quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Salazar

Um ditador fascista? Político sem brilho, destituído de carisma, Salazar comandou Portugal por mais de 35 anos. A sua condução de um pequeno país, em meio a uma Europa sacudida por abalos, é motivo para que a biografia de um homem insosso esteja longe de ser insossa


por Boris Fausto
piauí

Uma série de ditaduras marcou o mundo ocidental a partir dos anos 20 do século passado. Numa sequência que durou mais de vinte anos, Mussolini inaugurou o cortejo, ao tomar o poder na Itália, em 1922. Seguiram-se Salazar em Portugal (1932), Hitler na Alemanha (1933) e o general Franco na Espanha (1939). Atravessando o Atlântico, o Brasil teve a “glória” de figurar no cortejo, com o golpe de Getúlio Vargas, implantando o Estado Novo em novembro de 1937.
Os ditadores chegaram ao poder por diferentes vias, numa conjuntura em que a democracia liberal se enfraquecera e os regimes chamados fortes pareciam ser a fórmula regeneradora das nações doentes, corroídas pela desordem. Benito Mussolini se tornou Il Duce após um passeio, mitificado pelos seus seguidores: a marcha triunfal sobre Roma. António Salazar assumiu o poder sem abalos. Adolf Hitler foi chamado pelo presidente Hindenburg para salvar a Alemanha. Francisco Franco se destacou pela via sangrenta da guerra civil, da qual saiu vitorioso.
Nesse cortejo de ditadores da Europa Ocidental, segundo o grau de sinistra importância, Hitler ficou em primeiro lugar e Salazar na última posição, embora estivesse longe de ter exercido uma “ditadura branda”. Não por acaso, Hitler, Mussolini e Franco foram objeto de excelentes biografias. Salazar, pelo contrário, recebeu poucas atenções fora de Portugal. E é de um historiador português, Filipe Ribeiro de Meneses, uma qualificada e minuciosa biografia do ditador português. O livro foi escrito originalmente em inglês, sob o título de Salazar: A Political Biographye não há nessa edição o subtítulo publicitário “Biografia definitiva”, que consta da edição brasileira. Traduzido para o português de Portugal, o livro tem para nós, brasileiros, um sabor especial, pelo palavreado luso, que lhe dá um curioso gosto de autenticidade.
É de se perguntar: como é possível atravessar as mais de 800 páginas de uma biografia, cujo personagem central não é uma figura especialmente atraente? Se a minha receita servir, li o livro com grande interesse, prestando menos atenção em minúcias que me parecem secundárias para o leitor brasileiro.
António de Oliveira Salazar, ditador sem brilho, destituído de carisma, teve, entretanto, uma longa carreira política: comandou Portugal por 36 anos. Seus traços de personalidade, seu percurso na condução de um pequeno país, em meio a uma Europa sacudida por muitos abalos, o caráter sui generis do regime autoritário português são motivos suficientes para que a biografia de um homem insosso esteja longe de ser insossa.

alazar nasceu numa pequena cidade, com um desses nomes evocativos de uma aldeia lusa: Santa Comba Dão. Único filho homem da família, viveu a infância num período em que seu pai, vindo da pobreza, alcançara condição mediana. Ao chegar à adolescência, abriam-se para ele dois caminhos numa sociedade que gerava poucas oportunidades econômicas: o sacerdócio e a carreira militar. Salazar entrou para o seminário de Viseu e chegou a receber ordens menores, a caminho de tornar-se sacerdote. Apesar de os padres representarem forte influência na sua formação católica conservadora e no seu moralismo, não seguiu carreira eclesiástica. Seguiu um rumo mais prestigioso, ao ingressar na Universidade de Coimbra em 1910, onde se especializaria em economia e finanças.
Na vida privada, Salazar foi um solteirão, atendido por uma governanta cinco anos mais velha do que ele durante todo o tempo em que viveu em Lisboa. A natureza das relações entre Salazar e Maria de Jesus Caetano Freire, que o país conhecia como dona Maria, deu margem a muita especulação, mas nada de certo se sabe a respeito. Em compensação, dois casos amorosos de Salazar, depois de chegar ao governo, tornaram-se conhecidos. Ambos envolveram relações complicadas: um deles, com uma sobrinha casada; o outro, com Maria Emília Vieira, jovem de vida boêmia, em Paris e na noite lisboeta. Por mais que ele fosse discreto em seus affaires, não era o “monge castrado” como o chamou num panfleto seu opositor Cunha Leal, banido, aliás, para os Açores.
Os casos de Salazar estão bem longe do ideal de família e do papel da mulher que pregava em seus escritos. A família, segundo ele, era “a célula social cuja estabilidade e firmeza são condição essencial do progresso”. Quanto à mulher, o maior elogio que se poderia fazer-lhe resumia-se a um epitáfio romano: “Era honesta, dirigia a casa; fiava lã.”

o plano das ideias, além da raiz fundamental – o catolicismo conservador –, ele foi bastante influenciado pela Action Française, movimento de direita em que figuravam nomes como Charles Maurras, Maurice Barrès e Gustave Le Bon. Este último impressionou Salazar pela relativização das instituições políticas existentes e por não acreditar na capacidade intelectual da grande massa.
A aproximação de Salazar com a política se deu a partir de seus escritos em jornais católicos de província, que tinha em grande conta porque considerava “a imprensa católica do país a mais séria, a mais ponderada, a única decente e limpa, que pode entrar em todas as casas, sem ministrar à donzela incauta o veneno do romance perigoso e sem tecer, sob atraentes formas, a apologia dos criminosos”.
A República portuguesa nunca chegou a se estabilizar. Ficou dividida entre as correntes partidárias, as conspirações monárquicas, a anarquia administrativa e o desequilíbrio orçamentário – herança maldita dos tempos da monarquia, derrubada em 1910. Em dezembro de 1917, um golpe de Estado abriu caminho para a ditadura militar de Sidónio Pais. Figura extraordinária esse Sidónio Pais! Sempre rodeado de belas mulheres, charmoso, carismático, populista, era pessoalmente o oposto de Salazar, que então iniciava seus passos na carreira política. A “República nova” de Sidónio, porém, durou pouco porque o “presidente-rei” foi morto a tiros, num atentado nas ruas de Lisboa, em dezembro de 1918.
Portugal voltou a ser uma democracia cuja morte anunciada percorreu os anos caóticos de 1920 a 1926. Após uma tentativa fracassada, Salazar elegeu-se deputado por um pequeno partido, o Centro Católico Português. Mais tarde, manifestaria desprezo por essa breve experiência parlamentar. Em 1920, oito primeiros-ministros passaram de raspão pelo poder e os assassinatos políticos se tornaram moeda corrente. Por fim, em 1928, uma facção militar desfechou um golpe de Estado. A ditadura, como o regime democrático anterior, seria marcada pela instabilidade não só política, como também econômica e financeira.
Foi um quadro conhecido: gastos crescentes, arrecadação insuficiente, déficits orçamentários. Os ministros da área econômica consideravam essencial obter um empréstimo internacional que ancorasse as finanças portuguesas e permitisse ao país concentrar investimentos em áreas estratégicas. Mas, como lembra Ribeiro de Meneses, havia grande desconfiança de tudo o que fosse português, a ponto de ter-se inventado um verbo em francês – portugaliser –,sinônimo de virar tudo pelo avesso.
Nesse quadro, a estrela do professor Salazar subia. Adversário do empréstimo externo, ele propôs, num relatório amplamente divulgado, medidas fiscais duras para tirar Portugal de uma situação difícil. Entre outras vantagens, o relatório o aproximou dos grandes grupos econômicos, que não eram muitos. Não tardaria a ser chamado para assumir o Ministério das Finanças, como homem providencial. Na véspera de completar 39 anos, tomou posse do cargo, em 27 de abril de 1928. Cada vez mais prestigiado, em meio às divisões no Exército e na sociedade, Salazar foi nomeado presidente do Conselho de Ministros, em junho de 1932. Na realidade, o cargo de primeiro-ministro era mero formalismo. Salazar tornou-se um ditador civil que comandou Portugal quase até sua morte.
Em linhas gerais, as medidas drásticas tomadas por ele, seja como ministro das Finanças, seja como ditador, surtiram efeito. A obstinação pelo equilíbrio orçamentário assim como um choque fiscal, suportado sobretudo pelas camadas pobres, possibilitaram o reequilíbrio econômico de Portugal. O país atravessou relativamente bem a Grande Depressão mundial iniciada em 1929, mesmo sofrendo um corte significativo dos recursos enviados pelos emigrantes portugueses, provenientes principalmente do Brasil. Ribeiro de Meneses rebate a tese corrente de que o Estado Novo luso se caracterizasse pelo imobilismo. Ao contrário, o regime salazarista representaria uma tentativa frustrada, mas nem por isso menos séria, de permitir a Portugal se desenvolver e se modernizar, dentro da ordem e do respeito às hierarquias sociais.
Salazar tornou-se ditador de uma forma bem diversa de seus contemporâneos.Mussolini apelou para a mobilização popular e para o nacionalismo. Supostamente, a Itália, após a Primeira Guerra Mundial, fora desprezada por seus parceiros maiores, vencedores da guerra. Hitler, além de utilizar o terrível ingrediente da conspiração mundial judaico-comunista, inflamou parte da população alemã, batendo na tecla do nacionalismo, ao insistir no direito da Alemanha de ocupar um lugar central na Europa depois de ter sido humilhada pelo Tratado de Versalhes. Franco subiu ao poder como vitorioso em uma guerra civil desastrosa, para ele uma cruzada cristã contra ateus e comunistas.

em longe da retórica ribombante dos ditadores de fascio e suástica, Salazar notabilizou-se por ter salvado Portugal do caos, por uma via que se pode chamar de burocrática. Em torno dele, não se elaborou um culto da personalidade, apesar de seu prestígio na maioria da população. Tinha aversão a aparições públicas, recusava-se a participar de comícios e, para completar, era mau orador e não aceitava baixar o nível dos discursos ou ceder a slogans fáceis de lembrar.
Nem por isso deixou de zelar por sua imagem, a fim de obter ganhos políticos. Por iniciativa do Secretariado de Propaganda Nacional – órgão que lembra o Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP do Brasil do Estado Novo – e dele próprio, sempre se apresentou ao público como um homem humilde, destituído de ambições políticas, que se dispusera a salvar o país, sem medir sacrifícios pessoais. Não fora essa elevada missão, permaneceria na cátedra de Coimbra – um remanso diante das dificuldades de dirigir Portugal. Em maio de 1935, o Diário da Manhã, órgão do regime, lançou essa pérola ao comentar um discurso do ditador: “SALAZAR, ou o ANTIDEMAGOGO: Seria essa a sua melhor definição. O demagogo dirige-se aos maus instintos... Salazar dirige-se às consciências bem formadas, aos impulsos de altruísmo e de equilíbrio, à pequena luz da Graça que dorme, latente, no íntimo de todas as criaturas.”
O salazarismo enfatizava a religiosidade, o nacionalismo, o anticomunismo, a crítica a um liberalismo que a modernidade do século XX não podia contemplar. O nacionalismo era “territorialmente satisfeito”, não se destacava pelo expansionismo, e sim como um instrumento para abafar a luta de classes. O importante era se dar bem com os vizinhos – a Espanha em particular – e manter o status quo nas “províncias de além-mar”.
O anticomunismo tornou-se virulento quando eclodiu a Guerra Civil Espanhola, em 1936. Para o regime, os republicanos e os “vermelhos” eram a mesma coisa, e ambos tinham pretensões negativas em relação a Portugal. Anos mais tarde, o perigo comunista viria a ser uma das justificativas de Salazar para tentar manter as colônias da África.
À primeira vista, pareceria que a ditadura salazarista era mais um regime fascista implantado na Europa Ocidental. A oposição portuguesa, na sua difícil luta política, tinha razões práticas para não olhar Portugal como um caso à parte. Mas, na verdade, apesar de seus namoros com o fascismo, o salazarismo distinguiu-se das correntes totalitárias tanto internas quanto externas.

omo nota Ribeiro de Meneses, no início do Estado Novo talvez a principal ameaça ao regime e a seu líder não viesse da esquerda, mas da extrema-direita, formada pelos integralistas e pelo Movimento Nacional-Sindicalista, de Rolão Preto. Os nacional-sindicalistas tendiam a transformar seu movimento, o dos “Camisas Azuis”, em um partido único. Insistiam em se constituir uma verdadeira representação corporativa da sociedade. Atacavam sem tréguas o comunismo e o capitalismo internacional. Batalhavam pela criação de um clima social propício ao surgimento de um líder carismático, condição que Salazar, sabidamente, não reunia.
Salazar preferiu seguir outro caminho – o da implantação de um regime autoritário, apoiado num setor do Exército. Se a garantia da ordem era cara aos militares, muitos oficiais, especialmente os fascistas e integralistas, faziam fortes restrições a Salazar, seja por sua atitude de transferir a cúpula do poder dos militares para os civis, seja pelos cortes orçamentários que impuseram restrições ao aparelhamento das Forças Armadas.
Como reafirmou Salazar nos últimos anos de vida, os limites do Exército eram claros: a instituição não poderia imiscuir-se nas lutas políticas, nem constituir um partido político, devendo cingir-se a suas tarefas específicas. Mais ainda, Salazar nunca pretendeu se apoiar na mobilização popular, como pretendiam as organizações fascistas, nem na força de um partido único. A União Nacional, lançada no início da ditadura, não teria as características de um partido único nos moldes do fascismo e, principalmente, do nazismo. Uma observação do historiador António Costa Pinto, citada no livro de Ribeiro de Meneses, lembrando que a União Nacional foi criada por decreto governamental, destaca com ironia: “A legislação sobre o partido foi passada do mesmo modo que a legislação sobre as ferrovias. A administração controlava-o, adormecia-o ou revitalizava-o de acordo com a situação de momento.”

alazar se referia a Portugal como país de “elites paupérrimas”. Mas ele pouco fez para ampliar essas elites. Na linguagem de hoje, o primeiro escalão do governo e o aparelho administrativo foram recrutados, essencialmente, nos meios universitários. Além do Exército, apesar das reticências, o regime contou com o apoio da Igreja Católica. Quem, como eu, viveu aqueles tempos associou ao salazarismo dois nomes: o do general Carmona, que foi presidente de Portugal, e o do cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel Cerejeira.
O formato autoritário do regime deveu-se tanto às convicções de Salazar quanto a seu pragmatismo, na medida em que ele levava em conta as lentas mudanças da sociedade portuguesa. Comparando o Estado Novo salazarista com o implantado no Brasil, ao lado de muitas semelhanças há, pelo menos, uma diferença básica: no âmbito de uma sociedade em crescimento, na qual a industrialização ganhava ímpeto, Getúlio não poderia prescindir de uma política para a classe trabalhadora, configurada no populismo.
No terreno ideológico, se Salazar não se afinava com o fascismo, adotava alguns de seus modelos. Um bom exemplo é o Estatuto do Trabalho Nacional, de setembro de 1933, inspirado na Carta del Lavoro de Mussolini, de 1927. Quase dez anos depois, a Consolidação das Leis do Trabalho, baixada no Brasil no curso do Estado Novo, teve a mesma inspiração.
O Estado devia ser o centro da organização política e seu papel seria de “promover, harmonizar e fiscalizar todas as atividades nacionais”, tendo como órgão principal o Poder Executivo. Esse Estado forte deveria intervir em todas as atividades e, decisivamente, no campo econômico, em face da crise de que padecia o capitalismo. Ao mesmo tempo, era necessário reconciliar a nação e o Estado, de uma forma nunca conseguida desde o despontar do liberalismo em Portugal, em 1820. A reconciliação teria de ser alcançada pela educação, por um lado, e, por outro, pelo advento de uma nova Constituição, capaz de reavivar o país, ao refletir realisticamente seus corpos sociais ativos: a família, a paróquia, o município e a corporação econômica. Nessa reconciliação, o papel dominante caberia ao Estado, ao qual a nação deveria se integrar.
Entretanto, Salazar insistia que havia limites morais e espirituais à ação estatal, em áreas que, para além da política, pertenciam à consciência individual. Essas áreas privadas serviam como baluarte teórico e prático contra a extrema-direita, e para manter os católicos em papel relevante. Nesse passo, Salazar se distinguia de seus mestres da Action Française, ao rejeitar a noção maurrasiana de la politique d’abord – a política antes de tudo.

