Memphis, Kompha e Watt 69, é que deveriam ter criado o rock nacional do Brasil”, diz Hélio Costa Manso. “A gente tinha o aparato tecnológico, tinha expertise de tocar Beatles, Led Zeppelin e Deep Purple, tinha tudo na mão. Mas havia um problema: tínhamos vergonha de cantar em português. Se tivéssemos enxergado que poderíamos ter sido ídolos cantando rock em português, a revolução que chegou nos anos 80 teria ocorrido em 1971 ou 72.”



* * *

E

m 4 de fevereiro de 1980, a TV Globo estreava a novela Água Viva, escrita por Gilberto Braga e Manoel Carlos. A trilha nacional, da Som Livre, trazia sucessos como Menino do Rio (Baby Consuelo), Realce (Gilberto Gil), Grito de Alerta (Maria Bethânia), Desesperar, Jamais (Simone), Amor, Meu Grande Amor (Ângela Ro Ro), Noites Cariocas (Gal Costa), Altos e Baixos (Elis Regina) e 20 e Poucos Anos (Fábio Jr.). A seleção havia sido feita por Lulu Santos, ou melhor, Lulu dos Santos, como dizia a contracapa do LP.

O disco com a trilha internacional também contava com uma forte seleção, marcada pela discoteca, gênero que ainda reinava no país. Misturava faixas dançantes – como D.I.S.C.O. (Ottawan), Love I Need (Jimmy Cliff), The Second Time Around (Shalamar) e Mandolay (La Flavour) – a baladas românticas, como Babe (Styx), Ships (Barry Manilow), Just Like You Do (Carly Simon) e Memories (Bianchi). Imagens de uma vela de windsurfe e de praticantes do esporte ilustravam a capa e a contracapa do LP internacional, assinada por Hans Donner, o designer austríaco que havia criado o logotipo da TV Globo.

Na semana de lançamento do LP internacional de Água Viva, um disco parecido chegou às lojas. Não era da Som Livre, mas da Continental. Água Viva – Temas Internacionais da Novela exibia na capa a foto de um sujeito praticando windsurfe e tinha um repertório idêntico ao do LP da Som Livre: Ottawan, Jimmy Cliff, Barry Manilow, Carly Simon... As versões, no entanto, não eram originais. Escondida no canto da capa, em fonte pequena, constava a palavra Covers. Não demorou para uma cópia chegar às mãos do diretor da Som Livre, Hélio Costa Manso, que ao constatar a qualidade das versões não teve dúvidas: aquilo só podia ser obra dos Carbonos.

Hélio os conhecia muito bem. Dois anos antes, produzira, na própria Som Livre, um medley de músicas dos Bee Gees para a trilha da novela Dancin’ Days, cantado pelo grupo vocal Harmony Cats e executado pelos Carbonos. Na época, muita gente ficou impressionada com a semelhança entre a gravação e as músicas originais dos Bee Gees (cujos discos saíram no Brasil pela PolyGram). Agora, a Som Livre experimentava o seu próprio veneno.

O Água Viva da Continental era tão bem gravado que começou a prejudicar a venda do LP da Som Livre, pois o público não distinguia a matriz da cópia. Muita gente chegava à loja, pedia o “disco da novela” e saía de lá com a versão cover. A Som Livre ameaçou banir os artistas da Continental dos programas da Globo caso o disco não fosse retirado do mercado. Assustada, a gravadora suspendeu as vendas e hoje o LP é uma raridade muito disputada no mercado de discos usados.

Trinta e três anos depois do episódio, em fevereiro de 2013, Beto Carezzato, baixista dos Carbonos, bate os olhos na capa do disco Água Viva da Continental e diz: “É, acho que participamos desse estelionato!” O irmão, Raul, cantor e percussionista, põe o disco na vitrola, ouve alguns segundos, e comenta: “Me lembro dessa percussão... Fui eu que gravei.”

O grande público ignora Os Carbonos, mas muita gente conhece os hits do pop brasileiro de que eles participaram, como músicos de estúdio: Feelings (Morris Albert), Summer Holiday (Terry Winter), Domingo Feliz (Ângelo Máximo), Aquela Nuvem (Gilliard), Flying (Jessé), Fuscão Preto (Almir Rogério),
O Boi Vai Atrás (João da Praia), É o Amor (Zezé di Camargo e Luciano), além de dezenas de LPs de Melindrosas, Harmony Cats, Bartô Galeno, Trio Parada Dura, Amado Batista, Carlos Alexandre, Los Maneros, Tony Damito, Marcos Roberto, Chrystian e Ralf, e dez LPs de Paulo Sérgio, o maior rival de Roberto Carlos. Somando tudo, Os Carbonos são uma das bandas que mais venderam discos no Brasil.

De meados dos anos 60 ao fim dos anos 80, eles foram o grupo de estúdio mais atuante de São Paulo, gravando por diversos selos: RGE, Top Tape, AMC, Beverly, Copacabana, Continental, Mocambo, Som Livre e Chantecler. Além do trabalho com outros artistas, lançaram cerca de quarenta LPs próprios, entre discos de covers, músicas italianas, rock, samba, sertanejo e forró. Também produziram jingles famosos, como “Toddy, sabor que alimenta” e o inesquecível comercial da dedetizadora D.D.Drin (“A pulguinha dançando iê-iê-iê, o pernilongo mordendo o meu nenê”).

Calcular com exatidão o número de músicas gravadas pelos Carbonos é impossível. Nem eles têm registro de tudo. Em um dia normal, faziam um LP inteiro, com dez ou doze faixas. Chegavam a passar dias e noites seguidos no estúdio, dormindo nos sofás. Trabalhavam de segunda a sábado. Um cálculo possível – dez músicas por dia, cinco dias por semana, durante vinte anos – daria um total de mais de 50 mil músicas. O lendário baterista Hal Blaine, um dos músicos de estúdio mais prolíficos e celebrados dos Estados Unidos, que tocou com Elvis Presley, Beach Boys, Simon & Garfunkel e The Supremes, calcula ter gravado 35 mil músicas em quatro décadas. Os Carbonos poderiam talvez estar no Guinness.



A base do grupo são os irmãos Mário, Beto e Raul Carezzato. Beto e Raul, gêmeos não idênticos, nasceram em 1946. Mário é cinco anos mais velho. A família, de origem italiana, tem longa história na música. Os tios dos rapazes eram os Trigêmeos Vocalistas, grupo que fizera sucesso nos anos 30 e 40 cantando no Cassino da Urca e na Rádio Nacional (assim como os Carbonos, os Trigêmeos Vocalistas eram formados por dois gêmeos e o irmão mais velho). No início dos anos 60, quando os Carezzato viviam no bairro de Santa Cecília, em São Paulo, Beto e Raul começaram a se interessar por rock. Mário só queria saber de música clássica: formou-se em piano, canto, regência de coral e orquestração, e chegou a excursionar pela Europa como barítono do Madrigal da Orquestra de Câmara de São Paulo.

Os gêmeos juntaram-se aos amigos “Ricardão” Fernandes de Morais (guitarra) e Igor Edmundo (baixo e guitarra) – um guatemalteco que vivia no Brasil –, e, com o nome de Os Quentes, gravaram o primeiro compacto. Logo depois, o baterista Antônio Carlos de Abreu, irmão do autor de novelas Sílvio de Abreu, juntou-se ao grupo, e Mário, o irmão mais velho, assumiu os teclados.

Impressionada com a qualidade técnica dos rapazes, a gravadora Beverly encomendou um LP de covers com sucessos do momento. Os Quentes gravaram A Praça (Ronnie Von), Só Vou Gostar de Quem Gosta de Mim (Roberto Carlos), Coração de Papel (Sergio Reis) e Vem Quente que Eu Estou Fervendo (Erasmo Carlos), além de hits internacionais como With a Girl Like You (The Troggs) e Black Is Black (Los Bravos). Um dia, Beto e Raul andavam pelo Centro de São Paulo quando viram vários cartazes anunciando o disco, mas com o nome de outro conjunto: Os Carbonos. A Beverly havia rebatizado o grupo e nem os avisara. O nome, contudo, era perfeito: ninguém copiava músicas com tanta competência.

O disco foi o primeiro de uma série chamada As 12 Mais da Juventude. Os Carbonos gravaram Beatles (Ob-la-di, Ob-la-da), Jorge Ben (Ela é Minha Menina), Otis Redding (Sittin’ On, the Dock of the Bay), Roberto Carlos (É Meu, É Meu, É Meu), Procol Harum (A Whiter Shade of Pale) e muitos outros sucessos. Às vezes o conjunto preparava versões antes que as músicas originais chegassem às lojas. Raul conta que os produtores subornavam funcionários de outras gravadoras para ter acesso aos acetatos (discos “modelo”, que serviam de base para a prensagem de LPs) de futuros lançamentos. Os Carbonos decoravam as músicas e corriam para gravá-las no estúdio. A Beverly logo percebeu que o talento dos rapazes não se limitava ao rock e transformou Mário Carezzato no cantor “italiano” Mario Bruno, responsável pela série de discos As 12 Mais Italianas, com hits da música pop da terra de Rita Pavone.



Os Carbonos chegaram a tocar com Roberto Carlos no programa de tevê Jovem Guarda e se firmaram como uma das melhores bandas de baile do país, apresentando-se em longas excursões pelo Norte e Nordeste. Um de seus grandes sucessos foi a série Super Erótica– lançada em 1970 sob o pseudônimo de Magnetic Sounds –, que trazia canções de temas “adultos” como Doin’ It, de Ike Turner, Je t’Aime... Moi Non Plus, de Serge Gainsbourg. Os gemidos de Jane Birkin na versão brasileira foram gravados por Norma Aguiar, irmã da cantora Nalva Aguiar. Os discos chegavam às lojas com uma tarja que dizia: “Censura 18 anos”, além de um texto alertando que a radiodifusão e execução das músicas estavam proibidas em locais públicos. Foi um estouro de vendas.

Os rapazes, entretanto, logo cansaram da vida na estrada e passaram a se concentrar no trabalho em estúdios. Em pouco tempo se transformaram na banda mais procurada por gravadoras e artistas. Além de registrar incontáveis discos em conjunto, os músicos participaram, individualmente, de outros tantos: Raul fez vocais de apoio – junto com Antonio Marcos – em Aleluia (Che Guevara não morreu), de Sérgio Ricardo, e Moça, de Wando, e percussão em Entre Tapas e Beijos (Leandro e Leonardo) e Comer, Comer (Genghis Khan). Beto tocou baixo em inúmeros discos de Odair José e César Sampaio.