ma expressão muito utilizada na época definiu o regime salazarista como uma “ditadura constitucional”. A expressão tinha razão de ser. Em abril de 1933, uma nova Constituição, aprovada por plebiscito, transformou o Estado numa República unitária e corporativa. A Constituição previa a eleição de um presidente pelo voto direto, cabendo a ele nomear um conselho de ministros e o seu presidente. Outros órgãos institucionais eram a Assembleia Nacional e a Câmara Corporativa.
Teoricamente, a maior soma de poderes cabia ao presidente, mas foi o primeiro-ministro – Salazar, como é óbvio – quem concentrou as decisões governamentais. A Assembleia Nacional e a Câmara Corporativa tinham um papel secundário. Ambas se reuniam apenas três meses por ano e esta última desempenhava papel opinativo. A Assembleia Nacional era uma caricatura de um Parlamento, mesmo porque Salazar – tal como outros ditadores de seu tempo – considerava o Parlamento uma instituição caduca, expressão de um liberalismo moribundo e palco para disputas estéreis dos partidos políticos. O corporativismo era parte de um programa político católico que Salazar sempre defendera. Na prática, porém, as organizações corporativas tiveram como funções prioritárias exercer uma forma de controle social, desenvolver o capitalismo nacional e reforçar o papel do Estado.

  consolidação de Salazar no poder foi rápida. A oposição formava um arco que ia dos republicanos conservadores, empurrados para fora da ditadura militar e do Estado Novo, ao Partido Comunista Português, o PCP, liderado por Álvaro Cunhal. Até o fim da Segunda Guerra Mundial, os opositores tiveram escassa repercussão. O desinteresse pela política, a censura aos meios de comunicação, a repressão dos dissidentes, muitos deles sujeitos a prisões e torturas, foram elementos inibidores de uma oposição eficaz.
Em um país de reduzidas dimensões, a polícia política – a famosa Polícia Internacional e de Defesa do Estado, a Pide – estava por toda parte. Dois estabelecimentos penais eram especialmente temidos: Peniche, uma fortaleza no alto de um penedo, situado na ponta mais ocidental de Portugal, e o campo de concentração do Tarrafal, na ilha de Santiago em Cabo Verde, onde morreram dezenas de prisioneiros políticos. No verão de 1937, um atentado a bomba – façanha de uma célula anarquista – serviu para “justificar” a repressão e para demonstrações de apoio a Salazar.
Em 1945, na onda de democratização que se seguiu ao conflito mundial (como o fim do Estado Novo no Brasil), Salazar anunciou eleições legislativas para novembro daquele ano, abertas a todos quantos quisessem desafiar a lista da União Nacional. Meses antes, chegara a dizer que “as eleições seriam livres como as da livre Inglaterra”. Republicanos e comunistas uniram-se no Movimento de Unidade Democrática, mas a Pide passou a acossar e prender os membros do movimento, que acabou se retirando do pleito.
Uma variante desse cenário ocorreu nas eleições para presidente da República, de fevereiro de 1949. A oposição, na qual o PCP tinha grande influência, lançou o nome de Norton de Mattos, um general de tendências moderadas. Comícios entusiásticos mostraram que o antissalazarismo ganhava a opinião pública. Mas, ainda uma vez, a acossada oposição se complicou e Norton de Matos retirou a candidatura.
 Tornou-se cada vez mais claro que as eleições, mesmo em condições anormais, tinham-se convertido em um problema para o salazarismo. No pleito de 1958, o país foi tomado por uma febre eleitoral com a candidatura de outro general, Humberto Delgado, salazarista histórico que passara para a oposição. Delgado manteve sua candidatura até o fim, e só a fraude eleitoral permitiu a vitória do almirante Américo Tomás.
A vida do general Delgado e de sua secretária brasileira, Arajaryr Campos, terminou de forma trágica, em fevereiro de 1965, quando ambos foram assassinados em território espanhol, ao tentar cruzar a fronteira para Portugal. As mortes, perpetradas por agentes da Pide com a autorização de Salazar, tiveram repercussão internacional e quebraram o prestígio do “manso ditador”. O ex-presidente Jânio Quadros enviou um telegrama a Salazar, insistindo numa investigação completa do caso pelas Nações Unidas.

spetacular foi a façanha do capitão Henrique Galvão, que em janeiro de 1961 fugiu da prisão em Portugal e, à frente de um grupo rebelde de nome quixotesco, o Diretório Revolucionário Ibérico de Libertação, apresou no Caribe um navio de passageiros – o Santa Maria. Rumando para o sul, Galvão enviou uma saudação ao povo brasileiro, à imprensa e ao recém-eleito presidente brasileiro, Jânio Quadros. Ao que tudo indica, Galvão esperou a posse de Jânio para desembarcar no Recife, pois JK, seu antecessor, tinha boas relações com a ditadura portuguesa. O “homem da vassoura” enviou a Galvão uma mensagem de boas-vindas e lhe concedeu asilo político. Ele nunca mais voltaria a Portugal e, anos mais tarde, morreria no Brasil.

o plano das relações exteriores, Portugal mantinha tradicionalmente laços estreitos com a Inglaterra, numa posição de inferioridade. Apesar da oposição das correntes germanófilas, o país entrou na Primeira Guerra Mundial ao lado dos Aliados e enviou um contingente militar para lutar nos campos da França. A implantação da ditadura salazarista não impediu a continuidade das boas relações com a Inglaterra, mas esta nem sempre apoiou as decisões do governo português. Salazar suscitou severas críticas dos ingleses, por exemplo, quando, de forma dissimulada mas significativa, ele apoiou o general Franco durante a Guerra Civil Espanhola.
Ao eclodir a Segunda Guerra Mundial, porém, a neutralidade de Portugal foi apoiada sem ressalvas pela Inglaterra. Salazar manteve essa postura, mesmo quando a queda da França parecia prenunciar a vitória do nazifascismo, e procurou influenciar o general Franco para que a Espanha também se mantivesse neutra. Mas em 1941, quando Hitler invadiu a União Soviética, Franco se colocou abertamente do lado alemão, enviando um contingente militar – a Divisão Azul – para lutar, ou melhor, para ser destroçado, na Frente Oriental.
Salazar nunca se identificou com o regime nazista, embora agentes da Alemanha, como de outros países, circulassem em Portugal sem serem incomodados. Numa carta enviada a um de seus confidentes mais próximos, em setembro de 1941, ele afirmou: “Considero uma desgraça para a Europa que (...) o nazismo se imponha por toda a parte com a sua violência e rigidez de alguns de seus princípios. Para os que têm da Civilização uma noção moral, será um franco retrocesso.”
Salazar não via os Estados Unidos com os mesmos bons olhos com que via a Inglaterra. Os americanos – segundo ele – eram estranhos aos princípios europeus. E representavam um capitalismo sem freios, com pretensões hegemônicas. Alguém perguntaria: que importava, afinal de contas, para os Estados Unidos, a postura do nanico Portugal? A resposta pode ser sintetizada na importância estratégica do arquipélago dos Açores. Em julho de 1941, o presidente Roosevelt enviou uma carta a Salazar, afirmando que a utilização do arquipélago, e de outras possessões portuguesas, nada tinha a ver com uma ocupação. Para o propósito de proteger os Açores, Roosevelt dizia ter todo o gosto em incluir forças brasileiras, mas não se chegou a tanto. Depois de muitas pressões e longos entendimentos, Portugal autorizou a utilização dos Açores, primeiro pelos britânicos e depois, com relutância, pelos americanos.
No pós-guerra, a insistência de Salazar na manutenção das colônias da África a qualquer preço acelerou a desagregação do Império português. Portugal invocava a ameaça da União Soviética no continente africano. Dizia que não havia racismo, e sim harmonia de raças nas colônias portuguesas. E lembrava o exemplo maior do Brasil – uma nação luso-tropical cuja história passava pelo papel desempenhado por Portugal. O defensor intelectual dessa ideologia foi Gilberto Freyre, particularmente no livro O Mundo que o Português Criou. Embora Salazar e seus acólitos tivessem horror da importância que ele atribuía à herança africana em Portugal, deixaram o aspecto de lado para utilizar as ideias de Gilberto Freyre, um intelectual de inegável prestígio. Alguns livros do sociólogo brasileiro foram publicados em Portugal e ele visitou o país várias vezes, a convite do governo português.
As colônias portuguesas na Ásia foram caindo, uma a uma: Timor, Goa, Macau. Mas Salazar não podia admitir o abandono das “províncias ultramarinas” da África, cada vez mais convencido de que a independência delas levaria ao domínio da União Soviética ou ao caos generalizado. Os movimentos de independência estendiam-se da Guiné-Bissau e Cabo Verde a Angola e Moçambique. Em busca de uma política integradora e assimilacionista, o governo tentou sem êxito a reforma – uma espécie de luso-tropicalismo em forma legislativa, na feliz expressão de Ribeiro de Meneses. Na verdade, a prolongada Guerra da Angola, cada vez mais impopular em Portugal e na África, a cujo final Salazar não chegou a assistir, foi um fator dos mais importantesna queda da ditadura.

alazar não teve a morte violenta de Mussolini e de Hitler. Como o general Franco, morreu na cama, de morte natural, em julho de 1970. Meses antes, quando sofrera um acidente cardiovascular, fora substituído no poder, sem seu conhecimento, por Marcelo Caetano, atitude que lhe causou profunda amargura. Caetano tentou inutilmente reformar o regime para garantir sua sobrevivência. A Revolução dos Cravos poria fim à ditadura em 1974, por iniciativa dos quadros médios do Exército, acolhidos pela população, num clima de forte emoção. O deus de Salazar poupou-o desse espetáculo de desordem, como certamente ele o denominaria.
Passadas muitas décadas, a Europa Ocidental de hoje é muito diversa do que foi dos anos 30 até meados da década seguinte. A era das ditaduras teve fim, a Alemanha e a França – inimigas mortais em três guerras – tornaram-se nações amigas, o comunismo deixou de ser um fantasma perturbador, o sonho da União Europeia converteu-se em realidade.
Não obstante, nos dias de hoje, a União Europeia atravessa ventos e tempestades, e os temas econômicos e financeiros – déficits orçamentários, irresponsabilidade fiscal – entraram na ordem do dia. Tudo isso soaria familiar aos ouvidos do professor Salazar e ele talvez pensasse que poderia retornar do “assento etéreo” a este mundo, como homem providencial. Nesse caso, alguém precisaria dizer-lhe que os tempos são outros, pois estamos em busca de líderes, aliás muito escassos, e não de homens providenciais.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Rock in Rio São Francisco

Cheguei  ao Clube Altemar Dutra, em Canindé do São Francisco, sertão sergipano, por volta das 20:00H. Urublues estava no palco, fazendo o de sempre: mais e melhores blues. Na verdade não haveria muitas surpresas no quesito musical naquela noite, já que a escalação constava apenas de bandas já bastante vistas e com apresentações devidamente resenhadas por mim aqui mesmo neste espaço que nos cabe deste grande latifúndio que é a internet. A novidade, no caso, era o local onde a Festival estava acontecendo e o público, em bom número e, o mais importante, animado.
O Clube Altemar Dutra, me parece, é um espaço público, já que ostenta uma gigantesca marca da prefeitura municipal em sua entrada. um espaço amplo, com os shows acontecendo em um salão fechado porém arejado ladeado por um grande hall ao ar livre. Na parte de baixo, um bar e uma piscina – interditada, infelizmente. Ia ser legal ver se repetir ali o banho redentor que foi a marca do encerramento do Rock-se, no longiquo ano da graça de 1998 do século passado. “Um lugar do caralho”, enfim.
Já o público foi surpreendentemente jovem, empolgado, ativo e participativo. A galera estava com uma sede de rock como há tempos eu não via por estas bandas. Falo de Aracaju, claro, cuja cena está morgadíssima, com um público apático e desinteressado que geralmente prefere ficar na porta dos shows bebendo e jogando conversa fora. Foi bonito (re)ver as boas e velhas rodinhas punk, os moshs com “caminha” e as pilhas humanas que se formavam sempre que alguém caía. Tudo isto, inclusive, com uma ampla participação feminina, e em todos os shows, fossem eles de blues, hard rock, hard core ou heavy metal.
A banda que mais incendiou a galera foi a Mamutes, que entrou logo depois da Urublues desfalcada de sua baterista, prontamente substituída à altura por Tony Karpa, da One Last sunset. Foi jogo ganho, com a galera cantando junto as letras das musicas, as meninas dançando e os garotos se “esbagaçando”. Com direito, inclusive, a um quase explícito “assédio sexual” em pleno palco protagonizado por uma garota que subiu ao mesmo e ficou lá um tempão, se esfregando lascivamente principalmente em Kal e Rick, respectivamente o vocalista e o guitarrista (atenção senhoras patroas dos caras, eles não têm culpa, foi uma manifestação totalmente espontânea e, a princípio, sem grandes conseqüências, pelo menos que eu saiba). “É isso aí, rock and roll é libertação”, falou Kal com propriedade entre um urro e outro do camarada Cachorrão e antes de chamar Silvio da Karne krua para o grand finale, uma versão turbinada de “No fun”, dos stooges. Divertidíssimo.
Karne Krua entrou na sequencia e fez um show esporrento, com alguns clássicos do cancioneiro Hard core local cantadas em uníssono pela platéia, ainda com todo o gás e pogando muito. Bonito de ver, principalmente as garotas, que em Sergipe geralmente são muito tímidas (sim, estávamos em Sergipe, mas numa região fronteiriça, e muitos dos presentes não eram sergipanos). A karne fez, inclusive, uma bonita homenagem a Redson, do Cólera, falecido recentemente (e homenageado também no crachá de identificação do evento), com um cover de “passeatas”, e encerrou sua apresentação com uma sequencia matadora tocada no talo e sem intervalo entre uma musica e outra. Excelente.
A banda seguinte, Hatend, de Paulo Afonso, demorou muito a se arrumar e eu, cansado daquele bate bate chato de passagem de som de bateria, saí para tomar um ar e dar uma voltinha na simpática praça que fica em frente ao clube. Acabei apenas ouvindo os shows seguintes de fora mesmo, portanto vou me abster de maiores comentários. Entrei apenas para ajudar Luiz Oliva numa entrevista com Adalberto Feitosa, o mentor e organizador da “parada” (com a inestimável ajuda do incansável Luiz Humberto, agitador cultural “underground” da vizinha Poço Redondo), e foi surpreendente: o cara tem muita história pra contar. Ele tem 50 anos e é paulista. Conheceu Redson na Estação São Bento do metrô ainda no final dos anos 70 e costumava freqüentar clubes paulistanos célebres, como o “Fofinho rock clube”, que eu conheci em minha primeira visita à cidade, em 1991. Foi neste mesmo 1991 que Adalberto se mudou para Canindé para trabalhar na Usina Hidrelétrica de Xingó e se apaixonou pelo local, ainda mais depois de descobrir que por aqui também havia uma cultura “subterrânea” roqueira. Esta é a terceira edição que ele produz do Festival Alternativo rock, sempre com muito esforço e algum prejuízo, mas muita satisfação e nenhuma sombra de arrependimento. Para o ano que vem diz contar com um apoio prometido de uma das facções políticas locais (será ano de eleição e nessa época os recursos públicos costumam ser mais generosos, para o bem ou para o mal), o que viabilizaria uma espera menor por uma nova edição (a última foi há 3 anos). Convidei-o para aparecer qualquer sábado destes nos estúdios da Aperipê FM para contar sua história no ar no ai vivo programa de rock. Espero que role.
Voltei pra casa na mesma noite, apesar da viabilíssima opção de dormir por lá mesmo numa pousada que encontrei cuja diária custava a bagatela de R$ 15,00! A viagem de volta foi tranqüila, no tapetão da “Rota do Sertão”. Não fosse pelo excesso de quebra-molas, por alguns animais na pista e por uma súbita neblina na altura de Itabaiana, teria tirado o percurso, de cerca de 200km, em menos de 2 horas e meia (foram quase 3). Foi o fim de um dia divertido que começou às 11 da manhã e teve sua primeira parada em Itabaiana, onde almoçamos num simpático e aconchegante restaurante a quilo chamado Garfil, que recomendo muito. É na entrada da cidade, já no fim da avenida, próximo ao Cemitério, à sede do INSS (que ficam, oh! Ironia, um em frente ao outro) e à Associação Atlética. Fica a dica.
Chegando em Canindé, uma outra dica é uma visita ao MAX, o Museu de Arqueologia de Xingó, um prediozinho elegante e aconchegante que abriga num ambiente climatizado alguns dos achados arqueológicos da região, dentre eles utensílios domésticos e fósseis dos habitantes locais de 9.000 anos atrás. Para chegar lá, você deve virar à esquerda no trevo que desemboca numa das praias do Rio São Francisco que ficam de frente para a majestosa Usina Hidrelétrica de Xingó.
Virando à direita, você chega em Piranhas, cidade alagoana histórica encravada entre as montanhas e o velho Chico. Vale muito a pena a visita. É uma cidadezinha muito simpática, cheia de ladeiras e casinhas coloridas, que abriga um museu dedicado às coisas do sertão e do cangaço. Foi lá, em Piranhas, que ficaram expostas, pela primeira vez, as cabeças decepadas de Lampião, Maria Bonita e demais membros de seu bando. Destaque para um charmoso e aconchegante café que fica no alto de uma torre histórica que abriga um relógio, a Torre da estação. Recomendo. Recomendo também ver o sol se por entre as montanhas às margens do rio. Muito bonito. Teria sido tudo perfeito, não fosse por uma alma sebosa que cismou de abrir o potentíssimo som de mala do seu carro e espalhar pelo ambiente uma pra lá de desagradável cacofonia de ruídos que alguns chamam de “musica” – uma daquelas “quebradeiras” baianas, pagode diluído para as massas, o que nos fez desistir de bater uma macaxeira com carne de bode pela qual vínhamos salivando há temos - ah, esses gordinhos ...
Na volta para Canindé passamos por um Mirante da Chesf que estava fechado mas que já tinha visitado em minha última passagem por lá. É outra boa dica de passeio, já que lá você encontra diversos souvenirs à venda e pode agendar uma visita à usina, que eu não fiz mas deve ser interessante. Assim como interessante deve ser (certamente é) o passeio de barco pelo rio que te leva a um banho entre os cânios e/ou à rota do cangaço, numa caminhada pela caatinga que termina na gruta de Angicos, em Poço Redondo, o lugar onde o bando de Lampião foi emboscado e chacinado. Que eu saiba, há duas opções: pelo catamarã, que você pode pegar já a partir de Aracaju, indo de van até lá, ou lá mesmo em Piranhas: vimos um local que vende passagens a R$ 40,00.
Voltarei lá e farei isso o mais breve possível.
por Adelvan