O trabalho no estúdio era extenuante. Os integrantes dos Carbonos liam partituras, registravam rapidamente e quase nunca erravam. Muitas vezes nem sabiam o que estavam gravando. “Os maestros e arranjadores chegavam com as partituras, a gente dava uma olhada e gravava, sempre de primeira”, conta Beto. Um dia, o maestro Rogério Duprat, responsável por alguns dos principais arranjos da Tropicália, entrou no estúdio acompanhado de Jorge Ben e Gal Costa. Duprat disse que queria gravar uma música, mas não tinha partitura. Pediu a Beto e Raul que observassem o violão de Jorge Ben e o acompanhassem. Beto tocou baixo e Raul, percussão. Meses depois, quando ouvia rádio, uma música chamou a atenção de Beto, uma canção bonita, suingada, com arranjo lindo e vocais de Gal e Caetano Veloso. Era Que Pena (do disco Gal Costa, de 1969). “Eu imediatamente reconheci o baixo e a percussão. Fomos nós que gravamos.” Músicos de estúdio raramente recebiam créditos nos discos. Raul diz que se arrepende de ter sido tão relapso: “Só nos interessava ganhar pela tabela do sindicato e não nos preocupávamos com os direitos.”

Os Carbonos impressionavam pela versatilidade: eram capazes de gravar rock, samba, sertanejo ou forró, imitando com perfeição os timbres característicos de cada estilo. “Não houve, em São Paulo, banda de estúdio tão boa; eles eram os melhores, os mais profissionais e os mais competentes”, diz Carlos Alberto Lopes, o “Sossego”, radialista e produtor musical que conheceu o conjunto em meados dos anos 60. “Há músicos que arrasam no palco, mas não rendem no estúdio. Os Carbonos eram ótimos nos dois”, conta Carlinhos Borba Gato, músico que fez sucesso cantando country (Pegue o Seu Sorriso) e se tornou um dos produtores e letristas mais requisitados do pop brasileiro na década de 80, como letrista para Genghis Khan (Comer, Comer), Rita Cadillac (É Bom para o Moral) e Gugu Liberato (Bota Talquinho).

Quando uma gravadora queria lançar uma canção de algum artista de outro selo, a solução mais fácil e barata era encomendar uma versão. Na segunda metade dos anos 70, com o mercado do disco em expansão e cada vez mais competitivo, a indústria dos covers proliferou. Não só as gravadoras menores apelavam a eles, mas também as multinacionais. A Odeon lançou a série Década Explosiva Romântica, em que o grupo The Fevers tocava – sem créditos, claro – versões de Bridge Over Troubled Water (Simon & Garfunkel), My Sweet Lord (George Harrison), Skyline Pigeon (Elton John) e Hey Jude (Beatles). A PolyGram atacou com a série Festa de Sucessos, com versões de You Are the Sunshine of My Life (Stevie Wonder), Why Can’t We Live Together (Timmy Thomas) e Oh, Girl (The Chi-Lites). Até a Som Livre, que chiou tanto com a versão cover do disco Água Viva, passou anos fazendo o mesmo com as outras gravadoras, como prova a série Super Parada – Sucessos Internacionais nas Paradas de Todo o Brasil.

A qualidade variava enormemente. Algumas gravações eram fiéis às originais, com bons arranjos e vocais em inglês correto; outras eram cantadas em puro “embromation”. As séries Premier Mundial [sic] e Super Explosão Mundial, da gravadora CID/Square, pareciam ter sido registradas no fundo de uma caverna, por cantores que estudaram inglês com o técnico Joel Santana. Já as faixas interpretadas pelos Carbonos impressionavam pela qualidade e apuro técnico. Em 1981, Hélio Costa Manso pediu a Mário Carezzato que gravasse Piano, música instrumental do argentino Bebu Silvetti, para a trilha da novela Jogo da Vida, da TV Globo. Com o pseudônimo de Bruno Carezza, Mário tocou em três pianos de cauda diferentes. O resultado foi tão bom que a RGE, gravadora que fora incorporada pela Som Livre, colocou a faixa na abertura do LP Piano Songs, com músicas românticas executadas por pianistas pop famosos, como Liberace e Pedrinho Mattar.

Lançar um disco de covers era um excelente negócio: os músicos de estúdio recebiam cachês fixos, sem direitos autorais, e o custo de produção era baixíssimo. Quando a Polydor lançou o álbum com a trilha sonora do filme Grease – Nos Tempos da Brilhantina (1978), pelo menos três discos de covers chegaram às lojas brasileiras ao mesmo tempo. Um deles, da RGE, não registrava nenhuma informação sobre os músicos, a não ser um nome claramente inventado: The Fantastic Soundtrack Band. Outro LP, do obscuro selo Aladdin, ligado à gravadora K-Tel, tinha um desenho tosco na capa, imitando John Travolta e Olivia Newton-John, e trazia versões produzidas pela gravadora alemã Countdown, especializada em covers. “Existiam muitas empresas na Europa e nos Estados Unidos, como a Countdown, a Odyssey e a PPX, que só vendiam covers”, conta Hélio Costa Manso. “Você comprava um cover por 200 dólares. Elas vendiam as músicas com ou sem vocal, caso você quisesse gravar a letra em português. Era fantástico.”

Muitos grupos da Jovem Guarda se especializaram em covers. Integrantes dos Fevers e do Renato e Seus Blue Caps fundaram o Big Seven, banda instrumental responsável pela série de LPs Os Sucessos num Super Embalo. Já Os Super Quentes, formado por membros dos Golden Boys, dos Fevers, do Trio Esperança e do Renato e Seus Blue Caps, lançaram dez discos de versões numa série chamada Os Super Quentes e os Sucessos.

As gravadoras brasileiras apostavam não só em covers gringos, mas também nos nativos. A partir do fim da década de 60, houve uma enxurrada de versões de músicas brasileiras de sucesso, com músicos de estúdio imitando artistas famosos. As capas dos discos – com títulos genéricos, como O Melhor de 1979 ou Sertanejo Bom Demais– exibiam os nomes das músicas e dos artistas que as tinham gravado originalmente, sem dizer que eram versões. O público também não percebia que se tratava de covers. Dono de um talento sobrenatural para imitar vozes, Raul Carezzato gravou sucessos de Paulinho da Viola, Benito di Paula, Wilson Simonal, Jair Rodrigues, Ronnie Von e até Johnny Rivers; Dudu França imitou Sidney Magal; e o sertanejo Fabiano se especializou em copiar duplas, como Tonico e Tinoco e Milionário e José Rico. O caso mais curioso é o de Wando, que gravou um coverde si mesmo: “Ele precisava de uma grana e topou gravar suas próprias músicas para um disco de versões”, revela Antonio Paladino.



No fim dos anos 70, o auge do mercado de versões no Brasil, a indústria do disco parecia um ringue de telecatch, onde vencia o mais esperto. E ninguém era mais esperto que Carlos Imperial. Alguns anos antes, ele descobrira o lucrativo e inexplorado filão das músicas de domínio público e passou a registrar várias em seu nome. Na biografia Dez, Nota Dez! Eu Sou Carlos Imperial, o autor, Denilson Monteiro, conta que até a mãe do produtor se indignou quando ele atribuiu a si a autoria de Meu Limão, Meu Limoeiro: “Carlos Eduardo, como você tem a coragem de dizer que essa música é tua? Meu filho, eu cansei de te embalar cantando ela quando você era recém-nascido!” Imperial respondia: “Comigo é assim: mulher e música, se não tiver dono, eu vou lá e apanho.”

Dudu França revela que, certa vez, ao gravar uma música de Imperial chamada Eu Te Amo Tanto, percebeu que se tratava de um plágio de Proposta, de Roberto Carlos. A canção era tão parecida que os músicos ironizaram: “Dudu, essa música chama Proposta ou Contraproposta?” Indignado, o cantor ligou para Imperial e disse que não iria cantar a música. “Eu falei: ‘Imperial, não vou gravar essa merda, é uma humilhação!’ Daí ele começou a gritar: ‘Seu babaca, você não apita porra nenhuma. Quem manda aqui sou eu!’ Mas eu não ia assumir um plágio, e só cantei a música depois que ele concordou em trocar a melodia. O Imperial mudava uma palavra de uma música minha e já entrava como compositor da faixa.” Hélio Costa Manso, que cansou de se apresentar como Steve Maclean no programa de tevê de Imperial, considera o amigo “um gênio do trambique”: “Tem uma música dele, Pra Nunca Mais Chorar, que foi um dos maiores sucessos da Vanusa e é chupada de Monday, Monday, do The Mamas & The Papas. O Imperial me dizia: ‘Hélio, eu não sou batedor de carteira; sou arrombador de cofre.’”

Um dos grandes trunfos do mercado, a partir da segunda metade da década de 70, foram os discos com medleys de faixas dançantes, também conhecidos como “som contínuo”. Com a popularidade da discoteca e a onda de bailinhos caseiros – quem era menor de idade ou não tinha grana para ir às badaladas Aquarius ou Papagaio fazia a festa em casa –, as gravadoras investiram com força no filão e ganharam muito dinheiro. Eram discos com faixas mixadas, sem intervalo, ideais para a pista de dança. Um dos primeiros LPs do gênero lançado no país foi New York City Disco, gravado pelo DJ Ricardo Lamounier, em 1976, que trazia faixas de sucesso de Diana Ross, K.C. & The Sunshine Band e Napoleon Jones (um dos muitos pseudônimos de um músico disco francês chamado – acredite – Jacques Pépino). A K-Tel inundou as lojas do Brasil com LPs como Disco Dance – Som Contínuo, Hit Machine e Dynamite; e Mister Sam lançou cerca de trinta bolachas com medleys de discoteca.

Outros ritmos dançantes, como samba e forró, ganharam discos com potpourris de sucessos. Os Carbonos gravaram as séries Samba Bom Nunca Morre e Forró Bom Demais (este, com o pseudônimo de Grupo Chamego). O disco de samba reunia 47 sucessos de Paulinho da Viola, Adoniran Barbosa, Martinho da Vila e Benito di Paula. Um dos volumes de Forró Bom Demais trazia 51 clássicos do gênero, como Asa Branca, Fricote, Homem com He Eu Só Quero um Xodó. É difícil imaginar um bando de descendentes de italianos fazendo-se passar por Martinho da Vila ou por Luiz Gonzaga em um disco, mas os Carbonos conseguiram tal proeza.

Dos integrantes originais dos Carbonos, apenas Mário, Raul e Beto Carezzato continuam se dedicando à música em 2014. Antônio Carlos de Abreu largou a bateria e foi trabalhar com o irmão, Sílvio de Abreu. O baixista e guitarrista Igor Edmundo morreu atropelado, e o guitarrista Ricardão faleceu após sofrer um AVC dentro do ônibus que levava a banda de Amado Batista.

Entre os milhares de discos que gravaram, um deles ainda hoje deixa Os Carbonos cheios de orgulho: Country Music, um LP com sete medleys, reunindo 51 canções de folke country de artistas como Bob Dylan (Blowin’ in the Wind), Creedence Clearwater Revival (Lookin’ Out My Back Door), Jimmy Webb (Wichita Lineman) e Bobbie Gentry (Ode to Billie Joe). O grupo gravou o LP com nome The Midnight Ramblers, e o disco é um verdadeiro “quem é quem” da cena brasileira de covers. Reúne a nata dos músicos de estúdio da época: além dos Carbonos, Luiz Carlos Maluly, do grupo Lee Jackson, nas guitarras e gaita; Reinaldo Brito no banjo; Chrystian (da dupla Chrystian & Ralf) nos vocais, junto com Vivian e Maria Amélia (Harmony Cats) e Hélio Costa Manso.