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Dossiê Rock Sergipano

ATENÇÃO: VERSÃO REVISTA E AMPLIADA – Este texto já foi publicado, de forma embrionária, em alguns fanzines e sites da internet. A versão que posto agora é revista e ampliada, portanto recomendo uma nova leitura mesmo aos que já o fizeram anteriormente, caso ainda tenham interesse pelo assunto, evidentemente. Gostaria de ressaltar, também, que trata-se de um texto “gonzo”, ou seja, se baseia, principalmente, em minhas memórias e nas memórias de gente que eu ouvi e/ou entrevistei informalmente ao longo dos anos. Em outras palavras: é a MINHA versão dos fatos, portanto não é, necessariamente, a VERDADEIRA versão (se é que ela existe). Fique livre para contestar e/ou reclamar de qualquer trecho que julgue impreciso ou que, sobre o qual, tenha uma outra visão, através do espaço de comentários deste Blog, que está aberto a todos e com a utilização facilitada, sendo permitidas, inclusive, as famigeradas postagens “anônimas”.
por Adelvan Kenobi
Capítulo 01 - A PRIMEIRA “GIG” A GENTE NUNCA ESQUECE!
Era uma tarde chuvosa. Ainda me lembro, eu e mais dois colegas, caminhando rumo à rodoviária, pegando o ônibus e desembarcando em Aracaju - para nós, itabaianenses, quase uma metrópole. Estávamos indo ao nosso primeiro show de rock “underground”. Eu com uma camiseta preta do Slayer, o máximo em agressão naqueles tempos, fim dos anos 80. O II Festcore de Aracaju iria ser realizado no CSU (Centro Social Urbano) do conjunto Agamenon Magalhães – e nós não tínhamos a mínima idéia de onde diabos ficava isso! Pegamos um ônibus, descemos na praça do Siqueira Campos, pedimos informação e fomos a pé na direção indicada. Quando já começávamos a perder a esperança de encontrar o evento, eis que surge à nossa frente a silhueta de uma aglomeração de pessoas também vestidas de preto - não havia dúvida: chegamos! Éramos totalmente desconhecidos de todos e por isso ficamos no nosso canto, tímidos, só apreciando, maravilhados, a movimentação. Não sei quanto a meus amigos, mas eu estava me sentindo a pessoa mais moderna e antenada do mundo, saindo do interior para vir a um festival punk/oi na capital.
Iriam tocar bandas de Sergipe, Alagoas e Bahia. O primeiro Festcore havia se tornado lendário, pois havia reunido pela primeira vez bandas de todo o nordeste e até do norte, o Delinqüentes, de Belém do Pará. Eu, que sou assumidamente da geração Bizz/Rock in rio, não tinha ido, na verdade acho que minha noção do que era punk na época ainda era a que me foi passada pelo Fantástico, que noticiava o surgimento de um novo comportamento agressivo nos jovens dos grandes centros que espetavam os cabelos e ouviam musica barulhenta, mas aquilo pra mim era o mesmo que ouvir falar sobre muçulmanos no Oriente médio ou comunistas na Rússia – tudo muito distante. Aos poucos, porém, comecei a me identificar com a coisa e a achar que, no fim das contas, aquele pessoal excêntrico parecia espelhar melhor o futuro – tinha por volta de 15 anos e era fã da série Mad Max. A coisa começou a ficar séria quando ouvi o Camisa de Vênus pela primeira vez no radio falando palavrões e uma pergunta se recusava a sair de minha cabeça: “E pode ? O cara acabou de dizer que viu a mulher dele, Silvia, com a mão no pau do vizinho, ta tocando no radio com minha mãe e minha irmã na sala, como pode ?” Pronto, havia sido picado e irremediavelmente contaminado: resolvi que compraria aquele disco e assim “Viva, Ao vivo”, do Camisa de Vênus, se tornou a aquisição número 1 de uma coleção que não para de crescer.
A aquisição número 2 foi “Vivendo e não aprendendo”, do Ira! Eram os tempos do estouro do rock nacional e não era tão incomum ver os jovens idolatrando os ídolos da época, como Legião Urbana, RPM e Capital Inicial. Comecei a virar um outsider mesmo quando comprei, de segunda mão, meus primeiros discos de rock “pauleira”: “Somewhere in time” e “Fly on the Wall”, os “novos” do Iron Maiden e do AC/DC. Aí virei um headbanger, só curtia som pesado. Slayer, Metallica e Megadeth eram meus heróis. Lembro que a primeira vez que ouvi Deep Purple e Black Sabbath não gostei, porque não tinham o peso ao qual eu estava acostumado. Mas talvez por morar no interior e, por isso, não ter nenhuma tribo ou grupo de amigos radicais aos quais me associar, sempre fui meio que traidor do movimento, mais aberto a outros tipos de som, e aos poucos fui assimilando o punk rock dos Sex Pistols, o pós-punk do The Smiths e, principalmente, a melancolia guitarreira do Jesus and Mary Chain com “Psychocandy”, um disco que me deixou totalmente atordoado quando ouvi pela primeira vez.
Mas do que eu gostava mesmo eram de guitarras tonitroantes, rebeldia adolescente mesmo. Levava isso como uma profissão de fé, como um “maniac street preacher” buscando a todo custo encontrar ovelhas para seu rebanho. Foi com essa intenção que fiz meu primeiro fanzine, numa época em que eu nem sabia o que era um fanzine, na verdade o que fiz foi uma espécia de “Apostilha” sobre rock que eu datilografava, colava algumas fotos, xerocava e distribuía entre os amigos. Tinha vontade de divulgar o estranho mundo que estava descobrindo e com o qual estava fascinado. A primeira edição do Napalm (era esse o nome da criança, inspirado no logotipo de uma casa noturna de São Paulo que eu havia visto como pano de fundo de um show da Legião Urbana) tinha as biografias de bandas clássicas como Led Zeppelin, Black Sabbath e Venom (que eu curtia mais para chocar), naquela linguagem adolescente de quem sabe muito pouco mas acha que sabe tudo.
A noticia de que havia um fanzine editado em Itabaiana, interior do estado, chegou aos ouvidos de quem fazia rock na capital, graças à ajuda de Passos, um agitador cultural que havia criado a primeira loja de rock independente do estado junto com um amigo, a Distúrbios Sonoros discos. A descoberta da existência dessa loja, para mim, foi como um portal se abrindo para uma nova dimensão que eu sabia existir, mas ficava fora do meu alcance. Estava andando pelo calçadão, com dinheiro no bolso e uma vontade desgraçada de investi-lo num disco de rock, mas a única novidade que as lojas “convencionais” tinham a oferecer era o novo da Plebe Rude, “Nunca fomos tão Brasileiros”, do qual eu não havia gostado (hoje gosto). Foi quando vi um cartazinho xerocado na parede divulgando uma nova loja especializada em rock underground. Meio incrédulo, me dirigi ao endereço citado e eis que me deparo com uma parede recheada com os maravilhosos vinis que eu só conhecia das páginas da Rock Brigade (minha leitura favorita na época) e na Bizz e que eu, quando podia, mandava buscar via correio na Wop Bop, de São Paulo. Inclusive o tão falado “Master of Puppets”, do Metallica, que eu havia acabado de encomendar!!!
A curiosidade e admiração pelo pioneirismo foi recíproca: passei a divulgar o máximo que pude a loja em minha cidade e o dono da mesma, Passos, me ajudou a conseguir uma boa quantidade de cópias do meu zine na repartição da prefeitura onde ele trabalhava. Pude divulgar melhor o Napalm e o retorno foi aparecendo. Consegui aglutinar um grupo de simpatizantes e comecei a receber correspondências do vocalista de uma das primeiras bandas realmente punk de Aracaju, a Karne Krua. Nessa época a figura de Sylvio já era meio lendária, ele era tido como uma espécie de “líder” dos anarquistas (título que ele repudiava com vigor), pois na época a campanha por eles deflagrada em favor do voto nulo chamava a atenção da imprensa. Suas cartas vinham recheadas de panfletos e fanzines punk/anarquistas que me influenciaram bastante na época, cheguei até a dedicar uma edição do meu zine/apostilha à reprodução daqueles textos, o que decepcionou um pouco meus leitores, que estavam mais interessados em diversão pura e simples, mesmo. E foi assim que eu soube que seria realizado o II Festcore, arrumei alguns bravos companheiros para a empreitada e lá estávamos nós, no meio dos punks, carecas e alguns góticos.
Já havia notado que minha camiseta do Slayer estava destoando um pouco do figurino, (haviam primitivas rixas entre punks e bangers, lembram disso? Não consigo pensar em nada mais ultrapassado.) por isso vesti-a novamente do avesso. O clima estava meio tenso mas eu pretendia sair ileso do meu primeiro “walk on the wild side”. Fiquei mais aliviado quando vi um carinha com uma camiseta do Metallica (ainda lembro dela, branca, com uma foto do James Hetfield dos bons tempos berrando com flagrante fúria adolescente). Na época não sabia, mas o nome do figura era Marlio e ele era baixista do Karne Krua. Havia feito questão de ir com aquela camiseta para provocar os caras da banda Jesus Bastardus, de Salvador, que tinham letras falando mal dos headbangers, dentre os quais Marlio tinha muitos amigos.
Naquele tempo, e por muito tempo depois, há de se frisar, show de rock era coisa, basicamente, para homens, eram muito poucas as mulheres que se faziam presentes naquelas baladas pra lá de underground, e algumas delas apareceram no Fest Core, deliciosamente mal trajadas (tava na moda usar blusa aberta com sutiã de renda à mostra), o que completou a festa para meus hormônios adolescentes: show punk, som no talo, clima tenso, garotas seminuas: a noite prometia!
A zoeira começou e as bandas iam se sucedendo naquele velho espírito “do it yourself” que na época era absolutamente novo para mim: os carinhas que estavam pogando no show de uma banda de repente subiam no palco, empunhavam os mesmos instrumentos e começavam a tocar. Jesus Bastardus realmente berrou gatos e cachorros contra os bangers, o que me deixou meio assustado, mas a hora de maior tensão mesmo foi quando estava se apresentando a “Bandeira de Combate”, uma lendária banda skin/oi de Salvador – a policia invadiu o recinto de armas em punho e rolou uma revista, mulheres para um lado, homens pro outro, mas felizmente nada comprometedor foi encontrado e o show pôde continuar. Tocaram ainda Leprozario de Maceió, Azilo Militar, uma banda de Alagoinhas, interior da Bahia, que tinha como peculiaridade um baixista, Jr., filiado e militante de PT, fato raro até hoje nas hostes punk, dominadas pela ideologia anarquista, e as sergipanas Forcas Armadas, Logorreia (banda paralela de Sylvio, acho q foi meu primeiro contato com algo parecido com o grind core, uma barulheira infernal ) e a Karne Krua. Karne Krua foi a que mais me impressionou, pois eu era fã do Cólera e Inocentes a Karne era do mesmo nível, senão melhor.
A noite acabou sem problemas e nós voltamos a pé para a rodoviária, não sem antes presenciar a imagem dantesca de um mendigo velhinho ensangüentado depois de ter sido agredido por vândalos (pra quem pensa que violência urbana é exclusividade dos dias atuais). Na rodoviária encontramos os caras de Alagoinhas e pudemos trocar algumas impressões “interioranas” sobre o evento, que eu sabia que seria um marco em minha vida: de alguma forma era o que eu queria para mim e iria encontrar um meio de me envolver com aquilo. Não deu outra: O terceiro Festcore (de um total de 5 edições) eu ajudei a organizar junto com Sylvio e uma garota que hoje é militante da Igreja Universal do Reino de Deus e marcou a estréia do Câmbio Negro HC, de Recife, em terras sergipanas.
Capítulo 02 – OS ANOS 80
Contrariando todas as probabilidades, Aracaju teve uma movimentação cultural “rocker” efervescente e, na medida do possível, antenada com o mundo, nos anos 80. Não podemos esquecer que os tempos eram outros: estávamos saindo de uma ditadura militar que durou duas décadas e a revolução das comunicações que conhecemos hoje em dia ainda estava engatinhando. Além disso, o país era mais fechado ao comercio exterior, o que significava acesso mais difícil a bens de consumo importados, dentre eles, o que nos interessa: Discos! Só mesmo os punks de Brasília, a maioria filhos ou amigos de filhos de diplomatas, para ter discos do Bauhaus no início daquela década. Não existia MTV no Brasil (muito menos em Aracaju, que ainda hoje não tem, pelo menos em sinal aberto) e, portanto, conseguir um vídeo, mesmo que em péssima qualidade, onde a gente pudesse ver nossos heróis se movimentando era motivo de comemoração! Como a dificuldade é a mãe da improvisação, os “rockers” arranjavam-se com guitarras Gianini, caixas Ciclotron e Baterias Caramuru com pratos de lata sustentados por cabos de vassoura.
Mesmo com todas estas dificuldades, aos poucos, foi se formando uma cena onde jovens procuravam espantar o tédio de viver numa cidade provinciana (“longe demais das capitais”) montando, na marra, bandas underground que nem sempre eram punks na musica, mas quase sempre o eram na atitude (porque não poderia ser diferente). E aos poucos as tribos foram se definindo: Haviam os góticos (também chamados de Dark), por exemplo: adoradores da poesia de Edgar Allan Poe e de bandas como Sisters of Mercy e Siouxsie and the Banshees. Eram os tempos do pós punk e da New Wave, rótulos criados para acomodar grupos que tinham o espírito do punk mas que procuravam caminhos artísticos alternativos. A banda de Aracaju que mais se destacou nessa linha foi o CROVE HORRORSHOW, capitaneada por Eduardo (guitarra/vocal), egresso do PERIGO DE VIDA. Seu nome foi retirado de uma gíria usada no livro/filme “A Laranja Mecânica”. Faziam um som bastante inspirado no pós punk de Brasília, especialmente no Capital Inicial, que despontava para o estrelato na época, e tinham um apelo pop considerável. Por conta disso, composições próprias como “Sem grana” eram espécies de “hits” no underground e ainda hoje são lembradas não apenas por quem os conheceu em inicio de carreira, que durou até meados da metade dos anos 90 (com uma nova retomada nos anos 2000), como também por quem os acompanhou já em sua segunda fase, na década de 90 (a musica era sempre pedida nos shows).
Haviam bandas como ALICE, que contava com Wilton nos vocais, Marcos Odara na bateria e Luiz Eduardo no baixo e fazia um som mais antenado com o que rolava na Inglaterra , LULU VIÇOSA, um rock and roll de maluco metido a poeta, e FOME AFRICANA, do legendário agitador cultural Vicente “Coda”. Vicente era uma figura importante para o movimento porque era o único que tinha a coragem de fazer “rockadas” (como eram chamadas as festas de rock and roll movidas a som mecânico na época), pequenos shows e até um festival (??!!) em sua própria casa, à revelia dos pais, evidentemente. O Festival ficou na memória de quem foi (até hoje soaria incomum você sair de casa dizendo que vai a um festival de bandas de rock na casa de um amigo) e contou com apresentações do CROVE HORRORSHOW, H2O, ALICE, THE MERDAS, FOME AFRICANA e KARNE KRUA.
Vicente começou tocando em bandas punk, mas aos poucos foi diversificando seu aspecto sonoro, o que resultou na Fome Africana, que tinha um som mais solto, até suingado, influenciado por Talking Heads e Blondie. Sua guinada “pop” desagradou proto-punks da época como Roberto Aquino, sócio da Loja Distúrbios Sonoros. Certa noite, num show, o mesmo foi perseguido por vários quarteirões por um Vicente furioso ainda de guitarra na mão, depois de ter ficado a noite inteira pedindo “Cólega! Gagotos Podres! “Gatos de Pogão, “caga”(ele tinha a língua presa). Além de sócio de Passos na loja, Roberto Aquino comandava o programa “ROCK REVOLUTION”, na Atalaia FM. Esse programa ia ao ar uma vez por semana e foi muito importante para a formação de vários “roqueiros” do estado, inclusive eu, que até a metade dos anos 90 ainda tinha algumas fitas gravadas de sua programação. Era o único espaço alternativo no dial da época, onde você poderia ouvir coisas como Mutantes, Harry, Akira S, The Jesus and Mary Chain e bandas locais, como a Alice.
Passos, por sua vez, além de ser um dos primeiros “empresários” do underground, montava bandas, como a PASSOS BLUES BAND, um grupo, evidentemente, com uma sonoridade calcada no blues que tinha entre seus integrantes Sena, da famosa dupla regionalista Sena e Sergival, e PATOS E CAÍPES, que tinha uma garota, Gabriela, no vocal, e fazia aquela linha pop/poética pós-punk tão em voga na década de 80. Passos e Gabriela também tocaram na FOME AFRICANA de Vicente Coda, ela como vocalista e ele no violino (sempre inovador, esse Vicente). A Fome, com essa formação, chegou a se apresentar em Salvador em duas noites concorridas que Passos lembra como “as noites em que eles foram tratados como rockstars”.
No “front” do metal se destacavam PERIGO DE VIDA, TREM FANTASMA (que contava em sua formação com o guitarrista Marcos Vinicius) e GUILHOTINA, cujo maior “hit” dizia que “Cabeças vão rolar ao som do Guilhotina”. Por essa banda passaram alguns “ícones”do metal sergipano, como Augusto César, brilhante artista plástico, que fez vocal num show da banda no Auditório Lourival Baptista. Na verdade a Guilhotina causava furor entre as hordas “headbangers”, porque era a única que mantinha uma rotina mais ou menos constante de apresentações, e devidamente caracterizadas, com caveiras, velas pretas e todo o aparato “indispensável” num show de metal. As composições próprias eram poucas, mas eram compensadas por antológicas versões da clássicos do cancioneiro “metaleiro”, como “eletric eye”do Judas Priest cuja letra, “adaptada” pela PERIGO DE VIDA, falava de uma dor de dente que insistia em atormentar o vocalista. Há ainda o registro de um “projeto”de banda chamado MASSACRE, com Sardinha (irmão de Sardão), Wilson Porrada e Guilhermano (que tinha o costume bizarro de andar o tempo inteiro com um crânio na mão). Chegaram a marcar um show de estréia no bar Scooby Doo, próximo à Barão de Maruim, mas a imperícia dos “músicos”com os instrumentos impediu a apresentação e eles acabaram desistindo. Não sem antes executar, pela primeira vez para o publico sergipano, uma fita k7 do Metallica, uma banda nova que despontava no cenário e que praticamente ninguém por aqui tinha ouvido ainda. Na verdade, apesar da quantidade incipiente de bandas, havia um numero razoável de cultuadores do metal na cidade, como podem atestar as “tretas” com os punks durante o Festcore. César, artista plástico, lembra que no dia seguinte ao II Festcore (eles haviam ido até o local do evento, mas desistiram diante das provocações, para evitar problemas com os organizadores do show, que eram seus amigos) eles chegaram a encontrar um dos que estavam gritando “pau no cu dos headbangers” na noite anterior. Pararam o cara e exigiram que ele enfiasse seu pau no cu deles naquele momento, como o sujeito se recusou, alegando que era “brincadeira”, levou uma madeira de leve no lombo. Bons tempos que não voltam mais ...
A diversidade de influências é sempre bem vinda na arte, porque gera uma maior riqueza de texturas e de idéias. Com efeito, fórmulas imutáveis tendem a gerar um certo cansaço, mas, por outro lado, fortalecem um sentimento de união entre seus seguidores que é difícil de encontrar entre aqueles que têm a mente mais aberta à experimentação. E união é uma coisa importante num cenário adverso como era o do rock sergipano nos anos 80. É inegável, portanto, que o segmento que tinha maior força, era mais atuante e, de certa forma, “segurava” o movimento era o da musica punk/hardcore. A galera do metal também era unida, mas como mencionei acima, tinha poucas bandas - talvez porque o Heavy metal exija uma técnica mais apurada e, em conseqüência, uma melhor aparelhagem, o que era bem mais difícil de se conseguir na época. E assim, Aracaju foi desenvolvendo uma cena punk forte, capitaneada pela figura de Sylvio “Suburbano” e originada, principalmente, no Conjunto Bugio.
Sylvio era a imagem acabada do “roqueiro brasileiro” (inclusive na “cara de bandido”, como dizia Rita Lee). Militava no underground desde o inicio da década, quando montou bandas como VENENO DE COBRA (que inclusive tocou na casa de Vicente) e THE MERDA’S, que contava, na bateria, com o hoje ilustre recifense DJ Dolores, na época Elder “Podre” e, segundo consta, péssimo baterista. Elder foi bastante ativo na cena local antes de se mudar para o Recife, onde tornou-se um designer gráfico respeitável e esteve presente na criação do movimento “mangue beat”. É dele a capa do histórico primeiro disco de Chico Science, “Da lama ao caos”. Como exemplo de seu passado punk, sinta o drama da letra de uma das musicas do THE MERDA’S, “Paranóia”: “Tarde de domingo, paranóia no ar/ soco na TV que não tem nada pra mostrar” (isso porque na época ainda não haviam os maravilhosos programas do Faustão e do Gugu para assistir). Depois Sylvio criou o SEM FREIO NA LÍNGUA, que se auto-definia como “punk and roll”e foi o embrião da KARNE KRUA, que segue na ativa até hoje.
“Sem Freio” era Sylvio no vocal, Almada na bateria, Apache no baixo e Sardão (depois Alice) na guitarra. Não durou muito, já que os dois últimos integrantes pularam fora. Sylvio e Almada fundaram, então, a Karne Krua, com Marcelo no baixo e Vicente “Coda” na guitarra. Marcelo tentava tocar um projeto mais voltado para o oi! Chamado Zaloq 16, fazendo baixo e vocal acompanhado por Cesar na guitarra e Almada na bateria. O grupo, cujo nome era inspirado em um bairro periférico da cidade, na verdade um povoado chamado “Aloc”, não progrediu. Mais tarde Vicente sai da Karne, em nome da “liberdade artística”, Marcelo passa para a guitarra e Marlio, um amigo salvo pelo rock do mundo das drogas e da delinqüência juvenil, assume o baixo. Era a formação mais clássica, que durou até o inicio dos anos 90, separou-se, voltou e gravou o primeiro disco da banda, ainda em vinil. A principal herança do Sem Freio para a Karne foi a musica “Coletivos Malditos”, bastante pedida nos shows até hoje.
Karne Krua assumia sem problemas o rótulo de punk e anarquista e foi uma das primeiras do estilo no norte/nordeste. A esta altura do campeonato Sylvio já estava envolvido até o pescoço com o movimento e tinha contatos por todo o Brasil através do seu pioneiro zine “BURACAJU”, cuja primeira edição data de 1986. O Buracaju era apenas um dos muitos que circulavam na época, com destaque para o CENTAURO SEM CABEÇA, publicado pelo falecido poeta e capoeirista Nagir Macaô, também anarquista, porém sem vínculos diretos com o rock, o SEDUÇÕES ECOLÓGICAS e o CLUBE DO ÓDIO, primeiramente editado por Élder “Podre” e depois por Eduardo do Crove.
A vontade de ver as coisas acontecerem fez com que a Karne Krua começasse a se apresentar em todo e qualquer espaço que lhes fosse aberto, apenas para passar sua mensagem de protesto. Ficaram na história as apresentações no auditório da Escola Técnica, no DCE da Praça Camerino, na inauguração da Concha Acústica do Bairro América, em frente à igreja dos Capuchinhos, na Associação Atlética de Sergipe, no Conjunto JK e numa manifestação em favor da Greve Geral organizada pela CUT, onde deixaram claro que votavam nulo e achavam que o então presidente José Sarney era um filho da puta, o que criou um clima tenso com a policia – consta, inclusive, que só saíram a salvo do palco/palanque graças à intervenção de membros do PT e da CUT que organizavam o evento, dentre eles o hoje governador do Estado Marcelo Déda. Por falar em clima tenso com a polícia, os punks, que andavam com visual carregado (moicano, coturno e gandola). eram constantemente seguidos por viaturas e camburões. Bem diferente de hoje, quando esse tipo de roupa é vendida em shopping centers e usada por jovens que acham que Sid Vicious é uma marca de perfume e que o punk foi inventado pelo Green Day.
Os shows eram eventos esperadíssimos na época, porque eram raros e dificílimos de se realizar. Mas haviam alguns poucos espaços que abriam seus palcos para as bandas de rock. Além dos já citados, haviam os bares do chamado “Baixo Barão”, na Avenida Barão de Maruim, onde a KARNE KRUA, FOME AFRICANA E CROVE HORRORSHOW tocaram uma vez com um microfone pendurado num barbante amarrado no teto, pois não havia pedestal disponível, e um “Barracão Cultural” no centro, na Rua de laranjeiras, onde depois, por um bom tempo, funcionou a sede do jornal Cinform. Quando não havia espaço, improvisavam-se shows na calçada, fechando ruas, ou em praça publica. Nesse esquema ficaram célebres os festivais “CLANDESTINO”, organizados em mutirão pelas bandas punks que começavam a aparecer, influenciadas pela Karne Krua. O primeiro aconteceu na Praça Camerino, com Karne Krua, Logorréia, Leprozário (de Maceió) e CONDENADOS, banda de Jall Chaves, editor do zine BRIGADA DE RESGATE, e na qual tocavam Valdeleno e Fabio, depois baterista e guitarrista da Karne, respectivamente. O II Clandestino rolou na Praça principal do Siqueira Campos e teve Asilo Militar, de Alagoinhas (BA), outra “lenda morta” do punk nordestino.
CONDENADOS causou polêmica na época porque, num determinado momento, aceitou em suas fileiras dois integrantes “carecas”, Val e Cacau. Sim, haviam carecas em Aracaju, inclusive um negro, veja só, e haviam rixas entre os punks e carecas, essas, sim, bem mais justificáveis! Circulava pela cidade um exemplar do deplorável livro revisionista “Holocausto: Judeu ou Alemão”, de autoria do fundador do Partido Nacional Socialista Brasileiro, Zanine, e publicado por uma obscura editora gaúcha apropriadamente chamada “Revisão”. Era uma lamentável seqüência de mentiras e meias verdades que enganou muita gente, inclusive o skinhead negro a que me referi, pois foi ele quem me apresentou o livro, quando eu cursava a Faculdade de Historia. Marcelo, guitarrista da Karne Krua, envolveu-se em varias “tretas” célebres com os “skins”, chegando inclusive a lustrar a careca de um deles com a bunda (segundo o testemunho de presentes). Uma dessas “tretas” aconteceu em frente ao Palácio do Governo, onde os Carecas (que eram poucos, muito poucos) ficavam para verificar se o Pavilhão Nacional estava sendo corretamente descerrado ao fim da tarde, em posição de sentido, pela Guarda. Um dia Marcelo estava passando pelo local e foi intimado pela carecada, que, neste dia em especial, estava em numero maior. Ele não hesitou: arrancou uma viga de uma obra que estava sendo feita na praça e partiu para cima dos nazis, que foram salvos de uma surra pela Policia. Marcelo Gaspar, também conhecido como “inseto”, era recém-chegado de São Paulo, onde chegou a participar do movimento ‘skinhead”, mas não como nazista (nem todos o eram). Esteve presente nos primeiros anos do movimento punk, chegou inclusive a assistir alguns dos memoráveis shows do teatro Lira Paulistana.
Outra banda que marcou a época foi a MANICOMIO, cuja mais célebre formação tinha Fabio Gordinho na guitarra, Roberio (depois Logorréia) no vocal, Moacir (depois peixe fora dagua da Mucous Secretion) no baixo e Robson na bateria. Esse ultimo membro, em especial, fez jus ao nome da banda após seu fim, pois saiu “da” Manicômio para “o” manicômio. Pirou. Foi visto pela ultima vez no mundo “roqueiro” na metade dos anos 90, quando freqüentou alguns shows sempre usando uma máscara anti-gas. Nessa época ele insistia num projeto de alugar uma carreta, colocar as bandas em cima e sair circulando pela cidade, num evento “itinerante”. Até o início dos anos 90 ainda se podiam ver pessoas com a camisetas da manicômio que tinham estampadas a brilhante frase “Os loucos são livres, por isso estão presos”.
FORCAS ARMADAS (que contou com Passos em uma de suas formações) foi outra banda polêmica que apareceu e sumiu sem deixar rastros de uma hora para outra, mas que conseguiu seu lugar na história ao se apresentar em festivais importantes como o II Festcore e o Clandestino. Seu vocalista era vizinho e amigo de Val, o careca, por isso não era bem visto entre os punks. Desconfiança que se mostrou justificada por outros fatores, pois logo ele abandonou o hardcore e montou uma banda horrível chamada “COLORED FUNK” que chegou a fazer alguns shows mas, graças aos diabos, não emplacou.
O I FESTCORE DE ARACAJU foi o mais célebre evento da época e serviu para colocar definitivamente a cidade no mapa do cenário HC/Punk Brasileiro. Organizado por Sylvio e pelos caras da Karne Krua, contou com uma estrutura surpreendente em certos aspectos, pois conseguiram os vestiários do Batistão (principal estádio de futebol do estado) para alojar as bandas, que vieram de todo o Nordeste e também do norte, caso da Delinqüentes, de Belém do Pará. As bandas chegavam na cidade no velho esquema “ônibus, rodoviaria, casa de alguém, local do show”. Na maioria das vezes a pé - quem sabe a distancia da Rodoviária “nova” para o Batistão sabe do que eu estou falando. Tocaram naquela noite, no Vikings Bar, na praia de Atalaia, além do Delinqüentes e Karne Krua, Dever de Classe, legendária banda baiana, Repressão X, de Fortaleza, e Devastação, de Natal. O detalhe pitoresco era que estava acontecendo uma festa de casamento num espaço anexo ao bar e consta que, no momento em que a Devastação executou sua singela canção “Punheta”, cuja letra dizia: “Pra que mulher, se eu tenho a mão?”, a noiva saiu aos prantos e desistiu de comemorar sua data maior. Mais punk impossível. O “Day after” também foi bem punk pois, como era de se esperar, o evento não gerou lucro nenhum e alguns componentes das bandas, entre eles Jayme “Catarro”, do Delinqüentes, tiveram que passar um bom tempo na cidade até que arranjassem a grana necessária para voltar para suas casas. “Perrengues” à parte isso demonstra, por outro lado, que o sentido de cooperação e a força de vontade para que as coisas acontecessem naqueles árduos tempos era bastante forte.
Capítulo 03 – Enquanto isso, em Seattle ...
Na virada da década de 80 para a de 90 a cena rock de Aracaju encontrava-se tomada por bandas de Hardcore, a maioria delas provavelmente influenciadas pela Karne Krua, mas muitas seguindo seu próprio caminho. Começou a formar-se um movimento punk relativamente forte (na medida do possível, claro!), com um bom numero de fanzines e bandas. O metal, por outro lado, reagia e começava a se fortalecer, capitaneado principalmente pela figura de Vicente Mateus, o “Bruxo”, um brasiliense radicado na cidade. Ele era bastante conhecido nos círculos “metálicos” de todo o país, pois era também fanzineiro e mantinha contatos Brasil afora. Influenciou muita gente por aqui ao montar a DEUTERONÔMIO, primeira formação “Death metal” (ou algo parecido) do estado, cuja cena era dominada por bandas como ABISMO OCULTO, de Soneca, que tinham um trabalho calcado principalmente em covers.
Deuteronômio contava com o agitador cultural Carlinhos “Verruga” na bateria e com o guitarrista Natchay. Seu som era porrada como poucas vezes se ouvia na época (a não ser nas bandas de grind/noise, que nós vamos comentar adiante), uma massaroca sonora ensurdecedora por cima da qual Bruxo colocava um vocal desesperado em “hits” como “Kelly, a prostituta” - por sinal a única palavra que eu consegui decifrar da fita demo que eu ouvi na época, e olha que as letras eram em português. A banda com Bruxo, no entanto, teve vida curta, pois o mesmo veio a falecer, afogado, no mar. Para que se tenha uma idéia de como ele era conhecido e querido, quando fui apresentado a Ronan, então vocalista do PUS, em Brasília, ao saber que eu era de Aracaju, a primeira coisa que ele me perguntou foi por Bruxo, e eu acabei sendo a pessoa que deu a ele a noticia de sua morte. Continuaram mesmo depois da morte de seu principal mentor e divulgador, sempre com Natchay na guitarra e Verruga na bateria, e com as demais funções (baixo e vocal) se revezando entre muitos amigos, dentre os quais um indivíduo auto-denominado “Antichrist” – na verdade um anticristo fajuto, como deduzi depois de uma conversa com ele em que o mesmo me disse que achava Jesus um cara legal que foi sacaneado pelos judeus e pelo Império Romano - e por seu irmão, Manoel. Os dois teriam uma participação ativa na cena metal da época. Manoel, inclusive, deu o pontapé inicial da cena grind com uma matriz mais metal ao fundar a banda ANAL PUTREFACTION, dedicada ao “splatter death metal” tão em voga naqueles tempos por conta, principalmente, do lançamento no Brasil do seminal disco “Reek of putrefaction”, do Carcass.
Mas o que que dominava o cenário era mesmo o punk/hardcore. A maioria das bandas dos anos 80, como de praxe, já havia encerrado suas atividades, mas a Karne Krua continuava ativa e uma nova geração começava a surgir e a se unir a membros remanescentes destas outras bandas para montar novos grupos. Dentre os que mais se destacavam estava a CLEPTOMANIA, cujo nome derivava de uma estranha compulsão que algumas pessoas têm para roubar - compulsão essa explicada na letra da musica que levava o nome da banda, “sofremos de cleptomania, roubamos do estado porque ele rouba de nós”. Foram inclusive “astros” de um programa global da época, o “Programa Legal”, com Regina Casé e Luis Fernando Guimarães. Nessa edição eles comentariam, humoristicamente, é claro, as bandas de rock do nordeste, e Aracaju foi escolhida pelo inusitado fato de ser uma das menores capitais do país e mesmo assim ter uma razoável concentração de bandas “underground”. A Karne Krua chegou a ser contatada pela equipe da TV Sergipe (afiliada local da Rede Globo) mas se recusou a aparecer, receosa de ser exposta ao ridículo. Cleptomania se expôs e, até certo ponto, se deu bem, já que o objetivo do programa não era exatamente o de ridicularizar ninguém, a meu ver. Chegaram inclusive a gravar um pequeno videoclipe onde eles apareciam tocando “Asa Branca” de Luis Gonzaga tendo como locação um terreno baldio na periferia da cidade. Resultado: ficaram conhecidos nacionalmente, ao lado da ANAL PUTREFACTION, que apareceu se apresentando ao vivo na antiga concha acústica da praça Tobias Barreto, ao lado da feirinha, para um publico ensandecido e radicalmente underground. Estão vivas na minha memória as imagens de caras com as quais eu convivia diariamente de repente invadindo a tela da poderosa TV Globo e apresentado a galera às câmeras: “Aquele ali é punk, aquel é grind, aquele é metal, são as tribos unidas de Aracaju”. Dentre eles ficou célebre a figura do tal suposto Anticristo, arrotando radicalismo ao dizer que “Sepultura e Ratos de Porão não tão com nada” (alguns anos depois ele seria visto organizando a fila de autógrafos que o RDP estava dando no Shopping Riomar quando estiveram por aqui).