Se em São Paulo os Carbonos eram os mais requisitados para gravações, no Rio de Janeiro havia uma banda que parecia estar em todos os estúdios e bailes da cidade: Os Famks. Nos anos 70, o conjunto se apresentava em clubes como Ideal de Olinda, Pavunense, Mesquita, Centro Cívico Leopoldinense, Tijuca Tênis Clube e Grajaú Tênis Clube. Em 1980, resolveram parar de executar apenas música feita por outros e começaram um trabalho mais autoral. Decidiram também mudar de nome. Viraram Roupa Nova. O grupo gravou com Roberto Carlos (Côncavo e Convexo), Gal Costa (Chuva de Prata), Rita Lee (Flagra) e também com Erasmo Carlos, José Augusto, Joanna, Simone e Fafá de Belém.

Antes de se tornarem Roupa Nova, Os Famks lançaram onze discos de covers com o pseudônimo Os Motokas. Cada disco trazia na capa uma gata de biquíni montada em uma motocicleta (o volume 9 exibia Myrian Rios) e trinta músicas, divididas em dez medleys. Certa faixa podia começar com Lady Laura, de Roberto Carlos, e terminar com A Veces Tu, a Veces Yo, de Julio Iglesias, ou misturar Como Vovó Já Dizia, de Raul Seixas, com Kung Fu Fighting, o clássico da discoteca gravado por Carl Douglas. “No mesmo disco, eu tinha de imitar o Julio Iglesias, o Benito di Paula e o Genival Lacerda”, conta o cantor Paulinho, do Roupa Nova. Para os vocais femininos, Os Famks tinham a ajuda de cantoras como Claudia Telles, Lílian (da dupla Leno e Lílian) e Jane Duboc.

No começo da década de 80, já com o novo nome, o grupo passou a trabalhar para a TV Globo, em temas de programas como Jornal Nacional e Chico City. Gravaram também a antológica abertura do Cassino do Chacrinha (“Abelardo Barbosa/Está com tudo e não está prosa”) e o Tema da Vitória, canção instrumental composta pelo maestro Eduardo Souto Neto que acabou associada ao piloto Ayrton Senna.



Os Carbonos e Os Famks permanecem como heróis anônimos do pop brasileiro, sem créditos em discos nem menções em enciclopédias. Como ocorreu com muitos músicos de estúdio e compositores de aluguel, sempre atuaram nos bastidores, sem o reconhecimento do público. E os fãs raramente descobriram os mistérios detrás de muitas músicas. Ao menos no Brasil.

Um caso raro – talvez único – em que as maquinações da indústria musical vieram à luz foi o escândalo envolvendo o grupo pop Milli Vanilli. Criado em 1988 pelo produtor alemão Frank Farian, o Milli Vanilli era formado por dois dançarinos e modelos, o francês Fab Morvan e o alemão Rob Pilatus. O primeiro disco da dupla, Girl You Know It’s True, foi um grande sucesso no mundo todo e ganhou um prêmio Grammy de artista revelação.

O triunfo virou vergonha quando se descobriu o que muita gente já desconfiava: Fab e Rob não haviam cantado no disco. A farsa começou a desmoronar durante um show transmitido pela MTV – um problema no CD com os vocais fez a música pular, enquanto Fab e Rob continuavam a dançar e a cantar como se nada estivesse acontecendo. Para piorar a situação, Rob afirmou em entrevistas que era mais talentoso que Paul McCartney e Bob Dylan. Humilhados pela revelação de que não passavam de impostores, os dois modelos tiveram de devolver o Grammy. Rob morreria em 1998, de overdose de drogas e álcool, depois de passar alguns meses na cadeia por roubo. Fab continuaria cantando e lançando discos, mas sem o sucesso que obteve na época do Milli Vanilli.

Embora seja segredo de alguns poucos, o Brasil também teve seu Milli Vanilli: os primeiros discos dos Los Maneros, um trio pop formado em São Paulo nos anos 80 e que fez muito sucesso em programas de tevê, foram quase todos gravados pelos Carbonos. E uma pessoa que esteve presente em sessões de gravação dos discos dos grupos Blitz e Sempre Livre garante que boa parte deles foi executada pelo Roupa Nova.

por André Barcinsky

piauí

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AÉCIO NEVER

“Vamos fazer um negócio curtinho lá, senão ninguém aguenta. Pá, pum! E aí entra a música.” Aécio Neves da Cunha batia a lateral da mão direita na palma esquerda, ritmadamente. Orientava os discursos que seriam feitos dali a algumas horas no lançamento da pré-candidatura de Pimenta da Veiga ao governo de Minas Gerais. Dentro do jatinho que ia de Brasília a Belo Horizonte naquela manhã de fevereiro, cinco coadjuvantes da festa ouviam o senador com atenção. Além do presidente do PSDB paulista, Duarte Nogueira, e do líder do partido na Câmara, Antonio Imbassahy, estavam no voo os presidentes da seção mineira do PSB, do PDT e do PT do B. A fauna política era uma pequena amostra do modo de operar de Aécio. Se tudo correr conforme o planejado, Pimenta da Veiga terá mais de 20 legendas apoiando sua candidatura.

De janeiro a maio, o senador mineiro fez quarenta viagens de avião custeadas pelo partido – dezesseis delas para São Paulo. As agendas eleitorais disfarçadas de compromissos partidários geralmente se iniciam às quintas-feiras, quando o Congresso se esvazia. Na aritmética dos tucanos, se chegar à frente de Dilma Rousseff no estado de Fernando Henrique Cardoso, Geraldo Alckmin e José Serra, Aécio dificilmente fica fora do segundo turno da eleição presidencial. Ele considera que em Minas, segundo colégio eleitoral do país, deve ter ampla vantagem sobre a petista.

Sentado sempre de frente para a cabine de comando – hábito do qual não abdica –, Aécio fez o sinal da cruz assim que o avião decolou. Perguntei se tinha medo de voar. Deu de ombros e respondeu que certas coisas são inevitáveis, “então melhor nem pensar no assunto”. Minutos depois o senador descrevia, efusivo, a ampla coalizão que montava em seu estado. Brincava ao mesmo tempo com os parlamentares, chamando-os por apelidos ou diminutivos. Fez piadinhas inaudíveis ao pé do ouvido de Júlio Delgado, do PSB. Pegou o tablet de um assessor para acompanhar as últimas notícias e passou os olhos em alguns relatórios. Relaxado, pôs-se a falar do lugar de que mais gosta, a fazenda na cidade de Cláudio, no interior de Minas. “São 50 alqueires e alguns pezinhos de café para não ficar feio e também curar a cachaça”, ele disse. Chamou seu refúgio de “meu Palácio de Versalhes”, numa alusão ao château nos arredores de Paris que funcionou como centro do poder do Antigo Regime francês. “Um dia você vai conhecer o meu palácio”, prometeu. Nos quase quatro meses em que o acompanhei em viagens e eventos, ele evitou abrir as portas de seu castelo, sem nunca ter dito “não” claramente. A fortaleza mineira, na descrição de um amigo da família, é “uma fazenda tipicamente colonial, sem pompa, com uma capelinha na entrada e campinho de futebol”.

Imbassahy interrompeu a conversa para mostrar “um vídeo fantástico” no YouTube. “Já viu?”, perguntou, empurrando o tablet em minha direção. Aécio e as irmãs Andrea e Angela aparecem ao lado de outros parentes numa varanda do château. Participam todos de uma cantoria animada. A música é Tocando em Frente, de Renato Teixeira e Almir Sater, aquela que diz “ando devagar porque já tive pressa”. A gravação foi feita em 2006, mas havia sido postada na rede apenas três dias antes da nossa viagem. “Muito bom, muito bom”, repetia o deputado baiano. “Ele é o campeão número 1 nesta arte, a sacanagem de agradar”, emendou, apontando para Aécio.

Entusiasmado, Imbassahy argumentou que, ao contrário de Serra, que disputou a Presidência em 2002 e 2010, e ao contrário de Alckmin, candidato em 2006, o mineiro agora teve tempo e condições, como presidente do PSDB, para gestar acordos políticos e preparar os terrenos regionais. “Esse camaradinha aí costurou coisas que só vão aparecer lá na frente.” Uma dessas “costuras” apareceu durante o voo. Pouco antes de desembarcar, entre goles de Coca-Cola Zero, Aécio conversou por telefone com o ex-prefeito Gilberto Kassab para agradecer o apoio do PSD a Pimenta da Veiga.

Engomados, com ternos escuros bem cortados, Pimenta da Veiga e Antonio Anastasia, à época ainda governador, esperavam por Aécio no aeroporto da Pampulha. Conversaram por alguns minutos numa sala a portas fechadas. De calça jeans, camisa social azul-clara, mangas arregaçadas e um sapato social azul-marinho já gasto, Aécio propôs que todos tirassem as respectivas gravatas. Anastasia foi o primeiro a atender e, empolgado, se livrou também do blazer, deixando em evidência sua silhueta roliça. Mais à vontade, embarcaram na van.



"Minas é minha casa e minha causa” – totalmente confortável em seu discurso, Aécio usou e abusou do bordão, que repetiria em outras ocasiões. Governador do estado por duas vezes, de 2003 a 2010, foi reeleito com 77% dos votos válidos. Gosta de mencionar que deixou o governo com 92% de aprovação. Elegeu Anastasia seu sucessor, derrotando a chapa com dois ex-ministros de Lula (Hélio Costa, do PMDB, e Patrus Ananias, do PT, como vice). Formado em direito, professor universitário, Antonio Anastasia foi secretário de Planejamento e Gestão de Aécio no primeiro mandato; filiou-se ao PSDB a pedido do chefe e tornou-se vice-governador no segundo.

“Depois de três meses do primeiro mandato eu já sabia que meu sucessor seria o Anastasia”, disse Aécio. No início da campanha de 2010, o pupilo tinha menos de dois dígitos nas pesquisas. Terminou eleito no primeiro turno. “Anastasia é um príncipe. É de uma lealdade indescritível. Um técnico, um político sem ambição. Mora até hoje num apartamentinho com a mãe, de 90 anos”, contou Aécio no avião, poucos minutos antes de aterrissarmos. Semanas depois, em São Paulo, o tucano anunciaria a empresários que Anastasia iria coordenar seu programa de governo. Se eleito, Aécio transformará Anastasia em um de seus mais poderosos ministros, muito provavelmente na pasta do Planejamento.

No palanque, Aécio cutucou Pimenta da Veiga duas vezes, para que encerrasse seu discurso. Aos 66 anos, ele foi batizado de “candidato naftalínico” pela oposição. “Os mineiros, que sempre foram protagonistas na história nacional, vão ter neste ano papel decisivo, porque o próximo presidente da República está entre nós”, concluiu Pimenta. Anastasia deu seu recado em poucos minutos – sucinto, como o chefe recomendara. E Aécio falou por menos de dez minutos. Citou Tancredo Neves e Juscelino Kubitschek, obviamente. Pá, pum!