A praça Tobias Barreto era o “point” da época, não apenas dos “roqueiros”, mas da juventude da cidade em geral, por causa da feirinha de artesanato que era o atrativo para as paqueras naqueles tempos pré-shopping center. Os rockers podiam ser vistos reunidos em tribos, punks de um lado, headbangers (nunca “metaleiros”) de outro e, numa determinda época, carecas. Algumas brigas aconteciam. Numa delas, Carlinhos “Verruga” teve que ser socorrido no pronto socorro depois de tomar uma facada de um careca.

Para comprar discos, o melhor lugar era o saudoso CINE FOTO WALMIR, uma loja de materiais fotográficos situada na Praça Teópfilo Dantas que também vendia discos e tinha um acervo fantástico. Lá você poderia encontrar praticamente tudo o que era lançado em termos de rock no Brasil. Muitos de meus vinis que resistem até hoje ao tempo têm o selo dessa loja, como “Nevermind the bollocks” do Sex Pistols, vários do PIL que comprei em promoção quando a mesma estava queimando estoque para fechar, Slayer, Iron Maiden, Jesus & Mary Chain, The Smiths, etc. Mas o verdadeiro “point” underground da galera era a LOKAOS, a loja de Sylvio da Karne Krua que sucedeu a Distúrbios Sonoros como ponto de encontro para ouvir e comprar discos independentes, dessa vez mais direcionado para o rock pesado, como não poderia deixar de ser. Na verdade Sylvio já tinha a idéia de montar uma loja especializada antes mesmo de surgir a Distúrbios Sonoros, e concretizou-a ainda com a Distúrbios em atividade. A loja de Passos e Roberto ficava nessa época na Travessa Deusdeth Fontes, entre o calçadão da João Pessoa e a Rua de Laranjeiras, e a loja de Silvio, quando abriu, ficava na rua de Riachão, no bairro Cirurgia, próximo ao hospital. Era relativamente longe do centro, mas era onde os punks e bangers se sentiam mais à vontade. Lembro-me que saí algumas vezes de Itabaiana, quando ainda morava lá, exclusivamente para comprar discos na LOKAOS. Uma vez fui lá com o dinheiro contado para comprar o LP “Schizophrenia”, do Sepultura, mas não resisti e adquiri também o “Dirty and Agressive”, do RDP. Fiquei sem dinheiro para a passagem até a rodoviária e fui salvo da caminhada pelo Bairro América a pé pelo balconista da época, o lendário “Pino”, que me emprestou uns passes.
Depois a Distúrbios Sonoros fechou e Sylvio comprou o estoque e o ponto deles, passando a funcionar na Travessa. Foram bons tempos. A localização era bem melhor e havia um bar em frente à loja que era freqüentada por todos os malucos da cidade, especialmente aos sábados. Mas veio a crise (como sempre) e o “Suburbano” teve que fechar a loja, para reabri-la alguns anos depois, já no inicio dos 90, no Edifício Casarão do Parque, aquele prédio condenado que até hoje está lá, em ruínas, numa das esquinas do Parque Teófilo Dantas. Nessa época o “pico” tinha uma aparência pra lá de underground devido, principalmente, à estrutura precária do edifício. Lembro-me que havia perdido o contato com a galera “rocker” quando entrei na universidade, mas depois de um tempo fiquei sabendo que a Lokaos havia reaberto e fui lá conferir. Fiquei meio cabreiro quando adentrei o recinto pela primeira vez: parecia uma caverna primitiva entocada no fim do mundo, mas com o tempo fui ficando a vontade e a partir daí passei a ser um dos freqüentadores mais assíduos da loja, que sempre ficava próxima a Marcos Tattoo, o que dava um clima ainda mais alternativo ao ambiente. Por fim, ambos, Marcos Tattoo e a Lokaos (não era combinado, era coincidência) mudaram para a Galeria Lima, na altura do numero 59 da rua de Santo Amaro, onde ficaram por um bom tempo (aproximadamente 6 anos). Na verdade eu era um cliente tão assíduo que acabei comprando a loja inteira, quando essa ameaçou fechar novamente, em 1995.
Mas voltando às bandas punk da época: Havia a LECKTOSPINOISE, que fazia um hardcore visceral ao estilo do RDP das antigas, e tinha como hit (tradição) um som (não se falava “musica”) que fazia uma pergunta pertinente: “A policia foi feita pra nos proteger, mas quem nos protege da policia?”. Logorréia, a banda paralela de Sylvio, continuava sua trajetória com uma formação enxuta e diferente, já que o baterista Cebola fazia também os vocais. E haviam também várias outras bandas extremamente barulhentas e sem técnica, auto-intituladas “noise “ (como um rótulo), que atendiam por nomes como LIPOFRENIA (onde tocavam Cícero Mago e Lelinho, depois ETC), REVOLTA SUBURBANA (com o Mago e Ailton “Casca Grossa”), AIDS (de Nenga, já falecido), RETIRANTES (de onde saiu Jamson Amostra Grátis, hoje na Words Guerrilla), GANGRENA SOCIAL (Cabelo, que depois montaria milhares de outras bandas, Nininho e, novamente, o Mago), OLHO POR OLHO (voltou à atividade no século XXI), ALUCINOISE ALUCINÓGENA e REFUGO (depois REFUGO DE BELSEN, de onde saiu Jamson Madureira, do Camboja), dentre outras.
Houve inclusive a tentativa de montagem de uma banda feminina, as SUBSUBURBANAS, capitaneada pelas irmãs Ivania e Irani, bastante ativas no “movimento” da época. Elas recrutaram para o baixo uma carioca que estava mais pra fã do Engenheiros do Hawaii que qualquer outra coisa e para a guitarra uma garotinha extremamente cool e novinha que até que enganava legal nas seis cordas, mas que deixava claro que curtia de verdade mesmo o metal, tanto que foi uma das fundadoras do Anal Putrefaction. Vi alguns ensaios delas – ensaios que pareciam mais gigs, com muita gente pogando, completamente embriagado de conhaque. Lembro que um dia caí por cima de Fúria, um “filosofo marginal” local, e fui surpreendido por seus gritos de “olha os ratos, olha os ratos”, ou seja, quase esmaguei os hamsters que ele trazia por dentro da gandola. Acabamos cultivando uma amizade que dura até hoje.
A expectativa pelo primeiro show das Subsuburbanas foi grande, mas a banda definhou antes de se apresentar ao vivo. Ficaram as lembranças da baterista, alegando o calor, tocando apenas de sutiã (cara, como eu me senti moderno, novaiorquino, nesse dia!) enquanto a vocalista berrava uma musica que ela dizia ser dos Delinqüentes e que dizia mais ou menos assim: “Da burguesinha, eu como a xana, da burguesinha, eu amasso os peitos, da burguesinha, eu como o cu, sem camisinha !!!!”. Bastante apropriado para uma banda de meninas, não acham ? A letra ficou em minha memória porque me parece que era a única musica que elas conseguiam tocar até o fim.
Enquanto isso, em Seattle, outras bandas eram formadas e, respeitadas as diferenças entre realidades diametralmente opostas, faziam exatamente as mesmas coisas, sem saber que estavam gestando as sementes de uma nova revolução comportamental na história do rock ...
Capítulo 04 – ANOS 90
O “grunge” não teve nenhum representante direto em Aracaju: nenhuma banda, que eu tivesse tomado conhecimento, assumiu para si o rótulo. Foi, no entanto, bastante influente. A Crove Horrorshow, por exemplo, voltou depois de um longo tempo parada carregando no peso das guitarras, assumidamente influenciada pela onda de Seattle (é mais ou menos desta época a segunda demo-tape da banda, “catedral”, com Gutierre substituindo Messinho no baixo). Paradoxalmente, o chamado “funk metal”, um fenômeno também típico dos anos 90 mas não tão influente quanto o grunge, a exemplo do que aconteceu em Maceió, com a Living In the shit, teve reflexos mais marcantes: as bandas de Hard core foram aos poucos incorporando levadas mais “suingadas” ao seu som e surgiu pelo menos um grupo especificamente dedicado ao estilo, O EXPLICIT SEX. Eram, no entanto, “um estranho no ninho”, já que o que predominava mesmo ainda era a velha dicotomia Metal x Hard Core, como veremos a seguir ...
4.1 – Punk rock Hard Core sabe onde é que faz ...
A Karne Krua tem uma qualidade rara nos dias de hoje: a perseverança. A saga da banda continuou anos 90 adentro, virando sua primeira década e o que é mais impressionante: sem nunca parar! Depois de centenas de fitas demo distribuídas incansavelmente via correio por todo o Brasil, já estava na hora deles terem um registro sonoro decente, de preferência no bom e velho (nem tão velho, na época) vinil. Na verdade eles já haviam tido essa oportunidade quando foram convidados a participar de uma coletênea chamada ‘Ronda Alternativa”, lançada por um programa de Rádio de São Paulo e que contava com ícones do cancioneiro underground de todo o país, mas por uma série de motivos, não entraram. O baterista Almada, por sinal, destilava um impressionante radicalismo que o fez publicar uma matéria certa feita no zine Buracaju criticando as bandas que lançavam discos em vinil, acusando-as de se vender ao sistema ao abandonarem o esquema das fitas-demo, já que as bolachinhas negras eram fabricadas por multinacionais (e as fitas k7, não?). Talvez tenha sido esse um dos motivos pelo qual a Karne Krua tenha se empenhado na participação de uma coletânea apenas quando passou pela sua maior e mais traumática mudança de formação, quando saíram o guitarrista Marcelo e o batera Tony, entrando em seus respectivos lugares Fabio e Valdeleno. Uniram-se a alguns ícones do underground nordestino, como Devotos do Ódio, de Pernambuco, e Discarga Violenta, de Natal, mais o Delinqüentes, de Belém do Pará, e lançaram o projeto “Cooperativa do Caos”, com o objetivo de viabilizar uma coletânea 100% independente, como o próprio nome sugere. O disco foi aguardado por muito tempo, mas não saiu: algumas bandas furaram o acordo e acabou seguindo cada um seu caminho. A Discarga lançou sua parte das gravações (todas feitas em Recife) em forma de compacto, o hoje “clássico” “COSMOPOLITA”, e a Karne lançou uma de suas mais badaladas demo-tapes, “SUICÍDIO”. E seguiu tocando onde desse, em Aracaju e nas cidades vizinhas. Tocaram em Maceió e em Recife, este último num show histórico, com a participação de Pedrito, do Câmbio Negro, na guitarra (Fabio, o guitarrista “oficial”, não pôde viajar).
A Karne acabaria gravando seu primeiro disco solo em vinil alguns anos depois, em 1994, e com a formação “clássica”: Marcelo e Almada haviam voltado a seus postos. O LP, auto-intitulado, também foi gravado em Recife, única cidade do nordeste que dispunha de uma infra-estrutura decente na época, com a produção de LA Nino, baterista da Câmbio Negro. O resultado, em termos sonoros, não foi satisfatório: os vocais soavam estranhos e a guitarra sem peso. Mas o repertório era primoroso. A banda estava passando por uma grande fase, compondo novas músicas que posteriormente se tornariam clássicos, como “Mancha de sangue” e “o vinho da história” (esta com letra do poeta e fanzineiro Nagir Macaô, infelizmente já falecido). Tocaram bastante para divulgar o disco, mas basicamente por aqui. Eles tinham (ainda têm) uma grande dificuldade para tocar fora do estado, principalmente por causa de compromissos profissionais e familiares, e estavam sempre mudando de formação: não tardou para Almada sair, desta vez definitivamente. Foi substituído por Rony. Depois foi a vez de Marcelo, que montou uma outra banda, SENSEMILA, com um som mais cadenciado e voltado para o “rapcore”. Para seu lugar foi recrutado Valdeir, um “headbanger”. Sai Rony, entra Valdeleno. Entra Wendell no lugar de Valdeir, depois Mazinho como segundo guitarrista e posteriormente baixista, substituindo Marlio, que vai morar em Recife, e assim sucessivamente. Silvio é a única presença constante na banda ao longo de todos estes anos, e só ele mesmo consegue dizer quantas formações, exatamente, teve a Karne Krua.
Depois do disco seguiram lançando demo-tapes, com maior ou menor repercussão, mas quase sempre num esquema ainda amador, muito embora o resultado surpreendesse, às vezes. Dessa safra saíram “Máscaras para o caos” (que tinha uma interessante versão para “jardim das acácias”, de Zé Ramalho), “Instantes Irreversíveis” (“seco” e “o verdadeiro culpado” são bons exemplos das influências que a banda estava absorvendo e incorporando a seu som na época, notadamente o “rapcore” e o regionalismo) e “Hard core”.
Silvio continuava investindo em projetos paralelos, como o ETC, A Casca Grossa e a Words Guerrilla. ETC era uma banda barulhenta e pornográfica, feita com o principal intuito de ir de encontro ao patrulhamento ideológico punk que era forte na época e enchia o saco com uma série de regrinhas que não podiam ser quebradas. A ETC quebrava todas. Fazia musica sobre o que desse na telha, de uma descrição de uma cagada à exaltação da rapadura, além de muita putaria. Beirava o sexismo, realmente, mas a intenção original era ir de encontro ao falso moralismo. Eu sei disso porque eu também fiz parte da banda – gravei, inclusive, a segunda demo-tape, a antológica “Greatest Hits live”. Já A Casca Grossa era uma espécie de volta às origens do punk, numa época em que a Karne Krua estava bastante influenciada por influências “externas”, como a musica regional. Foi um projeto de Silvio com 3 figuras “das antigas” que não durou muito. Em seu lugar surgiu a Words Guerrilla, com uma interessante proposta de fazer hardcore com um sotaque latino, inclusive com letras em castelhano. Sua primeira demo, “La Fuerza”, marcou época.
Enquanto isso, outras bandas continuavam surgindo meio que no “rastro” da Karne. Uma das mais importantes e que teve uma carreira mais longa e consistente foi a Sublevação, montada no comecinho dos anos 90 por Tacinho. Faziam um som bem “tradicional”, “casca-grossa”, emulando o punk brasileiro dos anos 80, embora nos anos 90 tenham sofrido influência da cena de Nova York e seus flertes com o rap (os headbangers chamavam de Hard Core “pula-pula”). Se dedicavam mais a shows do que à produção de demos, geralmente bem toscas. Tocaram em praticamente todos os lugares que abriram espaço para o rock underground na cidade ao longo de seus mais de 15 anos de existência. A Sublevação, na verdade, nunca acabou “oficialmente”- encontra-se ainda hoje, ao que parece, em estado de hibernação. É o que deduzo do fato de que sempre que encontro Tacinho ele fala que estão voltando a ensaiar e vão voltar a tocar, coisa que não acontece a um bom número de anos.
Havia também, nos anos 90, uma galera mais radical e envolvida com o movimento anarquista que sempre estava montando bandas, geralmente de curta duração – As mais conhecidas eram Plasma, olho por olho e Putrefação Humana. A PH foi criada originalmente pelo falecido Ricardo “Core”, em Penedo, remontada em Itabaiana e adotada por Cícero Mago, Salsichão e, mais tarde, Ulisses - que era egresso de uma outra banda grind, esta já da segunda metade da década, a Cicatriz. O Olho por Olho se definia como “uma banda de grindnoisecore” e foi fundada em 1991 por Xavier (guitarra), Marcelo Prata (vocal) e Paulo (bateria). Já com outro baterista, Chico, fizeram seu primeiro show naquele mesmo ano, num evento chamado “SUBNUTRIÇÃO” ao lado das bandas Cleptomania, Camboja, Refugo de Belsen, Alucinoise Alucinógena, Anal Putrefaction e Logorreia. No ano seguinte lançam sua primeira demo-ensaio, “à beira do caos” e segue tocando. Deram uma longa parada e voltam em 2002 com uma nova demo, “deserto”. Seguem tocando esporadicamente até hoje.
Já a Plasma era uma espécia de “quem é quem” do movimento anarco-punk, com indivíduos já “calejados” na cena: Nininho (ex-sublevação) no baixo e vocal, Cícero Mago na guitarra e vocal e Tacinho (vocalista da Sublevação) na bateria. Tocavam sempre nos eventos mais ligados ao N.A.D.A. (Núcleo de Ação Direta de Aracaju), do qual fazia parte outras bandas, como a Gangrena Social e a Putrefação Humana. Numa segunda formação, que durou até 1997, com a entrada de Cabelo na guitarra, Cícero Mago indo para a bateria e Tacinho para o baixo, gravaram duas demos (posteriormente reunidas em uma só, entitulada “Nossa luta”) e um vídeo Ao Vivo em João Pessoa, na Paraíba.
E havia Cabelo, sempre inquieto, sempre participando ou montando, ele mesmo, suas bandas – caso da Los Repugnantes. Já mais para o final da década ele enveredou pelo mundo do indie rock “low profile” com o projeto HWH – Hair Without Head.
4.2 – Os shows
Os shows, os memoráveis shows da virada da década de 80 para a de 90 ! A precariedade era a mesma, mas os abnegados “promotores” já eram outros, com um gás novo e uma vontade incrível de ver as coisas acontecerem. Foi por essa época que comecei minha “militância” propriamente dita como “agitador cultural”. Junto com Sylvio e uma garota que andava com os punks ajudei a organizar o III FESTCORE DE ARACAJU. Cheguei inclusive a investir a grana que estava guardando para comprar uma bateria e montar minha própria banda (um sonho que acalentava há tempos) no pagamento adiantado da aparelhagem de som. Não tivemos lucro, mas conseguimos recuperar o dinheiro investido, o que foi uma grande vitória. O evento foi super-problemático, mudou de datas algumas vezes e acabou sendo realizado num dia e horário extremamente inusitados, um domingo, por volta das 11:00 da manhã, no Auditório Lourival Batista. Mesmo assim atraiu um bom publico, não apenas da cidade, mas também de cidades vizinhas, como Salvador e Recife.
Era a primeira vez que o Câmbio Negro HC tocava em Aracaju, o que causou uma certa expectativa no meio. Eles já tinham vindo tocar aqui nos anos 80, junto com um Mundo Livre S/A em início de carreira (Fred 04 já havia sido guitarrista da Câmbio Negro), num evento que seria realizado na Barra dos Coqueiros e que se revelou mais uma barca furada, dentre muitas pelas quais embarcavam (e ainda embarcam) todos aqueles que trilham o caminho da musica independente. Lembro que haviam muitos punks oriundos de Salvador, com visuais absurdamente esdrúxulos. Um deles estava com a calça tão detonada que seus colhões vazavam por uma abertura na altura da virilha, deixando-os à mostra. Foi cômico notar que a diretora do Auditório foi tomada de surpresa pela aparência da audiência, me parece que ela não esperava um publico tão excêntrico, mas mesmo assim foi muito simpática, chegando inclusive a nos servir, produtores e publico (que se misturavam e eram a mesma coisa, como deve ser no espírito “do it yourself”), cafezinho. Inclusive para o cara com os colhões vazando pelas calças, não sem um mal-disfarçado e compreensível ar de constrangimento.
Nesse dia descobri, literalmente o “peso” de uma boa aparelhagem de som, pois tivemos que ajudar no trabalho de montagem do equipamento, eu e Sylvio, para diminuir o atraso. Mas o festival começou, valeu o esforço e todos foram felizes. Bom, nem todos: num determinado momento, a Diretora do Auditório sobe ao palco e pede o microfone para reclamar que alguém havia defecado na parte superior do Auditório. Para que o evento prosseguisse, literalmente, “a merda teria que ser limpada”, e lá se foram os produtores, Sylvio e Ivânia, limpar cocô (felizmente eu estava ausente naquele momento e não fui convocado para a ingrata tarefa). Câmbio Negro tocou com o guitarrista da banda Cérbero, também recifense, e que também se apresentou no evento, substituindo Pedrito, que não pôde vir, na guitarra. Tivemos ainda Subversivos, de Alagoinhas, Bahia, e bandas locais de estilos diversos como Karne Krua, Deuteronômio e Refugos de Belsen.
Os tempos eram outros: havia um esforço de união entre as tribos e os punks encararam numa boa a presença de uma banda de metal entre eles. “United Forces”, por sinal, era o nome de uma série de eventos promovidos por Carlinhos “Verruga” nesse mesmo auditório com o objetivo de unir as forças(sic) do metal e do Hardcore em prol da viabilização de shows de bandas de fora do estado que estavam em evidência na época, como Nephastus, da Paraíba, que lançou por aqui o clássico LP “Tortuous ways” numa noite memorável porém com uma qualidade de som abaixo do inclassificável. Tocou também no Auditório a legendária Headhunter DC, de Salvador, já pela segunda vez na cidade. A primeira vez foi num dos primeiros shows de rock realizados no Cotinguiba Esporte Clube, no Bairro São josé, com abertura e (dês)organização do impagável vocalista/baterista Cebola, da Logorréia. Este foi, por sinal, o ultimo show da Logorréia com aquela formação (Silvio se recusa a deixar suas bandas morrerem), ainda com Robério, que depois se mudaria para São Paulo, no contrabaixo. O Cotinguiba, depois, acabaria se tornando por muito tempo um "point" roqueiro da cidade, abrigando eventos como o projeto "UNIÃO DAS TRIBOS". que rolou durante os Sábados de Julho de 1994. O "prêmio" para as bandas locais seria a gravação de um cassete-demo para quem vendesse mais ingressos - não há registro de que alguém tenha "faturado" a parada.
Tive um reencontro com eles num trágico gig no conjunto Santos Dumont. A imagem do show bombástico que eu havia visto no II Festcore ainda estava fresca em minha mente. A caminho do evento, de ônibus, ainda fui exortado a desistir da empreitada por alguns conhecidos que eu havia encontrado por acaso, e que me alertaram: “show de rock, essa hora da noite, no Santos Dumont ? Se eu fosse você, desistia e voltava pra casa.” O Bairro tinha fama de violento, fama essa que se confirmou no final da gig, quando os “roqueiros” foram abordados por um grupo de “Brown” (como eram chamados os malucos “axé” por aqui e em Salvador) armados. Houve disparos, que atingiram Irani, irmã de Ivânia e, na época, baterista das Sub-suburbanas. Foi quando saiu da boca de “Esgoto”, um punk soteropolitano que andava muito por estas plagas, o seguinte comentário: “Porra, Aracaju ta ficando massa, tem até tiroteio”. Eu, por sorte, tinha saído um pouco antes, para não perder o ônibus, mesmo perdendo a esperada apresentação da banda de grindcore CAMBOJA, então com Jamson Madureira na bateria, Fúria no vocal e Sérgio na guitarra. Eu havia travado contato com eles algum tempo antes, num evento realizado num barzinho bacana chamado Zero Grau que funcionava na Praia 13 de Julho, junto com a Anal Putrefaction, e havia gostado muito. Também tinha visto alguns desenhos que o baterista, Madureira, havia feito para o logotipo da banda, e achei muito bons, chegando inclusive a publicá-los na primeira edição do meu novo zine, ESCARRO NAPALM, saudando-os como a maior promessa do então efervescente underground sergipano. Lembro que comentei que havia gostado do nome para o vocalista, Fúria, perguntei quem havia batizado e se era uma homenagem à guerra do Camboja. Ele disse que tinha sido o baterista, mas que ele só sabia que era um lugar onde morreu um monte de gente, no que, por sinal, estava certo, diga-se de passagem.
Nunca foi fácil fazer eventos “underground” em Aracaju. Nos anos 90 a situação melhorou consideravelmente em relação à década de 80, mas mesmo assim era difícil – daí o verdadeiro Oasis em que se transformou o Mahalo, já que foi lá que as bandas tiveram uma acolhida fora de série, continuada e sem preconceitos de nenhum tipo. Mas outros espaços acabavam surgindo, mesmo que por pouco tempo, e eram igualmente importantes, especialmente depois do fechamento do bar do simpático e inesquecível Jajá. O cotinguiba, clube social situada num bairro nobre da cidade, abrigava principalmente a cena metal. O pioneiro na utilização do espaço foi Anderson Lima, então com sua recém-formada produtora, a Destruction produções, com um show de uma banda heavy soteropolitana chamada Zona Abissal. Aberto o caminho, outros seguiram a trilha e por um bom tempo passou a haver shows de rock por lá praticamente todo final de semana, e dos mais variados estilos. Um dos mais bizarros foi um festival punk promovido por Tacinho, da Sublevação, onde o vocalista Morcego, da BOSTA RALA, de Salvador, se apresentou nu. Eu mesmo, junto com os caras da Karne Krua, tentei montar uma produtora e nosso primeiro e infelizmente único (porque fracassado) show foi com a banda Câmbio Negro HC, de Recife, no Cotinguiba. Tomamos um prejuízo imenso, mas podemos ter o orgulho de dizer que fizemos o show mais profissional da época, com uma aparelhagem decente, iluminação e gelo seco, coisa que não existia em shows de rock alternativo até então.
Outro espaço que marcou época, não necessariamente pela qualidade, foi o 799, que ficava literalmente “numa quebrada”, uma “rua” enlameada totalmente escondida ali por trás do Farol da Coroa do meio. O ambiente era propício para o uso de substancias ilícitas, e isso se refletia na qualidade da “audiência” – as pessoas pareciam ir lá muito mais interessadas em poder fumar e cheirar sossegadas do que ver as bandas em si. Lembro de alguns momentos deprimentes, como um show do Lisergia, de Salvador, onde entre uma música e outra dava até para ouvir o barulho dos sapos coaxando e dos grilos cantando, tamanho o silêncio fúnebre que se apossava do recinto. E nem era por falta de público em si, era porqueque a galera fumava e bebia muito e depois “morgava” - só se via gente deitada pelos cantos. Vale registrar a única apresentação ao vivo da MARLIO TÁ IRADO, banda formada por Teleu no vocal, Xavier na guitarra e Jamson Madureira na bateria. O nome surgiu do mau humor do ex-baixista da karne krua, que ficava “irado” com essas bandas de nome engraçadinho tão em voga na época. A idéia do nome em si era boa, mas a salada sonora foi um tanto quanto indigesta, com Teleu fazendo vocais guturais em cima de uma guitarra dedilhada em estilo pós-punk a La Legião Urbana de Xavier e a beteria cheia de contratempos de Madureira. Foi tão ruim que o vocalista se desculpou ao final da apresentação e a banda acabou ali mesmo.
Foi lá também, no Espaço 799, que aconteceu a equivocada primeira vinda do Eddie, seminal formação pré-mangue beat do Recife, em Aracaju. Tocaram para um publico totalmente “nada a ver”, repleto de punks e metaleiros que não absorveram a proposta musical da banda, ainda calcada no rock garageiro porém já distante do que o povo do rock estava acostumado a ouvir. Ainda lembro da pagação de Roger (depois Bomsucesso Samba Clube) no microfone, falando pra galera que eles deveriam abrir mais a mente para outros sons e parar de ficar ouvindo só Iron Maiden, até ser interrompido por Fabio Trummer, que parecia estar mais interessado em terminar o show e dar o fora dali.
Na orlinha Bairro Industrial (antes da reforma) funcionava a pista de Skate de “Rato”, que ficava num belíssimo casarão antigo. Lá aconteceram inúmeros shows, geralmente promovidos pela DESTRUCTION PRODUCTIONS de Andinho, com bandas de Salvador e Maceió, como Dois Sapos e meio, Inkoma, Avoid e Ball (de onde saiu Wado). Haviam também alguns shows no Cultart, Centro de Cultura e Arte da Universidade Federal de Sergipe. Lá se apresentaram grandes nomes como o Mundo Livre S/A e a banda de Hardcore portoalegrense No Rest, que pegou um carro e resolveram fazer uma tour do Rio Grande do Sul ao Rio Grande do Norte. Num desses shows Bruno Montalvão, da MARGINAL PRODUÇÕES, resolveu promover uma boate no Porão do Cultart, o que foi um tremendo sucesso e teve várias edições. Depois de um tempo e devido a complicações com a reitoria da universidade, o evento migrou para o DCE da Praça Camerino e passou a se chamar “Castelo Rá TIM Bum”, apenas com discotecagem, mas algumas vezes associado a shows que por lá aconteciam, dos quais destaco um do macacongs 2099 em que a policia interviu e só permitiu que a banda terminasse sua apresentação com as portas fechadas, causando a fúria dos que ficaram de fora e foram severamente reprimidos na base da metralhadora em punho. Foi bizarro.
Muito mais raramente aconteciam shows também no interior. O primeiro foi em Itabaiana, com a “nata” da cena punk underground local, karne Krua, ETC, Cleptomania e outras. Foi na Sede dos Trabalhadores, clube que algum tempo depois recebeu a banda crossover REALIDADE EMCOBERTA do Recife, numa miniturnê pelo interior sergipano acompanhada da Anal Putrefaction. Em Estância aconteceu o TÚNEL METAL, com o THE CROSS, de Salvador, que acabou gerando uma confusão e a interrupção do evento, para desconsolo das bandas que iriam tocar na sequencia. Alguns shows foram feitos também em Carira, sertão sergipano, o que gerou uma violenta repressão aos mirrados roqueiros locais por parte da tradicionalmente truculenta “autoridade” policial, que os acusava de levar um bando de maconheiros de Aracaju para perturbar a paz publica e perverter a juventude da cidade.
Fora estes shows acontecidos em espaços que, eventualmente, abriam as portas para as bandas alternativas, haviam algumas situações “sui generis”, como da vez em que Vicente Coda conseguiu o Augustu´s, a mais tradicional casa de espetáculos da cidade (uma espécie de “canecão sergipano”) para um evento totalmente protagonizado pelo rock. Era um Festival Beneficente, destinado a angariar fundos para o Hospital de Cirurgia, que encontrava-se em situação crítica na época. Houve, inclusive, chamada na televisão, na afiliada local da Globo, patrocinada pela Fundação Augusto Franco! Foi surreal ver as bandas que eu estava acostumado a assistir em estruturas pra lá de precárias no palco “chic” do Augustu´s com sonorização de Ricardo Sá, já nesta época (e bem antes, até) o melhor som da cidade. Lembro que a Karne Krua fez uma apresentação totalmente “zoada” (os caras estavam completamente bêbados, o que nem era lá tão comum) mas mesmo assim soou bem melhor do que o costume. Vicente se apresentou com um dos zilhões de projetos dele que eu não lembro qual era, e a noite foi encerrada pelo Warlord, que assim que subiu ao palco mandou um sonoro FODA-SE para a produção do evento, numa lavagem de roupa suja em público ligeiramente constrangedora ...
Por falar em Ricardo Sá, lembro que a Karne Krua, durante um bom tempo, ficou proibida de tocar em seu som já que Silvia havia, segundo ele, quebrado um de seus microfones (ele nega). Para driblar a proibição chegaram a tocar, numa ocasião, com o nome de “Silvio e sua banda suburbana”.