Quando se dirige aos mineiros, sua voz ganha uma impostação solene, que faz lembrar discursos políticos à moda antiga. O recado: estava pronto para ser presidente. E isso só seria possível com os votos de Minas. Entrou então a música: um sambinha da década de 80, feito por uma escola tradicional de São João del-Rei para Tancredo Neves.

Suado, com a camisa para fora da calça e os cabelos desalinhados, Aécio secou o rosto com um lenço antes de posar para fãs, a maioria mulheres munidas de celulares. Em todas as imagens – dezenas – não tirava o sorriso do rosto, exibindo, como se estivessem congeladas, as famosas covinhas. Entrou num carro com Pimenta, Anastasia, Imbassahy e Nogueira – e desapareceu. Quando percebi, estava sozinha na van com um assessor do senador.

Cerca de quarenta minutos depois eles ressurgiram no hangar onde os aguardávamos. Aécio explicou a razão do sumiço: fora visitar o ex-deputado Eduardo Azeredo, que na véspera havia renunciado ao mandato. Réu na ação penal do mensalão tucano que tramitava no Supremo Tribunal Federal, Azeredo, com seu gesto, conseguiu levar o processo à primeira instância, postergando o julgamento e mantendo-se distante dos holofotes, ao menos por ora. O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, havia pedido sua condenação a 22 anos de prisão por desvio de recursos na campanha eleitoral de 1998. No dia em que esteve com ele, Aécio limitou-se a comentar que Azeredo – como ele, também ex-governador de Minas –, é “um homem de bem” e estava “abatido”. E foi logo puxando outro assunto.



Não foi por acaso que durante o voo Imbassahy me mostrou o vídeo de Aécio na fazenda. A divulgação na rede de uma cena familiar (ou um “conteúdo positivo”, no jargão dos marqueteiros) faz parte de uma operação de guerra. A campanha tucana se preocupa particularmente com os efeitos nocivos da internet para a imagem do candidato. Seus apoiadores discutem a possibilidade de criar um espaço virtual para publicar “todos os boatos” sobre o mineiro, com as respectivas respostas. A inspiração vem de Barack Obama, que fez uso desse recurso na campanha americana.

Aécio move processos contra o Facebook e os buscadores Google, Yahoo e Bing. Alguns tucanos consideram que a estratégia é um tiro no pé. O senador reitera que tem sido mal interpretado e que não há, nem nunca houve, nenhuma intenção de praticar censura.

O escritório de advocacia Opice Blum é um dos mais renomados do país nas questões sobre direito digital. Aécio o contratou como pessoa física e mantém os honorários em segredo. Dois processos contra o Facebook – um deles corre em sigilo de Justiça – pedem a retirada de perfis falsos de Aécio, que usam a primeira pessoa e incitam o uso de drogas. “Aí não dá para admitir. Isso é criminoso”, me disse Juliana Abrusio, jovem advogada de 36 anos. Sentada em sua mesa, numa sala ampla que divide com outros advogados, ela sorvia um picolé Rochinha enquanto me explicava os processos. De acordo com Juliana, são vários perfis criados por “quadrilhas virtuais criminosas” para difamar a imagem do senador. A crítica, a divergência de opinião e até a zombaria são aceitáveis; “o crime, em hipótese alguma”, frisou.

 Saia justa até o joelho, meia fina, saltinho, camisa social rosa-clara, ao terminar o picolé Juliana fez um coque no cabelo e o prendeu com uma caneta. Explicou que o processo contra os buscadores da internet é referente “a uma mentira que espalharam na rede dizendo que o senador é acusado em ação judicial promovida pelo Ministério Público de ter desviado 4,3 bilhões de reais”. Essa “mentira”, disse Juliana, “foi disseminada na internet por meios ilícitos” (robôs, spams de comentários e outras táticas de guerrilha) “para influenciar os algoritmos desses sites de busca”. Quanto maior o interesse por um tema na rede, mais destaque ele ganha no buscador. O que o senador quer, enfatizou a advogada, é que essa combinação de palavras  “Aécio + desvio de R$ 4 bi” deixe de ser “oferecida espontaneamente pelos buscadores”. Ela insistia: “Não é censura. Não pedimos a retirada de nenhum conteúdo.” Não seria uma luta inglória? Ela admite que, se Aécio vencer as ações, os conteúdos vão continuar na rede. Mas ficaria mais difícil acessar tais notícias.

O caso dos 4,3 bilhões é intricado. A promotora de Justiça Josely Ramos Pontes, que investigava a aplicação de recursos na Saúde durante o governo Aécio, em determinado momento descobriu que mais de 50% dos investimentos na área provinham de ações desenvolvidas pela Copasa, a Companhia de Saneamento de Minas Gerais. Achou exagerado. No orçamento, o governo informava que havia transferido dinheiro à entidade para aplicá-lo em ações de saneamento. Uma auditoria mostrou, no entanto, que nos documentos contábeis da Copasa não apareciam tais recursos. Foi a partir dessa constatação que a promotora resolveu mover a ação de improbidade contra Aécio. Em janeiro deste ano, o procurador-geral de Justiça de Minas, Carlos André Bittencourt, entendeu que a promotora não poderia processar um governador e arquivou o caso, sem entrar no mérito. Josely recorreu em abril. “A toda sentença cabe uma apelação. A ação de improbidade ainda existe”, ela me disse por telefone. Não se trata, de acordo com a promotora, de uma ação para questionar o percentual de recursos aplicados na Saúde (que deve ser de 12% da receita estadual, segundo a Emenda 29). Há suspeita de desvio?, indaguei. “O que eu posso afirmar é que o estado não colocou esse dinheiro na Saúde. Os recursos aparecem na prestação de contas do estado, mas não foram gastos. A impressão que eu tenho é que esse dinheiro não existe, é uma invenção”, foi a resposta.



"Ele agora está louco para ser presidente e convencido de que vai chegar lá. Mudou muito. Isso é uma coisa curiosa, porque levou algum tempinho. E mais do que isso: ele se entusiasmou com a campanha e com a possibilidade de vitória”, disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, quando conversamos em seu apartamento no bairro de Higienópolis, em São Paulo. Principal mentor da candidatura de Aécio em prol da renovação no PSDB, há alguns anos FHC tinha dúvidas sobre o real desejo do mineiro de encarar o projeto presidencial. Em agosto de 2007, ele disse a piauí: “Serra seria um bom presidente. Quebra-lanças. Aécio é mais conservador, acomoda mais. Isso dito, politicamente o Aécio é fortíssimo. Pode ser menos preparado que o Serra, mas é popularíssimo. […] Agora, o Aécio gosta demais da vida privada dele. Pode parecer banal, mas é assim que as coisas funcionam. Com a Presidência, muda tudo. Como ele não poderia mais ter a liberdade de que goza hoje, prefere pensar que tem tempo pela frente.”

Quase sete anos depois, FHC fez um adendo a seu diagnóstico. “Nisso o Aécio se parece comigo: ele não é muuuito apegado, ‘Eu quero ser isso, eu quero ser aquilo’. Ele não é assim”, disse, enfatizando o advérbio. “O que não quer dizer...”, refletiu, sem terminar a frase. E foi direto para a moral da história: “Eu também não era muito apegado. E fui presidente duas vezes.”

 No avião, em meio a leves turbulências, Aécio contou que “não queria de jeito nenhum” ser governador de Minas em 2002. Vivia um momento auspicioso no Parlamento, depois de ter sido eleito presidente da Câmara em 2001. Mas há sempre o imponderável. O então governador Itamar Franco enviou o ex-embaixador José Aparecido como emissário para convencer Aécio a disputar o governo com o apoio dele. Itamar tinha rompido com Newton Cardoso, o todo-poderoso do PMDB. Aécio avisou que aquilo não daria certo, porque Itamar era do mesmo partido de Newton. E fez uma proposta inusitada, imaginando que enterraria o assunto: a única possibilidade de considerar uma candidatura seria se Itamar deixasse o PMDB. Certo de que isso não ocorreria, embarcou para a Chapada dos Veadeiros, em Goiás, com uma namorada de Brasília e um casal de amigos. “Foi ótimo, eu estava leve, cachoeira, aquela energia. Voltei tranquilo, dirigindo uma caminhonetezinha que eu tinha, só nós quatro... Chegando em Brasília começa a aparecer o sinal do celular. Não sei quantos mil recados, telefonemas para a casa da Presidência da Câmara.” Itamar havia se desfiliado. “Todo aquele peso que a cachoeira tinha me lavado voltou de novo. E lá fui eu. Virei governador”, contou.



Misto de playboy carioca e menino do interior mineiro seria uma boa definição para Aécio, segundo quem o conhece bem. Quando seu pai, Aécio Ferreira da Cunha, foi fazer um curso na Escola Superior de Guerra, na década de 70, levou toda a família para o Rio. “Aecinho” completou 10 anos de idade na capital fluminense. Era surfista, gostava de moto. Nas férias em Minas, cavalgava. Frequentava badalações em resorts no Nordeste, agitos em Búzios e Angra dos Reis, mas também viajava para a fazenda em Cláudio, fazia cavalgadas até cidades vizinhas. Sempre gostou de jogar peladas de rua. Continuou prezando todos esses hábitos depois de ingressar na política. “Se você precisasse achar o Aécio num final de semana, era melhor desistir. Ele não atendia celular de jeito nenhum. Agora ele me deu um número e até liga pra gente, a qualquer hora e a qualquer dia”, me disse um deputado.

Cruzeirense fanático, quando adolescente Aécio pegava um ônibus no Rio para assistir aos jogos no Mineirão. Não perdia um. Dias depois da posse do primeiro mandato de governador, despediu-se dos ajudantes de ordens, tirou o terno e disse que iria sozinho ao estádio. Foi um fuzuê. O Gabinete Militar se viu obrigado a relaxar os padrões de segurança que adotava para adaptar-se aos hábitos de Aécio.

No Rio, o mineiro começou a cursar direito na Pontifícia Universidade Católica e economia na Cândido Mendes. Em 1982, aos 22 anos, cedeu aos apelos do avô para ajudá-lo na campanha ao governo de Minas. Transferiu o curso de economia para a PUC mineira e abandonou a faculdade de direito. “Se fosse um momento normal da vida brasileira, muito provavelmente eu não teria ido, não teria largado minha vida no Rio”, disse. Por influência do avô, também abortou o mestrado em Harvard, que estava engatilhado para 1985 – “Acho que nunca contei isso pra ninguém, quem sabe eu ainda realize esse sonho represado.” A carreira política começou formalmente em 1986, como constituinte, e se estendeu na Câmara dos Deputados por quatro mandatos consecutivos, até o final de 2002.

Aos 54 anos, completados em março, Aécio é – ou foi, segundo os que sustentam sua candidatura – uma pessoa boêmia. Durante muitos anos era figura assídua em sites de fofocas de celebridades. Além das namoradas do mundo pop – atrizes, modelos, colunáveis –, em diversas ocasiões apareceu na noite com amigos badalados, entre eles o ex-jogador Ronaldo Nazário, o empresário Alexandre Accioly e o apresentador Luciano Huck. “Mudei para o Rio há quinze anos. Conheci muita gente na Cidade Maravilhosa, mas construí poucas e sólidas amizades, que não enchem a palma de uma mão. Aécio é uma delas”, disse Huck por e-mail no final de um dia cheio de gravações na Globo. O animador televisivo confirmou que ele e Aécio se veem com frequência. Disse que não falam de política nos momentos de lazer. Destacou a lealdade e a capacidade do mineiro de ouvir e declarou sem titubear seu voto. “Sem dúvida, acho Aécio a melhor opção para colocar o país no caminho de uma nação mais bacana de se viver.” Na última semana de maio, Ronaldo também tornou público seu voto no tucano.

Numa reportagem de 2008 intitulada “Menino do Rio”, a revista Época fez um roteiro dos bares e restaurantes cariocas que o governador Aécio frequentava. Trazia fotos de baladas em que o político fora visto e de mulheres com quem havia se relacionado. No texto, o publicitário Nizan Guanaes palpitava sobre as chances de Aécio vencer uma disputa presidencial: “Ele tem o charme do JK e o jogo de cintura do Tancredo. Só faltam uns fios de cabelo branco e uma primeira-dama para ele assentar.” Aécio respondia que a madeixa branca apareceria com o tempo. “Mas casar?! Prefiro apoiar o Serra.”

Aécio foi casado durante sete anos com a advogada Andréa Falcão, com quem teve a filha Gabriela, em 1991. Separaram-se em 1998. Tentaram uma reaproximação dez anos depois do divórcio, mas não vingou. A ex-miss Natália Guimarães foi apontada como o pomo da discórdia. Hoje casada e mãe de gêmeas, Natália prefere não falar. Com vários fios grisalhos, Aécio casou-se com a modelo Letícia Weber, de 34 anos, em outubro do ano passado, numa cerimônia quase secreta, após de cinco anos de namoro. A imprensa só ficou sabendo dias depois. A modelo está grávida de gêmeos.

Em novembro de 2009, o jornalista Juca Kfouri publicou em seu blog uma nota que tirou Aécio do prumo. Escreveu que testemunhas viram o senador tucano dar um safanão em Letícia numa festa do estilista Francisco Costa, da Calvin Klein, na piscina do Hotel Fasano, no Rio. Aécio negou e disse que processaria o jornalista por calúnia. Nunca o fez. Kfouri manteve a informação, apesar das contestações do ex-governador. Nunca vieram à tona fotos, vídeos ou testemunhas que confirmassem o caso. Seis dias antes, uma nota similar havia sido postada no site Glamurama, da colunista Joyce Pascowitch. A jornalista não citava nomes. Só falava de “tapa na cara” da moça, “que revidou”.

Juca Kfouri respondeu de forma lacônica a perguntas que lhe enviei por e-mail. Disse que não tem mais contato com as testemunhas que lhe relataram o fato do Fasano, mas mantinha o que escrevera. E confirmou que Aécio nunca o interpelou judicialmente. Ficou por aí. “Meus advogados me orientaram a não tocar neste tema”, concluiu o jornalista.

Internada desde o final de maio na clínica Perinatal, no Rio, sob observação e cuidados depois que teve contrações inesperadas com quase seis meses de gestação, Letícia me enviou uma mensagem por torpedo. “Toda essa mentira foi um grande absurdo”, disse, referindo-se à noite do Fasano. “Me impressiona a maldade de pessoas que se especializam em tentar destruir a reputação de adversários, disseminando esse tipo de coisa na internet. A vida do Aécio, pública e privada, é honrada e imune a esse tipo de mentira.”

Aécio admitiu que sua relação com Letícia teve “idas e vindas”, como a de muitos casais, mas hoje é “muito madura”. “Estou achando lindo ser pai novamente. Estou feliz em casa.” Disse que os gêmeos o deixam “renovado, vigoroso e jovem”. E definiu assim seu momento pessoal: “Eu dei muita sorte na vida. Tenho uma filha extraordinária, tenho uma relação fantástica com minha ex-mulher. Ela é minha parceira querida, amiga, uma mãe maravilhosa, convive comigo, eu convivo com ela. Minha mãe é uma coisa única no mundo, presente o tempo inteiro. Tenho uma irmã maravilhosa, sempre com uma solidariedade e uma generosidade que ultrapassam qualquer limite. A Andrea, que você conheceu...”



Encontrei Andrea Neves no início de abril, no restaurante do Minas Tênis Clube, tradicional reduto frequentado pela elite belo-horizontina. A poucos metros do Palácio da Liberdade, o local, fundado em 1935, está fora da rota de badalações e perdeu o glamour do passado. De cabelos lisos e longos, blusa branca, echarpe discreta, calça preta e óculos de grau, Andrea Neves é uma pessoa silenciosa até no visual. Tanto que seu único enfeite eram os delicados brincos de pérolas. Ela se dirigiu para a varanda e ocupou a mesa de sempre, num canto. Explicou-me que ali sente a energia fluir melhor. Seu pai costumava fazer reuniões políticas no restaurante.

Avessa a entrevistas e exposições, Andrea se assume como uma mulher dos bastidores, da articulação política. Fala baixo e com delicadeza, mas quase sem pausa, puxando o s com afinco – “No Rio dizem que não tenho sotaque, aqui dizem que sou carioca, então resolvi dizer que sou de Juiz de Fora.” Um ano mais velha que o irmão, hoje com 55 anos, foi militante quando jovem e ajudou a fundar o PT no Rio, numa época em que Aécio se ocupava mais de sua prancha. Quando Tancredo chamou o neto em 1982, Andrea não perdeu tempo. “Vim junto, de enxerida.” Desde então ela é o esteio político do irmão. Adversários e mesmo aliados do tucano a chamam de “Goebbels das Alterosas” e “Golbery do Aécio”, alusões ao poder do ministro da Propaganda de Hitler e à iminência parda do governo Geisel.

No primeiro governo do tucano em Minas, no início de 2003, Andrea foi nomeada coordenadora de um grupo de comunicação que reformularia toda a estratégia de marketing no estado. Deu coesão a campanhas e peças publicitárias e pôs em prática a política de distribuir a propaganda oficial entre todos os veículos, ainda que o preço de cada um deles pudesse variar.

“Não há o que atacar na vida privada do Aécio”, afirmou Andrea, entre uma garfada e outra de polvo a vinagrete, que naquele dia “não estava muito bom”, comentaria depois. “As pessoas podem ou não gostar do estilo de vida dele, mas não há razões para ataque”, prosseguiu. “A grande prova disso é que, para atacar, as pessoas precisam inventar, caluniar. Aécio tem uma vida pública de trinta anos. Se houvesse alguma coisa na biografia dele que pudesse sustentar algum tipo de ataque, você não acha que, há muito, já teria sido usada?”, indagou. “Por que a política não pode ser feita com alegria, leveza e integridade?”, perguntou em seguida.

“Leveza” e “alegria” são palavras-chave no repertório do aecismo. Dias antes de falar com Andrea, Anastasia havia me dito que a campanha será “à la JK, leve, sorridente, para cima, animada”. O “lado festeiro” de Aécio, enfatizou o ex-governador, agora candidato ao Senado, “é uma vantagem, um ponto positivo. Dá a ele um aspecto humano. É uma pessoa que se diverte, é feliz”.

No restaurante Andrea disse coisa parecida, traçando uma espécie de genealogia do estilo político do irmão: “Aqui em Minas, o universo político, ainda hoje referenciado nas raízes do PSD e da UDN, registra a grande diferença no modo como os dois partidos fazem política. No PSD, a política era feita com alegria, bom humor, sem ser considerada um fardo. Nessa escola estariam Tancredo e Juscelino. Já a UDN tinha uma postura mais severa, mais pesada, o discurso dos grandes sacrifícios pessoais feitos em nome do povo.”

Semanas mais tarde, o publicitário mineiro Paulo Vasconcelos, que vai coordenar a comunicação da campanha, voltaria ao tema. “O Aécio traz na leveza de ser uma matéria-prima que pode ser explorada tanto para o bem quanto para o mal”, disse.

Em dois momentos Andrea pareceu se emocionar. Suspirou fundo e ficou segundos em silêncio, mirando o horizonte, ao falar da morte de Tancredo. “Eu acho que a decisão do Aécio de entrar na política foi tomada ali. De alguma forma ele selou ali um compromisso. Como nunca fizemos terapia, não sei se é isso”, disse, soltando a seguir uma risada contida. O segundo momento em que o choro se insinuou veio quando ela mencionou o câncer do primeiro marido e o “apoio incondicional” que recebeu de Aécio na ocasião.

Confrontado com a suspeita da irmã de que sua decisão de abraçar a vida pública estava relacionada à morte do avô, o senador tucano disse que foi exatamente o contrário: “A morte dele quase me tirou da política. A vida dele e o convívio que eu tive com ele é que foram preponderantes para me colocar na política. Eu pensava: O que eu vou fazer em Brasília, num governo Sarney? Não tenho nada a ver com esse pessoal. Aí eu fiquei naquela dúvida, se ficava ou não.” O primo Francisco Dornelles, hoje senador pelo PP, o convenceu a ficar em Brasília. Aécio ocupou uma diretoria da Caixa Econômica Federal durante um ano.

No final do nosso encontro, perguntei a Andrea por que ela nunca tinha se candidatado a nada. “Acho que existem várias formas de fazer política. Eu faço política. Nunca quis disputar uma eleição, acho que por pura timidez.” Seria ministra? “Tenha dó!”, gargalhou. Uma coisa é certa: Andrea se muda para Brasília se Aécio vencer. E, dentro ou fora da Esplanada, vai comandar a comunicação do governo.



Desarticulada, a oposição mineira passou anos assistindo ao reinado de Aécio. O PT engoliu o Lulécio (o voto casado em Lula e Aécio), o Dilmasia (os eleitores que escolheram Dilma e Anastasia) e o Pimentécio (a inusitada união do ex-prefeito petista Fernando Pimentel e Aécio para levar Marcio Lacerda à prefeitura da capital). “Aécio sempre incentivou esses bichos esquisitos em Minas”, contou o deputado estadual Rogério Correia (PT), um dos principais opositores do tucano. Agora rompido com Aécio e candidato ao governo do estado, Pimentel tem dificuldades para atacar o ex-aliado.

Foi somente em 2011 que uma oposição mais estruturada começou a surgir, com o nome de “Minas Sem Censura”. Atualmente o bloco parlamentar reúne 21 deputados – do PT, do PMDB e do PRB. Pouco numerosos, mas muito barulhentos, atuam sobretudo via internet. Mantêm um site em que denunciam indicações políticas em estatais, reproduzem insatisfações do funcionalismo, dão voz a suspeitas de irregularidades em obras e parcerias público-privadas, além de baterem na tecla da “mordaça” que o governo mineiro impõe ao Judiciário, ao Ministério Público e, sobretudo, à imprensa.