Houve também um grande show que não houve: Plebe Rude, no Ginásio de Esportes Constâncio Vieira. Foi anunciado, teria a abertura da karne krua, mas uma súbita proibição de entrada de menores de idade, aliada a uma repressãozinha policial básica na entrada, tomando coturnos e gandolas do público, inviabilizou o evento.
4.3 – O Metal sergipano
A semente foi plantada ainda nos anos 80, com nomes como “Guilhotina”, já citados no segundo capítulo, mas algo que se possa chamar de “cena” do metal sergipano só frutificou, realmente, no início da década de 90. E os principais responsáveis por este pontapé inicial, pode-se dizer, foram os caras da Deuteronômio, primeiro Bruxo, que era amigo de todos e sempre procurava unir punks e headbangers numa causa comum, depois Carlinhos “Verruga”, que levou a banda em frente e promoveu os primeiros intercâmbios ao trazer bandas de fora para tocar aqui, como Headhunter DC de Salvador e Nephastus da Paraíba. Posteriormente formou-se a Warlord, já voltada para o Heavy Metal mais tradicional, cuja estréia nos palcos aconteceu num evento ao ar livre, numa praça do conjunto Sol Nascente, ao lado da Karne Krua e do Engenheiros do Hawaii cover (!!!!).
A Warlord acabaria se tornando a formação Heavy Metal com maior longevidade no estado, já que começou em dezembro de 1991 e seguiu em frente até meados do fim da primeira década do século XXI, sempre com George Oliveira nos vocais e Otávio Jr. na guitarra, abrindo inclusive shows de bandas importantes do cenário nacional e internacional, como Dorsal Atlântica, Sepultura, Angra, Shaaman e Tribuzy. Em dezembro de 1993, com sua primeira formação – George (V), Júlio Fonseca (D), Otávio e Vanicson (G), e Dalmar (B) – lançaram a Demo Tape Warlord ’93, gravada em 8 canais no AV Studios e contendo as músicas “Los Angeles In Blaze”, “Death Will Smile For You”, “Get Out Of The Way” e “Warlord”. Em agosto de 1996 veio ao mundo a segunda demo, “God kill the king”, com a faixa-título, que acabou se tornando uma espécie de “hino” da banda, sempre uma das mais pedidas nos shows, e mais “Walkin’ To The Abyss”, “Money (Ain’t a Mortal Crime)”, “Angry Young Man” e “Prisoner Of Insanity”. Passaram por muitos altos e baixos, longos períodos parados intercalados por algumas apresentações consagradoras, mas sofreram um sério revés recentemente, com a saída, parece que em definitivo, do vocalista George, justamente quando seu primeiro Cd “oficial”, a princípio intitulado “Land Of Agony”, estava finalizado e prestes a ser, finalmente, lançado. Chegaram a fazer um último show, com um vocalista convidado, na abertura da apresentação de Blaze Bayley, ex-Iron Maiden, em 2009, em Aracaju, mas atualmente encontram-se parados mais uma vez, muito embora não tenham tido seu fim anunciado “oficialmente”. Uma pena, pois tive o prazer de tocar uma das faixas do disco em meu programa de rádio e posso afirmar que o material é de primeira.
Outra banda de metal “tradicional” célebre na cidade é a Tchandala, fundada em 1996 por Dejair e Pidele e em atividade até os dias de hoje graças, em grande parte, à persistência de Dejair, que assumiu os vocais e está sempre pronto a levar adiante a bandeira do metal sergipano. A formação original contava com o próprio, Dejair (que posteriormente tocaria na Karne Krua), no baixo, Pidele no Vocal, Sandro na guitarra base, Silvio na Guitarra solo) e Hudson "Codó" na bateria. A primeira demo foi “The Begining”, de 1998. Vale o registro de uma passagem pitoresca da carreira da banda, uma das coisas pelas quais qualquer um que milite no meio "underground" está sujeita a passar (e passa, invariavelmente): quando eles se apresentaram na extinta Rua 24 Horas o locutor, acostumado ao pagode, axé e demais ritmos popularescos, os apresentou da seguinte forma: “E agora com vocês, TCHAN ... Não, não é o Tchan da Bahia, é a Tchandala de Sergipe!”. Fala sério ...
Antes do surgimento da Tchandala, durante um bom período da primeira metade dos anos 90, o Warlord reinava sozinho na seara do metal dito “tradicional”, pois o que imperava realmente era o Death Metal, com algum espaço para o thrash, apenas. O principal nome do estilo era justamente a Deuteronômio, mas alguns outros se juntaram a eles, como a Anal Putrefaction, que do grind foi evoluindo para o Death, Necrofilia e Mucous Secretion, estas duas últimas num levada mais “Death/grind”. Os shows da Mucous eram um espetáculo à parte, com velas espalhadas entre o público e toda uma mise-em-scene metal que destoava completamente da figura de seu baixista, Moacir, que era punk. No thrash, destaque para a Rust Makers e, principalmente, Agony Season, além da Metáfora, da qual falaremos adiante. Agony Season chegou a gravar uma demo-tape com uma qualidade bastante satisfatória para os padrões da época, com uma bela capinha desenhada por Jamson Madureira. Haviam ainda nomes como a Fortress, da qual faziam parte Daniel e Rafael jr., que posteriormente formariam a Snooze, e Ulisses, um “headbanger” de Alagoinhas, Bahia, que morava aqui e era “fanzineiro”, mas ficou apenas nos ensaios.
Os nomes citados foram das bandas que se destacaram, pois chegaram a fazer shows e participar de festivais, como um evento surreal que aconteceu no início da década em Itabaiana, promovido pelo “sabotage”, de Adelardinho Jr – um dos únicos programas de rádio da época que davam espaço para o rock ao lado de outro lá mesmo em Itabaiana, o “Guilhotina”, comandado por Ademir Pinto. O “Sabotage Rock Festival” aconteceu na praça de eventos da cidade, ao ar livre, um local acostumado a receber apenas atrações como Zezé de Camargo e Luciano e coisas do tipo, e atraiu uma multidão de curiosos, apesar da chuva torrencial que caiu naquela noite – muito provavelmente pela surpreendente divulgação nas duas FMs locais, que transmitiram os shows na íntegra. Tocaram a Rust Makers, Deuteronômio, Cleópatra, uma banda local que se dedicava a fazer covers, “Ezequiel o pensador”, outro “artista” local aficcionado em covers, Karne Krua e a Devilry que, por sinal, era uma banda de death metal lá mesmo de Itabaiana, e não faziam cover, tinha material próprio. O pessoal da Devilry chegou, inclusive, a promover um show com uma banda de doom metal de Salvador, The Cross, um feito e tanto para uma cidade do interior naqueles tempos, além de alguns outros com grupos sergipanos. Tocaram, ao que me consta, apenas uma vez em Aracaju, no Mahalo Disco Club do centro, fato do qual eles pareciam se ressentir, já que me lembro da primeira frase proferida pelo vocalista Vladimir ao microfone, algo do tipo “apesar dos preconceitos, estamos aqui, Devilry, de Itabaiana”. E tome tosqueira no pé do ouvido ...
Com a “cena” metal pequena porém pelo menos existindo na cidade, começaram a acontecer alguns shows com bandas de fora do estado, e alguns com bandas importantes, como a The Mist, de Minas Gerais, que tinha na guitarra o ex-Sepultura Jairo Guedes, o Dorsal Atlântica, que tocou na extinta Boite “Tio Zé”, na Atalaia, Restless, de Brasília, e várias bandas de Salvador. O principal responsável pela vinda das bandas de Salvador foi um baiano, ex-proprietário do Bazar Musical, loja especializada que existia por lá, no Orixa´s Center, que se radicou aqui e começou a promover eventos mais “profissionais” (não só de metal, já que foi ele, por exemplo, que trouxe um Dead Billies em início de carreira pela primeira e única vez para cá num show que não teve NENHUM pagante), como os projetos “Metal in concert”, onde tocou o Restless, de Brasília, e “União das Tribos”, que acontecia no Cotinguiba. Critical Mass, outra banda de metal da época que não vingou, fez sua estréia nesse projeto, mas a própria banda em si foi ofuscada pelo “estrelato” de seu vocalista, o popularíssimo Fúria, que fez praticamente um show a parte numa perfomance ensandecida que destoava do som que o grupo se propunha fazer. Ele literalmente roubou a cena, já que foi ovacionado pela platéia que gritava seu nome, não o nome da banda.
O Cotinguiba Esporte Clube foi, por muito tempo, o “point” do rock underground na cidade. Foi lá que DEVERIA ter acontecido, em 12 de junho de 1994, o show do PUS, também de Brasília, banda cuja guitarrista era a deliciosa Simone “Death”, mais tarde conhecida nacionalmente como Syang, quando participou da “Casa dos Artistas” do SBT. O show não aconteceu porque a banda não foi paga pelo produtor, mas acabou rolando na segunda-feira posterior, de graça, em pleno meio-dia ( !!! ), numa pista de skate chamada Organtec (onde também aconteciam shows de rock) que ficava na Av. Barão de Maruim. Este mesmo “produtor” pilantra já tinha aprontado uma na mesma organtecc, quando a banda Slavery, da Bahia, que tinha disco lançado pela cogumelo Records (status supremo do metal dos anos 80 e 90), tocou lá e ficou no olho da rua, sem ter onde dormir. O Mystifier, também baiano, estava certo para tocar nesta mesma noite, mas não apareceu. Mas o maior “toco” do tal “produtor” foi mesmo com o Ratos de Porão. O que seria o show da década acabou se tornando uma noite de fúria, já que não aconteceu pelo mesmo motivo do PUS – falta de pagamento. Os Ratos chegaram a vir à cidade, fizeram uma noite de autógrafos no Shopping Riomar e tudo o mais (lembro que numa exposição fotográfica comemorativa aos 10 Anos do Shopping estavam eles lá, com cara de “lombrados”, em meio ao assédio dos fãs e com o “Anticristo” organizando a fila), já que o evento estava “bombando” na mídia, pois tinha chamada, veja só, na Televisão aberta, se não me engano a TV Atalaia, então retransmissora do SBT. O produtor sumiu, a banda não tocou e a turba ensandecida se vingou saqueando a loja do estelionatário, uma das duas únicas especializadas em rock na cidade, ao lado da Lokaos, de Silvio. O cara de pau ainda teve a coragem de aparecer depois de um grande sumiço, mas sumiu do mapa de vez depois de ter sido preso em flagrante por estupro – lembro de estar assistindo um programa da MTV chamado “Garganta e Torcicolor”, que era apresentado ao vivo por João gordo, quando ele leu uma carta de uma pessoa daqui que deu a notícia da prisão, comemorada pelo gordo aos berros de “se fudeu, pilantra caloteiro estuprador filho da puta, vai virar mulherzinha, vão comer o cu dele na cadeia”.
Já na segunda metade dos anos 90 o metal sergipano se renova com novos nomes, notadamente Scarlet peace, com seu doom metal influenciado pelo rock progressivo. Surgiu uma nova geração de bandas de death metal, como a Átropos, que teve vida curta mas chegou a abrir um show pro Headhunter DC, da Bahia. Alguns integrantes da banda se juntaram a um outro projeto que estava nascendo em 1998, a Sign of Hate, uma das mais agressivas e técnicas do estilo, na ativa até hoje. Isso sem falar de Deuteronômio e Anal Putrefaction, que seguiram sendo os principais nomes do estilo durante a década. Correndo por fora, o Black Metal, cujo principal nome era a Mystical Fire, banda fundada por Alexandre em Manaus, reformulada em Arapiraca, Alagoas, e radicada definitivamente em Sergipe – Alexandre voltou pro Amazonas mas deixou o nome nas mãos de Elias, Bilal e Sedim.
4.4 - ROCK IN BICA
Durante as décadas de 70 e 80 a universidade Federal de Sergipe promovia, na cidade histórica de São Cristóvão, a quarta cidade mais antiga do Brasil, um grande Festival de Artes, o FASC – Festival de Artes de São Cristóvão. Nas últimas edições do FASC um dos muitos palcos do evento foi dedicado ao rock. No Ano de 1990, inspirados no Rock in Rio, cuja segunda edição aconteceria no ano seguinte, no Maracanã, o palco do Rock, que havia sido montado na Bica de São Cristóvão (um balneário publico da cidade) recebeu o irônico nome de “Rock In Bica”. Na primeira edição, além das bandas locais, se apresentaram uma banda bastante conhecida no cenário independente baiano da época, o Treblinka, e os brasilienses do BSB-H. O BSB-H foi a primeira banda independente de projeção nacional (já haviam lançado alguns álbuns por selos célebres, como a Devil Discos) a se apresentar por aqui, o que causou um certo frisson na cena local. A apresentação deles foi gravada em VHS e diversas cópias circularam de mão em mão. Por conta deste relativo sucesso , quando foi anunciada uma segunda edição do rock in Bica em 1992 a expectativa, que já era grande, se confirmou em níveis muito além do imaginável pelo mais otimista dos “rockers” locais. Grandes nomes do cenário underground nacional se apresentaram na Bica de São Cristóvão numa maratona de música memorável que começou às 16:00 do sábado e só foi se encerrar por volta das 11 da manhã do domingo.
Ao lado de grupos locais, como a karne krua, se apresentaram os baianos do MEIO-HOMEM, uma interessantíssima banda meio experimental/industrial que chamou bastante a atenção dos que presenciaram seu show, e o grande HEADHUNTER DC, uma das maiores bandas brasileiras de Death Metal na ativa até hoje, à época pertencendo ao cast da legendária gravadora mineira Cogumelo. Além disso, foi quase que um sonho ver, pela primeiríssima vez ao vivo em solo sergipano, duas das mais importantes formações do punk paulistano, os Inocentes, que, por sinal, nunca mais voltaram, e o Cólera, que só voltou a se apresentar, mais uma vez em São Cristóvão e pela primeira vez em Aracaju, mais de uma década depois, já em pelo século XXI. Os Inocentes fizeram um show de razoável para ruim, pois já estavam naquela fase mais decadente pós “Adeus Carne”, muito mais rock and roll do que punk. Além do mais a apresentação foi prejudicada pela reação despropositada do líder Clemente às provocações vindas de um maluco (literalmente falando) da platéia que o ofendia a todo momento. Provavelmente confundiu o louco (mais uma vez, literalmente falando) com mais um punk acusando-o de “traidor do movimento”. Já o show do Cólera foi antológico. Começou com o sol nascendo no horizonte (lembrando que o evento aconteceu ao ar livre), fato que não deixou de ser comentado por Redson, que ressaltou que era a primeira vez que eles tocavam naquelas condições, com um cenário tão bonito, de frente para o raiar do dia. Fizeram uma apresentação energética que sacudiu a audiência e ficou na memória dos que a presenciaram – ainda me lembro dos caras do Headhunter se levantando e correndo para a frente do palco para unirem-se aos punks no pogo. Memorável. Infelizmente não pude ficar até o fim e perdi a apresentação dos mineiros do Attack Epiléptico, que aconteceu já na manhã do domingo, junto com a Karne krua. Os pernambucanos do Câmbio Negro HC também estavam escalados e presentes, mas acabaram não se apresentando, por conta de desentendimentos com a organização. Além das bandas em si, vale ressaltar que todo o clima que cercou este Festival foi bem marcante, pelo inusitado que era para a cena local da época. Os rockers se dirigiram para lá em peso, e foi uma grande confraternização “à la woodstock” (guardadas as devidas proporções, evidentemente), com barracas de camping espalhadas pelo local. Claro que nem tudo foram flores, há lembranças da costumeira truculência policial na repressão ao consumo de drogas, à libertinagem e à perturbação da ordem pública mas, no final, o saldo foi pra lá de positivo.