Em 2006, a blindagem do governo foi tema de documentário de um estudante de jornalismo da Universidade Federal de Minas Gerais, a UFMG. O trabalho de conclusão de curso de Marcelo Baêta teve audiência inesperada na rede e repercutiu fora do país. Trazia depoimentos de jornalistas de peso, como o ex-diretor da Globo local Marco Nascimento, entre outros comentaristas e editores. Todos diziam sempre a mesma coisa: havia coerção do governo sobre a mídia. E mais: teriam sido demitidos depois de relatar episódios contrários aos interesses do governo.

Nascimento conta que havia sido contratado pela Globo com a missão de proteger o jornalismo de eventuais assédios políticos em Minas. O Jornal Nacional reproduziu uma reportagem sobre a disseminação do crack e a incapacidade da polícia de coibir o consumo da droga no estado. Andrea convidou-o para um almoço, durante o qual, na versão dele, disse que o momento era difícil para o governo. Depois desse contato, as reclamações continuaram e chegaram à direção da emissora no Rio. Ele perdeu o emprego. Em nota divulgada à época e reproduzida no documentário, a Globo alegou ser “comum que um profissional demitido procure desculpas além de seu desempenho profissional ou do seu comportamento pessoal para justificar sua saída”. [...] “A isenção do nosso jornalismo não pode ser medida por teorias conspiratórias baseadas no ressentimento, mas pelo que levamos ao ar e é julgado permanentemente pelo nosso público.” Agora chefe de redação do SBT, o jornalista não retornou os contatos telefônicos feitos por piauí.

Produtor independente, com passagem pela Bloomberg, BBC e CNN, o jornalista Daniel Florêncio vive em Londres há mais de uma década. Contratado pela Current TV – experimento digital bancado por Al Gore para produzir documentários –, Florêncio fez em 2008 o vídeo Gagged in Brazil (Mordaça no Brasil), sobre a “censura em Minas”. Na esteira do filme de Baêta, esse também teve impacto. Além de reproduzir as histórias relatadas por Baêta, Florêncio coletou alguns depoimentos de jornalistas que pediram o anonimato.

O PSDB mineiro enviou uma carta a executivos da Current TV em São Francisco, nos Estados Unidos, pedindo que o vídeo fosse retirado do ar. “Queriam saber quem eram minhas fontes, de onde vinham minhas informações”, ele me contou por Skype. O jornalista deu as explicações a seus superiores e o documentário voltou a ser exibido depois de um mês. Na época em que fez o vídeo, Florêncio ofereceu à assessoria de imprensa de Aécio espaço de resposta, mas, segundo contou, “o approach deles foi agressivo”. Meses depois, colegas mineiros vieram lhe perguntar quanto ele havia embolsado do PT para produzir a peça. “A elite belo-horizontina cabe no salão de festas do Minas Tênis Clube. Querem chegar ao poder com ele”, disse, preferindo não citar nomes, sobre o comportamento da imprensa local.



O jornalista esportivo Ulisses Magnus, que é mencionado no documentário de Baêta, hoje trabalha na Record do Rio. No vídeo, ele relatou sua demissão da Rede Minas, a tevê pública do estado. Então presidente do Cruzeiro, o atual senador Zezé Perrella (PDT) não gostou de uma reportagem em que o técnico Vanderlei Luxemburgo esculhambava um jogador e disse a Magnus que assim que Aécio assumisse ele seria demitido. Três meses depois da posse, coincidência ou não, o editor perdeu o cargo. “Me demitiram pelo episódio. Mas não posso jogar pedras nem acusar. O que eu sei é que esse governo investe bastante em publicidade e existe patrulhamento sobre o que se diz ou não”, sustentou Magnus, numa rápida conversa por telefone. Despediu-se de forma curiosa: “Cuidado aí, só isso.”

Andrea Neves considera estapafúrdias as acusações. Quando conversamos, ela me adiantou que não falaria sobre esse tema – já havia acumulado um desgaste pessoal excessivo, tantas eram as informações infundadas. Para a família, a intriga da censura é o único discurso que a oposição encontrou para macular a imagem de Aécio. Na avaliação da equipe do candidato, nenhum dos dois vídeos foi feito com rigor jornalístico, nenhum merece credibilidade.

O tema, no entanto, tira Aécio de seu habitual bom humor. Ao comentar o assunto, foi um dos raros momentos em que ele elevou o tom de voz. “Desde que eu nasci ouço essa história de que a imprensa mineira é complacente. Isso é dito principalmente por quem não lê a imprensa mineira”, disse. “Os mineiros também são críticos e censura é uma lenda urbana”, prosseguiu, passando a analisar o comportamento dos três principais jornais do estado: “OTempo me critica mais que a imprensa nacional; o Hoje em Dia nem conta porque é menorzinho; e o Estado de Minas sempre teve posição pró-governo pelo seu tipo de jornalismo, que não é um jornalismo de questionamento.”

Fundador do Tempo e do Super Notícia (diário popular vendido a 25 centavos), o ex-tucano Vittorio Medioli me disse que seu jornal atua com independência e critica todas as esferas de governo. “Aécio Neves se mostrou várias vezes incomodado, mas não mudamos nossa atitude.” Acrescentou que o senador cultiva uma relação pessoal e intensa com a imprensa – “uma importância talvez excessiva” – que lhe permitiu ter “trânsito privilegiado” em alguns veículos. Disse ainda que a assessoria de Aécio é rápida nas respostas, sobretudo em momentos de crise. “Ele é muito solícito e preocupado em não deixar que prosperem dúvidas a respeito da imagem dele. É muito persistente em exigir que a versão dele apareça.” Aécio “conhece o processo midiático como poucos políticos”, enfatizou Medioli.

É “primário, ridículo, absurdo” pensar que ele ou Andrea ordenem demissões, me disse Aécio. Alegou ser um dos personagens políticos “mais atacados pessoalmente e de forma leviana” pela mídia que é “sustentada com recursos do governo federal”. E completou: “Nunca liguei para diretor de jornal para criticar jornalista, quanto mais para pedir demissão. Eu posso até ligar para o jornalista e dizer: ‘Olha, está errada essa tua informação.’ Isso eu faço. Mas ligar porque o cara publicou algo contra mim? Zero”, finalizou, já com o tom de voz normalizado.



Minas Gerais será a vitrine de Aécio na campanha. Ele não se cansa de frisar que colocou as finanças do estado em ordem, de mencionar o chamado “choque de gestão” ou o “déficit zero”. Em seu primeiro mandato, governou com dezessete secretarias, cinco a menos que o antecessor Itamar Franco, extinguiu quase 3 mil cargos comissionados, reduziu os salários dos secretários e o dele próprio, e passou a remunerar servidores conforme a qualificação e o cumprimento de metas. O tucano costuma apresentar Minas como um oásis do crescimento, mas o fato é que o PIB mineiro, segundo o IBGE, seguiu pari passu o PIB nacional de 2003 a 2010, com pequenas oscilações. O governo do estado divulga o “crescimento chinês” de 8,9% em 2010, mas não faz questão de lembrar que no ano anterior, 2009, o PIB do estado havia diminuído 4%.

À frente da secretaria de Planejamento de Aécio no primeiro mandato, Anastasia dizia na época que a dramaticidade da palavra “choque” não era retórica, mas sim o termo apropriado diante da necessidade de mudanças abruptas num estado marcado pela desordem fiscal. Minas tinha déficit de 2,4 bilhões de reais, salário do funcionalismo escalonado, décimo terceiro atrasado. Como o governo Itamar havia decretado a moratória do pagamento da dívida com a União e não honrara contratos internacionais, era difícil atrair investimentos para o estado.

Aécio adotou medidas pouco populares para atingir o equilíbrio orçamentário. No primeiro ano de seu governo, cortou investimentos, reduziu despesas de custeio, congelou salários do funcionalismo e reviu abonos. Na outra ponta, o estado investiu em parcerias com o setor privado, sobretudo na Saúde e no setor prisional. No ano passado, Minas inaugurou seu primeiro complexo penitenciário administrado pela iniciativa privada, modelo controvertido nos países em que é aplicado. (Nos Estados Unidos, por exemplo, ele é considerado um estímulo à superpopulação carcerária, já que, para que o negócio seja rentável, o poder público precisa garantir um número mínimo de detentos.)

Antes de deixar o governo, Anastasia divulgou um decreto voltando a cortar para dezessete o número de secretarias, que já havia superado as 22 do tempo de Itamar – eram dezenove secretarias fixas e quatro extraordinárias, que, segundo a versão oficial, não aumentavam o custeio. O recuo foi decidido às pressas para não desmoralizar o discurso do presidenciável. O sucessor de Aécio cortou também às pressas os cargos comissionados, que aumentaram 92% (de 2 230 para 4 286) entre dezembro de 2003 e janeiro deste ano. O governo argumenta que esse acréscimo foi justificado pela ampliação dos serviços públicos.

Se, por um lado, são reconhecidas mudanças positivas na gestão em Minas, também não faltam críticas aos abusos de marketing. Autores do livro A Dívida Pública do Estado de Minas Gerais, os economistas Fabrício Augusto de Oliveira e Claudio Gontijo argumentam que Minas saiu do fosso fiscal em parte porque o país começou a crescer mais a partir de 2004, o que trouxe receitas inesperadas para o estado. O livro foi escrito para subsidiar uma frente parlamentar para a renegociação da dívida estadual presidida por um deputado do PT, com base numa consultoria técnica sobre o orçamento mineiro que Oliveira prestou ao Tribunal de Contas do Estado até 2010.

“Déficit zero é marketing e um conceito destituído de significado porque o governo de Minas inflava as receitas de um lado e subestimava as despesas de outro”, disse Oliveira, ex-professor da Unicamp e da UFMG. No lado da receita, afirmou, o governo de Aécio lançava dívidas contratadas, ou seja, dinheiro que teria que pagar em longo prazo. “Dívida não é receita, você apenas tem um equilíbrio momentâneo.” Do lado das despesas, o governo omitia o que não conseguia quitar do contrato da dívida do estado com a União (juros, encargos, amortização). “Minas decretou moratória em 1999. O cara vai chegar como mágico e equilibrar as finanças?”, perguntou Oliveira, que foi secretário da Fazenda adjunto de Itamar.

Aécio costuma dizer que a situação do estado era tão caótica que não havia possibilidade de eleger prioridades, mas sim “a” prioridade. “E foi a educação”, afirmou. Ele vai explorar na campanha o fato de a educação básica em Minas ter obtido a melhor nota do país no Ideb, o indicador criado em 2007 pelo Ministério da Educação para avaliar o desempenho dos alunos em português e matemática. No último ranking, relativo a 2011, Minas ficou com 5,9, contra 5 da média nacional.



O escritório da Gávea Investimentos fica num prédio moderno de uma das ruas mais movimentadas do Leblon, na Zona Sul do Rio. As portas se abrem com sistema biométrico (impressões digitais), como nos laboratórios do seriado americano CSI.

É ali que trabalha Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central de FHC. Crítico agudo e por vezes exaltado da política econômica do governo Dilma Rousseff, ele se tornou o principal fiador de Aécio Neves na área econômica, uma espécie de âncora do discurso da austeridade fiscal.

“Espere três minutos, por favor”, ele disse, entreabrindo a porta da sala de reunião onde eu o aguardava. Voltou exatamente 180 segundos depois – cronometrados.

O economista trabalha em média treze horas por dia e abriu mão de parte de suas tarefas para se dedicar ao projeto presidencial tucano. Ainda se ocupa do plano de construção do campo de golfe olímpico e dos esforços para inaugurar uma unidade do Hospital Sírio-Libanês no Rio. “Também sou consumidor da produção acadêmica”, completou. Atualmente conclui a leitura de O Capital no Século XXI, o best-seller do economista francês Thomas Piketty.

À campanha eleitoral, Armínio Fraga destina pelo menos três horas por dia. Com 56 anos, Armínio, como é chamado, ainda não pretende deixar a Gávea, empresa que criou em 2003 e atualmente administra investimentos de 15,2 bilhões de reais. “Eu não vou redigir programa e tampouco me envolvo em questões de captação de recursos para a campanha”, disse, justificando ser razoável o tempo dedicado a Aécio. “Ele ganhando, e penso que ele tem tudo para ganhar, certamente aí eu vou ter que me desligar”, antecipa o ex-presidente do Banco Central. Armínio Fraga deve ser o ministro da Fazenda se Aécio Neves chegar ao Planalto. Por ora, ele se limita a dizer que “com certeza consideraria ir para Brasília”.

Calvo, cavanhaque e rosto redondo, Armínio tem uma expressão viva quando conversa. Consegue ser ao mesmo tempo elétrico e sereno. Ele e Aécio se comunicam diariamente por e-mail e com frequência por telefone. Encontram-se pelo menos duas vezes por mês. Para Armínio, é uma convivência parecida com a que mantinha com FHC. “Mesmo nos piores momentos preserva-se um bom humor e há espaço para uma convivência minimamente agradável. E sempre profissional”, disse.

A parceria com o investidor George Soros, para quem trabalhou no Soros Fund Management, rendeu a Armínio duras críticas do PT quando ele se integrou à equipe econômica, no furacão de 1999. Foi identificado como a “raposa que tomava conta do galinheiro”. Ele sente indisfarçável orgulho do ajuste fiscal implementado na época. Lembrou que o Brasil foi obrigado a abandonar a paridade cambial e o momento era de absoluta incerteza. “A previsão de crescimento do PIB era de menos 4%, e a previsão de inflação estava dispersa entre 20% e 50%. Se a inflação passasse de 10%, iria reindexar tudo. Introduzimos um sistema de metas, foi necessário apertar a política monetária, as expectativas se acalmaram. O investimento, que vinha devagar, represado, voltou. O consumo voltou e a economia andou”, resumiu.

Um dia antes de conversar com investidores financeiros em São Paulo, no final de abril, Aécio jantou com Armínio Fraga para calibrar o discurso. Se para o mercado financeiro sua presença na campanha tucana é um conforto, para o PT virou munição. O partido associa os colaboradores de FHC e o “ajuste fiscal” a recessão, desemprego, redução de salários e corte de programas sociais. Aécio ajudou os petistas quando declarou a empresários mineiros, durante um almoço, que fará tudo o que for preciso para colocar o país no rumo, até mesmo adotar “medidas impopulares”.

Precisa “ir com jeito”, disse FHC. “Não dá para repetir o que eu fiz. Tem que fazer outras coisas. Os desafios são de outra natureza. Além de restabelecer a credibilidade do governo e das contas públicas, o central é educação, infraestrutura e segurança”, resumiu. E acrescentou: “Tem que modular esse discurso. Não são [medidas] impopulares. Tem que dizer outra coisa: ‘Eu vou resgatar o poder de compra do salário do povo.’ Tem que ser objetivo.”

O pior, na verdade, já aconteceu, me disse Armínio Fraga, na tentativa de reverter o impacto negativo da frase de Aécio. “Conduzir os assuntos fiscais do país de maneira bagunçada só traz confusão e sofrimento. Não serve para nada.
O país vive um momento de inflação alta e baixíssimo investimento”, disse. No fim, rejeitou a pecha de “neoliberal”. “Eu sou liberal com coração à esquerda”, falou.

Voltei a tocar no tema “medidas impopulares” com Aécio no dia em que ele jantou com Armínio Fraga em São Paulo. Ele foi categórico em dizer que, se eleito, manteria a política de reajuste do salário mínimo conforme o crescimento do PIB. Na época, o PT já estava explorando uma entrevista que Armínio deu ao Estado de S. Paulo em meados de abril. Nela, reconhecendo a delicadeza do tema e sem avançar em propostas, o economista disse que “o salário mínimo cresceu muito ao longo dos anos” e que até líderes sindicais reconheciam que o salário em geral “precisa guardar alguma proporção com a produtividade, sob pena de, em algum momento, engessar o mercado de trabalho”.

Em relação a programas sociais, Aécio foi inicialmente vago: “Vamos avaliar melhor vários programas que estão aí? Vamos. Vamos ver qual é o efeito e a consequência de cada um deles.” E antes que eu formulasse nova pergunta,  antecipou-se: “Eu não vou cair nesta armadilha do ‘nós vamos cortar programas sociais’. Porque nós não vamos. Nós vamos é qualificá-los. Nós vamos evitar o desperdício.” O senador apresentou em 2013 um projeto de lei que transforma o Bolsa Família em programa de Estado. Foi uma das suas principais iniciativas no Senado até o momento.
O PT se recusa a votar a proposta para não dar palco ao tucano.



Aécio Neves apresentou no Congresso o esboço de sua plataforma de governo no dia 17 de dezembro do ano passado, uma terça-feira. Composto de doze itens, o documento se organizava em torno de três eixos: confiança, cidadania e prosperidade. Seis dias antes, o tucano havia reunido trinta jornalistas para um jantar em Brasília, no Piantella, tradicional reduto de políticos. No restaurante, fez questão de marcar posição em favor da ética. “Se tiver alguém do PSDB que recebe propina e se isso ficar provado, tem que ir para a cadeia também”, disse aos repórteres. Era uma referência ao Caso Alstom, o escândalo de corrupção no metrô de São Paulo. Aécio estava na ofensiva. Havia escolhido justamente aquela semana para colocar sua candidatura na mídia.

Entre o jantar de quarta-feira com os jornalistas e o discurso na Câmara na terça subsequente, havia uma pedra no meio do caminho. Atendia pelo nome de José Serra. Coincidência ou não, o eterno presidenciável tucano publicou no domingo, dia 15, um artigo na página três da Folha de S.Paulo. O título: “Drogas pesadas no Brasil, inépcia e ideologia.” A primeira frase dizia: “O debate sobre o consumo de cocaína no Brasil pode e deve ser uma pauta em 2014.”

É difícil encontrar no PSDB quem queira falar do assunto. Também é difícil encontrar no partido quem não tenha interpretado o texto como um golpe – e baixo, segundo muitos – contra Aécio. Após contatos por e-mail e telefonemas, Serra alegou, por intermédio de um assessor, falta de tempo e agenda lotada, preferindo não se pronunciar sobre a candidatura do correligionário.

As insinuações de que Aécio já usou cocaína o acompanham há tempos. A internet costuma ser a arena em que isso mais aparece. Com a disputa eleitoral, o assunto recrudesceu na rede. No dia 25 de maio a Folha de S.Paulo revelou que foram enviadas de um computador da Prefeitura de Guarulhos, controlada pelo PT, postagens para o perfil “Aécio Boladasso”, um dos vários no Facebook que se passam por Aécio e fazem a apologia do uso de entorpecentes ou tratam do assunto com deboche. O PSDB levou o caso ao Tribunal Superior Eleitoral. No final de maio, o tucano estava de passagem por Porto Alegre, para apoiar o lançamento da candidatura da senadora Ana Amélia, do PP, ao governo do estado. A repórter Letícia Duarte, do jornal Zero Hora, foi direto ao ponto: “Seus adversários têm difundido uma série de informações acusando o senhor de ser usuário de cocaína. Queria saber como o senhor responde a isso e qual a política de drogas do seu governo.”

Aécio pareceu surpreso. A resposta veio longa: “Você sabe que existe hoje um submundo da política, nas redes. Anonimamente, fazem qualquer tipo de acusação sobre os adversários, esperando que alguém, talvez desavisadamente, com um pouco mais de credibilidade, possa trazer esse tema ao jornalismo sério. O que nós assistimos hoje é uma guerrilha da internet.” A seguir passou a falar de si: “Eu tenho uma história de vida, talvez você não conheça, da qual me orgulho muito, absolutamente digna e honrada, e talvez tenha sido isso que tenha me trazido até aqui.”

Defendeu o aumento das penas para traficantes de drogas e na sequência recorreu a uma imagem futebolística para se defender: “Quanto a acusações como essas, e outras que vão surgir, eu fico me lembrando de juiz de futebol. Todo mundo conhece futebol, né? No futebol o juiz tem duas mães: uma que vai para o campo, quando ele erra o impedimento, ou quando marca um pênalti que não foi. E tem aquela que fica em casa, preparando a macarronada, vendo o final do jogo, passando o uniforme dele para o jogo seguinte. Essa é a mãe real... Aquele... Esse Aécio acusado... Eu me especializei... Como é teu nome?”

“Letícia”, disse a jornalista.

“Letícia... um nome que me inspira muito”, comentou Aécio, numa alusão a sua mulher. “Eu, ao longo dos últimos quinze anos, me especializei numa coisa, talvez você não saiba... Em derrotar o PT.”

Aos 33 anos, Letícia Duarte venceu o Prêmio Esso de Reportagem em 2012. Naquele dia, antes de fazer a pergunta ao candidato, debateu com colegas da redação se seria relevante ou não tocar no tema. “Achamos que era. Não por uma questão moral. Tem todo um burburinho circulando de que ele seria usuário de cocaína e isso passou a ser relevante a partir do momento em que ele assumiu uma postura pública [sobre drogas]”, me disse. Depois do episódio, a jornalista recebeu uma avalanche de comentários agressivos em seu Twitter, a maioria de blogs anônimos. “Eles se referiam a mim como ‘fulaninha’ e diziam coisas do tipo: ‘Você acha que porque é jornalista pode perguntar qualquer coisa: então vou perguntar se você dá a bunda, se você dá o cu.’” E encerrou: “Parecia ação orquestrada para me desmoralizar.”

“Hein? Essa é a pergunta que você está doida para fazer, né?”, reagiu Aécio quando lhe perguntei no início de maio se já havia consumido drogas. “Quando eu tinha 18 anos, sim, experimentei. E ponto final.” Voltei ao assunto dias depois. Por e-mail, pedi que fosse mais explícito sobre o tipo de drogas que experimentou na juventude. Aécio não quis falar por telefone e mandou a resposta também por e-mail: “Eu tenho uma posição clara contra o uso de qualquer tipo de droga. Quando o presidente Obama, e outros políticos no mundo, reconheceram com sinceridade que haviam experimentado maconha na juventude, deram uma contribuição relevante para que debates importantes para a sociedade pudessem acontecer. Quando jovem, experimentei maconha e não recomendo que ninguém faça o mesmo. Como parlamentar, eu tenho posição claramente contrária à proposta de descriminalização do uso da maconha.”

Ao longo da reportagem, assessores, políticos e pessoas próximas de Aécio queriam saber com insistência se a revista também perguntaria ao candidato Eduardo Campos, do PSB, se ele já usou cocaína.

O assunto permeia a campanha de tal forma que empresários, em rodas reservadas, se questionam sobre o impacto da vida privada de Aécio na eleição. Um tucano que defende a candidatura do mineiro, mas que com ele nunca teve intimidade, o interpelou sem rodeios no início do ano e quis saber sobre o suposto consumo de drogas. A sondagem serviria para avaliar se ele se somaria aos colaboradores da campanha. Aécio não reagiu com indignação e também foi direto: “Fui jovem, gosto de mulher, mas nunca fiz nada incompatível com minhas funções públicas”, disse Aécio, segundo descreveu a fonte, que pediu que sua identidade fosse preservada.

Na lista de constrangimentos de Aécio consta o episódio de 2011, quando foi pego numa blitz da Lei Seca no Leblon, nas imediações de seu apartamento. Estava com a carteira vencida e não soprou o bafômetro. Em nota, o governo do Rio disse que Aécio preferiu não fazer o teste. A assessoria do senador afirmou que ele providenciou imediatamente um motorista para conduzir o carro e julgou “não ser necessário se submeter ao bafômetro”. Aécio pagou a multa por infração gravíssima – por se recusar a fazer o teste –, de 957,70 reais, e de 191,54 reais pela habilitação vencida. Disse que teria soprado o aparelhinho se sua habilitação não estivesse vencida.

O publicitário Paulo Vasconcelos lembrou que o tema drogas já havia surgido na disputa pelo governo de Minas em 2002. “O Newton Cardoso botou um comercial no ar insinuando que um dos candidatos cheirava cocaína. E o comercial, com toda sutileza, sinalizava que era o Aécio. O Aécio ganhou no primeiro turno”, disse Vasconcelos, que conduziu todas as campanhas vitoriosas do tucano.

Anos depois, em 2008, no jogo Brasil e Argentina, no Mineirão, Aécio foi surpreendido por um canto inusitado da torcida: “Ô Maradona/Vai se foder/ O Aécio cheira mais do que você.” Jornalistas esportivos que presenciaram a cena relembram que Aécio atribuiu o fato à torcida atleticana, rival do seu Cruzeiro. Mais uma vez, ignorou o episódio.

“É claro que tem uma turma que acha ótimo dizer que ele mexe com drogas, trafica, que leva diamante para fora do país, que ele bate em mulher”, disse Vasconcelos. “Mas todos em Minas sabem quem é Aécio Neves”, logo acrescentou. “Porém, quando você vai para um mundo onde ele é desconhecido, isso se torna um problema. Claro que é um problema. Claro que é desconfortável. A pergunta é: como é que você responde a isso?”

Aos 54 anos, Vasconcelos vai dirigir uma campanha presidencial pela primeira vez, apesar da vasta experiência com marketing político. Além dele – e de Andrea Neves – estão na equipe outros publicitários de peso: PC Bernardes (ex-África, de Nizan Guanaes), Guillermo Raffo (argentino que trabalhou com João Santana e Duda Mendonça) e Pablo Nobel (o argentino que integrava a equipe da campanha de Lula em 2002).

Afável, brincalhão e falante, Vasconcelos me recebeu numa produtora em São Paulo, no final de uma manhã de abril. Atrasou-se porque estava conversando com o ex-governador Alberto Goldman, que Aécio designou como coordenador de sua campanha em São Paulo.



Afinado com José Serra, Alberto Goldman é o vice-presidente nacional do PSDB. Vai trabalhar por Aécio ao lado do vereador Andrea Matarazzo, também um ferrenho serrista, escolhido para articular a candidatura presidencial tucana na capital. A indicação de ambos foi uma sugestão de FHC, de Alckmin e do senador Aloysio Nunes Ferreira, nome mais cotado para ocupar a vaga de vice na chapa. Detectou-se que era preciso conter na origem a sabotagem interna. “Se a maioria do PSDB bentendeu que ele deve ser o candidato, é porque ele é o melhor candidato. A minha opinião sobre isso não tem a mínima importância”, disse Goldman.

O ex-governador de São Paulo conviveu com Aécio no Parlamento. Não o apoiou na disputa pela presidência da Câmara em 2001, nunca se frequentaram. Hoje Goldman reconhece que Aécio adquiriu maturidade política, sobretudo após a vivência como governador: “Ele está se preparando bem, com ideias novas. Tem visão bastante realista das dificuldades.” Perguntei se a vida privada do mineiro poderia lhe trazer danos eleitorais. “Não tem nenhuma importância se ele vai para festa, não vai para festa, se é alegre, se é triste, se é ranzinza. Ninguém vai casar com ele, né? Ninguém vai deitar na cama com ele, né? Em princípio, pelo menos... A maioria pelo menos não”, respondeu, finalizando com uma longa gargalhada.

Ao ser questionado sobre as motivações da escolha de dois serristas para coordenar sua campanha no estado, Aécio gracejou: “Não tem que ser unidade? Então, foi isso.” Aliados do senador explicaram o que de fato vai ocorrer. O mineiro, que além do talento para a conciliação tem a desconfiança em seu DNA, planeja uma espécie de “campanha paralela” em São Paulo. Sabe que não pode ficar de braços cruzados esperando a boa vontade de Alckmin e de Serra. O foco do primeiro é a sua reeleição em São Paulo; para isso, está disposto até a abrir o palanque a Eduardo Campos se o PSB o apoiar no estado. “O Geraldo Alckmin é uma pessoa que joga na retranca. Mas ele joga. E é leal ao partido”, definiu FHC, apostando que, desta vez, “vamos conseguir unificar São Paulo”.

O congresso de municípios paulistas em Campos de Jordão no dia 22 de março foi uma das poucas agendas que Aécio e Alckmin compartilharam no primeiro semestre. Caminharam lado a lado pelas ruas da cidade, até que Aécio foi abordado pela equipe do programa CQC e Alckmin seguiu incólume, de mãos dadas com Lu Alckmin. Perderam-se um do outro. Aécio entrou no local do evento inquieto, cercado por repórteres. “Cadê o Geraldo, cadê o Geraldo?” Só o encontrou minutos depois, quando Alckmin já estava no palco. O escândalo da refinaria de Pasadena estava fresco e o momento era excelente para o mineiro ganhar popularidade ao defender a Comissão Parlamentar de Inquérito da Petrobras. “Nós vamos ganhar a eleição”, ele me disse, sussurrando, enquanto caminhava espremido no meio de um bando de fotógrafos.

Alckmin fez um discurso grandiloquente, citando Santo Agostinho e Alexandre, o Grande. A menção a Aécio se deu quando falava do rei da Macedônia. Antes de partir para a Ásia, disse, Alexandre distribuiu todos os bens e foi indagado sobre o que reservaria a si próprio; retrucou que seria a esperança. “Você é nossa esperança, Aécio.” O mineiro chamou o governador de “parceiro e amigo. Hoje e no futuro”. O evento se estendeu por horas. A partir de certo momento, Aécio passou a olhar com impaciência para o relógio. Saiu de lá às pressas, justificando que viajaria para a Bahia, onde participaria, à noite, do aniversário de 15 anos da filha do peemedebista Geddel Vieira Lima, ex-ministro de Lula. “Vou lá dar um espírito mineiro aos baianos.” Semanas depois, Geddel anunciou que seria candidato ao Senado na chapa tucana.



Encontrei Aécio para esta reportagem pela primeira vez na véspera do lançamento da candidatura de Pimenta da Veiga ao governo mineiro. Ele me recebeu em seu apartamento funcional em Brasília, num café da manhã às 8h30. Apareceu na sala sorridente, vestindo terno e gravata. Disse que havia despertado às 6 horas, correra por 45 minutos e lera os jornais. Entre goles de suco de melancia com maracujá e mordidas no pão de queijo, falou de sua candidatura com muito otimismo, o mesmo que manifestou meses depois ao cochichar – “nós vamos ganhar essa eleição” – no evento de Campos do Jordão. Já naquela manhã de fevereiro, porém, Aécio fez a ressalva: “Se perder, tudo bem.” Disse não precisar da política “para viver e ser feliz”.

Na última conversa pessoal que tive com o senador, o mesmo paradoxo entre otimismo pela candidatura e desapego pela política voltou a se manifestar. Estávamos num jatinho, no trajeto entre Brasília e Ribeirão Preto. “Se eu vencer as eleições vai ser muito bom para o Brasil. Vou tentar fazer o melhor governo da história. Mas se eu não ganhar as eleições, e pode ser que isso aconteça, vai ser muito bom para mim do ponto de vista pessoal.”

Aécio referiu-se à política como algo “muito chato”, “uma convivência muito desgastante”, “um saco”. E emendou falando sem freios dos prazeres da vida: “Quando posso, pego uma prancha... Outro dia mesmo peguei umas ondinhas ali na Macumba [praia na Barra da Tijuca] com um amigo meu.” No arremate, porém, a gangorra do discurso pendeu novamente para a missão pública: “Agora, claro que eu estou determinado a construir esse projeto para o Brasil. E cada vez mais eu acho que, outros quatro anos desse pessoal do PT, nós todos vamos sofrer muito.”

No trajeto o tucano cochilou por quinze minutos, sem nenhum constrangimento, esticando as pernas. Acordou e pediu um energético a um assessor. Mostrou-me as botinas marrons novas que tinha comprado na véspera da visita ao Agrishow, a feira de agropecuária da cidade. “O pessoal de São Paulo é chique”, zombou. Eu já havia percebido seu cuidado maior com o visual. Passou a cortar os cabelos com mais frequência e a usar ternos impecáveis. “Faço alguns no Ricardo Almeida e outros lá em Belo Horizonte, no Geraldino, um senhorzinho daqueles tradicionais”, contou.

Depois de ter reclamado do sanduíche frio de filé, Aécio mascava um chiclete. Já estávamos em procedimento de descida em Ribeirão Preto, e ele, passando as mãos pelos cabelos, observava pela janela a paisagem do estado cujo eleitorado mais cobiça, sem nenhuma certeza do apoio real que terá do seu partido: “Vamos fazer nossa caminhada. Ganhamos? Que bom para o Brasil. Perdemos? Vamos para Harvard, né?”

O PÚBLICO E O PRIVADO

por Malu Delgado

piauí

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