4.5 – Camboja e "derivados"
O Camboja foi uma das mais interessantes e originais formações do cenário sergipano. Começou, como citado anteriormente, como mais uma das muitas bandas de grindcore que surgiram na época (primeira metade da década), mas já com uma pegada diferente. A primeira formação, no entanto, não demorou muito – o tempo apenas de gravar uma demo-tape e fazer 2 ou 3 shows. Com a saída de Fúria, o vocalista, e Sergio, o guitarrista (este ultimo para fundar uma outra banda, a METÁFORA, mais direcionada ao metal propriamente dito, especificamente o thrash), Madureira, que tocava bateria e era a mente por trás de tudo, dedicou-se à guitarra e continuou o projeto como uma “one man band”. Para acompanhá-lo na empreitada passou a experimentar percussões eletrônicas rudimentares que produziram alguns resultados bastante interessantes, porém de péssima qualidade sonora. Com o tempo foi convencido a recrutar um baterista, o que se concretizou na figura de Lelinho, sobrinho de Sylvio e então balconista da Lokaos. Não abandonou por completo, no entanto, as experimentações eletrônicas, passando apenas a encaixa-las como vinhetas ou mesmo usando-as como percussão em algumas musicas.
O resultado foi bastante inusitado e eu diria até que revolucionário para o cenário local da época, muito preso a fórmulas já um tanto desgastadas e repetitivas. Gravaram uma nova demo, intitulada “lies about freedom”, e passaram a fazer shows, àquela altura (1992/93) já bastante influenciada pela ascensão de uma cena forte de rock industrial pelo mundo, capitaneada pelo Ministry e pelo Nine Inch Nails. Mas seguiu seu caminho meio que solitária, nadando contra a maré. Tornou-se uma banda “cult” entre os que compreenderam melhor sua proposta inovadora, mas não fazia grande sucesso entre os punks e headbangers, que eram esmagadora maioria. Isso porque possuíam uma sonoridade realmente original. As musicas eram, invariavelmente, extremamente minimalistas – um riff (sempre muito bom, diga-se de passagem) e uma frase em inglês repetidos à exaustão até o fim – que não demorava muito, as faixas não costumavam durar mais que 2 minutos. Nos shows, muito improviso e ruídos de microfonia, distorção e dissonância. E nas demos muitas colagens de sons, sempre muito bem pensadas e encaixadas. Isso tudo com o mínimo de recursos. É de se imaginar o que Madureira conseguiria fazer se tivesse à sua disposição a tecnologia de que um Al Jourgenson ou um Trent Reznor (seu ídolo confesso) dispunham.
Mesmo assim houve uma tentativa de se dar um “upgrade” à banda. Numa terceira fase, o incansável Sylvio (karne krua) incorporou-se à dupla como segundo guitarrista, num resultado bastante satisfatório em que ele se empenhava em experimentar efeitos sonoros e criar climas com as guitarras para servir como contraponto aos riffs poderosos de Madureira. Com essa formação, e com a participação de Marlio, também karne Krua, no baixo, gravaram uma terceira demo, desta vez em estúdio - uma outra característica inusitada da banda, por sinal, era nunca contar com um baixo em sua formação. Gravaram a terceira demo com baixo apenas depois de muita insistência da parte de Marlio. O resultado, no entanto, não foi dos mais satisfatórios – o som da guitarra, em especial, ficou péssimo, raquítico, um verdadeiro crime em se tratando do Camboja, cujo som era quase que inteiramente baseado nos riffs de Madureira.
Por conta de todos estes contratempos, especialmente a falta de recursos e de um produtor que compreendesse o espírito da banda, o Camboja acabou sem deixar nenhum registro decente de suas brilhantes composições que atendiam por títulos quase sempre depressivos e/ou atormentados como “don’t close your eyes to my misery”, “what do you know about my pain?”, “machine man”e ‘italian sexy movie”. A banda acabou em algum ponto no meio dos anos 90 – na verdade não houve um fim oficial, apenas Madureira foi perdendo o tesão de tocar, segundo ele mesmo. O ultimo show (que não estava previsto para ser o ultimo) foi especialmente memorável. Aconteceu no Mahalo da Atalaia, abrindo para o Kafila, do Piauí, e contou com Cícero Mago, irmão de Madureira, na bateria, substituindo Lelinho, que havia se desligado da banda e se afastado do mundo do rock underground algum tempo antes. A apresentação foi matadora: Madureira estava especialmente inspirado e o evento foi, inclusive, registrado para ser distribuido em K7 pelo fanzine CABRUNCO, o que, infelizmente, acabou não acontecendo.
O Camboja acabou no “auge” criativo mas deixou como legado, além de suas 3 demo-tapes (4, se contarmos a gravação Ao vivo não lançada do ultimo show) uma interessantíssima concepção gráfica, um projeto paralelo e uma banda derivada. A concepção gráfica era um fator de destaque da banda e era sempre produzida com muito esmero e competência por jamson madureira, exímio desenhista e, posteriomente, artista plástico. As capas de suas demos, cartazes de shows e desenhos produzidos para releases e flyers eram de uma qualidade muito acima da média e chamavam a atenção Brasil afora. Mesmo depois do fim da banda Jamson prosseguiu desenvolvendo seus dons para as artes plásticas, tanto em telas como em Historias em quadrinhos, notadamente com a série “Automazzo”.
O “projeto paralelo” foi o Misery High Tech. Era composto por apenas duas pessoas, Madureira e Sergio “Metáfora” – outro Sergio, não o mesmo que havia fundado o Camboja – se revezando nas guitarras e colagens sonoras acompanhados por uma bateria eletrônica. Fizeram um trabalho interessantíssimo, fruto do encontro entre suas principais influências, o rock industrial e eletrônico, no caso de Jamson, e o thrash, mas com um background também influenciado pelo industrial (o também projeto paralelo Nailbomb, de Max Cavalera e Alex newport, foi a principal referência da dupla) e deixaram como registro duas demo-tapes. Apresentaram-se ao vivo apenas em uma ocasião, no dia 29 de abril de 1995, no Espaço Cultural Engenho e Arte, que pertencia ao cantor e compositor Paulo Lobo e ficava localizado no bairro Grageru, num Festival ao lado das bandas Plasma, Snooze, Agony Season e o próprio Camboja.
Já a Metáfora, a banda “derivada”, tinha em comum com o Camboja apenas a sua gênese, pois foi idealizada por um dos membros-fundadores da mesma, Sergio (a banda tinha dois Sergios). Faziam um thrash metal cru e tosco que foi registrado pela primeira vez na antológica demo-tape “vulcanic fire”. Era uma típica banda da época em que o Sepultura estava no auge, uma das muitas que tentavam emular o som dos heróis do metal brasileiro, porém sem os mesmos recursos técnicos nem a mesma competência com os instrumentos. Mas durou um bom tempo, e ao longo desse tempo foi evoluindo e refinando seu som, o que se refletiu numa segunda demo-tape melhor trabalhada intitulada “living in ruins”. Nunca chegou a ser, no entanto, um destaque no cenário, embora tenha tido em seu currículo alguns bons shows. Durante algum tempo, inclusive, a Metáfora contou com uma garota, Morgana, no contrabaixo, fato inusitado para a cena da época – aliás esta é uma das grandes deficiências do rock sergipano, a pouca participação das mulheres na formação das bandas. Alem disso protagonizaram pelo menos um dos muitos episódios bizarros do rock sergipano ao se apresentarem, pela primeiríssima vez em sua carreira, num circo mambembe lá mesmo em sua terra natal, Nossa Senhora do Socorro, quando tiveram seu set list comido por um bode durante a passagem de som mas mesmo assim foram suntuosamente apresentados pelo mestre de cerimônias do circo, que era também o palhaço.
Posteriormente, já sem o “Sergio fundador”, mudaram de nome para “Uncanny”, numa última formação que durou pouco mas deixou pelo menos uma noite memorável de saldo, num evento no parque da Sementeira onde chegaram a experimentar alguns efeitos pirotécnicos à la Kiss e Iron Maiden (descontadas as devidas proporções, evidentemente), sem muito sucesso.
4.6 – MAHALO DISCO CLUB
Na primeira metade dos anos 90 um “coroa” muito simpático e gente-fina conhecido como “Jajá” abriu um “pub” bem bacana em frente à UNIT do centro (ainda não existia o campus da Farolândia). Até aí, normal, era um bar como outro qualquer, freqüentado durante a semana pelos estudantes da maior universidade particular do estado. Só que o tal Jajá teve a inusitada idéia de, já que não havia movimento nos finais de semana, abrir espaço para que as bandas de rock “underground” tocassem lá. Na minha modesta opinião, foi a mais divertida fase pela qual passou o rock em nosso estado. Tínhamos, finalmente, nosso espaço, e era um espaço bacana, fechado, decorado e com ar-condicionado. Algo surreal para quem estava acostumado a fazer shows numa Associação de bairro abandonada do conjunto Dom Pedro I, carinhosamente apelidada de “fedor de merda” – “Vai ter show no fedro de merda hoje” – com caixas acústicas, microfones e bateria cedidos pelas próprias bandas do material que usavam para ensaio e que eu ajudava a pegar com meu fusquinha podre fedendo a gasolina.
O primeiro show que aconteceu no Mahalo foi da karne Krua, com abertura do ETC, uma banda “porralouca” que eu tinha com Silvio. Foi uma loucura, pois o espaço era pequeno e, mesmo com o pouco público da época, ficou apertado, o que deixou o “pogo” ainda mais violento que o usual, com vários indivíduos caídos pela calçada cheios de hematomas no final da noite. Foi um sucesso, o que nos motivou (eu e o pessoal da Karne Krua) a criar o “projeto Microfonia”, com shows semanais. Trouxemos, inclusive, bandas de fora do estado, a Discarga violenta, de Natal, e o Living In The shit, de Alagoas. Para tanto, alugávamos um sonzinho pequeno de Miraíton, um figura muito boa-praça que tinha um estúdio no Siqueira Campos onde as bandas "underground" costumavam ensaiar.
Logo o “pico” foi descoberto pelas demais “tribos” locais, e mais e mais shows passaram a acontecer, de todos os estilos, do punk mais casca-grossa – algumas bandas baianas, como APÁTRIDA, tocaram no local – ao metal extremo. Um dos eventos mais polêmicos foi o “Dia do Caos”, ocorrido na noite de 09/09/1995, produzido por e para bandas “puro sangue”, anarco-punk, e que acabou servindo como uma espécie de lavanderia de roupa suja, onde as contradições internas do movimento descambaram em discussões inflamadas que quase levaram às vias de fato. O Movimento punk havia se radicalizado ao extremo e se fechado em si próprio, o que anulou qualquer possibilidade de que o que eles tinham a dizer pudesse chegar a um publico maior. Muita fofoquinha mesquinha, muito disse-me-disse, um verdadeiro turbilhão de desconfianças, ameaças verbais e pancadaria que se estendia pela cena de todo o nordeste.
Conheci algumas criaturas fascinantes e estranhas através do Mahalo, como Ricky, “o poser”. Estávamos tocando e havia um show de metal rolando na mesma noite no Cotinguiba. A uma certa altura, aparece um pessoal de Estância, Alberto “Pereba”, Renatinha, sua irmã e um figura totalmente deslocado, glam dos pés à cabeça, que atendia pela alcunha de Ricky, o “poser”. Isso mesmo, o cara era poser assumido. Vestia calças de couro coladas, as famosas “tora-ovo”, baby-looks com lantejoulas e uma bandana na cabeça. Me viu com uma camiseta do Extreme Noise Terror e já foi logo dizendo que só gostava do Extreme. Morava em Estância, era fã do Guns and Roses, Poison, Motley Crue e Cinderalla, mas também curtia grind, algo que constatei ser verdade ao assitir estupefato ele acompanhar direitinho os grunhidos do clássico disco “reek of putrefaction”, do Carcass. Também curtia Black metal, chegando inclusive a tentar montar uma banda em Estância, a “Satanic Desire”, na linha do Sarcófago, mas que não saiu da garagem. Algum tempo depois ele foi embora pra Curitiba, cidade que achou um tédio, tudo muito limpinho, certinho, artificial. Mudou-se para São Paulo, viciou-se em crack e morou na rua por um tempo até arrumar um emprego como porteiro numa casa noturna. Depois disso, nunca mais tive notícias.
A coisa cresceu a tal ponto que Jajá resolveu alugar um espaço maior, em plena Avenida Beira Mar, na Atalaia. Eu particularmente achava menos “charmoso”, com mais jeito de bar propriamente dito do que de pub, mas por lá aconteceram shows memoráveis, como as estréias da Penélope Charmosa (posteriormente apenas Penélope) e brincando de deus em Aracaju, Wander Wildner divulgando seu primeiro disco solo – lembro dele ajudando a arrumar as mesas do bar depois do show -, Káfila, do Piauí, que tocou no que acabou sendo o último show do Camboja, Johnsons, de Goiás, Trap, de São Paulo, e uma inesquecível apresentação do concreteness, de Santa Bárbara do Oeste, com seu “electro-rock” endiabrado bem à frente de seu tempo – lembro que tínhamos dificuldade para “rotular” a banda, já que era eletrônica mas não chegava a ter o peso do rock industrial. Isso sem falar das bandas locais, como a Lacertae ainda como trio, com Paulinho e suas percussões de escapamento, e a snooze – Rafael jr, baterista da snooze, era o principal promotor dos shows que aconteciam por lá nessa época.
4.7 – Snooze e Lacertae
O Snooze nasceu em 1993 e foi a primeira e, por muito tempo, única banda “indie” (leia-se influenciada por gêneros como o shoegaze e as guitar bands) de Aracaju. Nasceu das cinzas do OUTSHINED, que tocava covers dos grandes “hits” do rock da época, especialmente o grunge. Vi eles pela primeira vez ao vivo num campeonato de skate no Siqueira Campos e foi paixão à primeira vista, nem tanto pelos sons próprios da banda (não lembro se eles já os tinha, mas acho que sim), mas pelo simples fato de terem tocado um cover do Pixies, uma de minhas bandas favoritas de todos os tempos e que tinha um status “Cult”, era pouco conhecida por aqui. Ajudei-os a montar seu primeiro release, feito em forma de fanzine xerocado. Logo eles lançaram sua primeira e clássica demo-tape, um verdadeiro marco na história do rock sergipano, não apenas pela competência técnica e talento para composição, na época um pouco mais punk e com muita influência de Social Distortion e Husker Du, mas também pela qualidade da gravação, infinitamente superior ao que era feito então.
Graças principalmente ao trabalho de divulgação empreendido por Rafael, através de correspondências via carta, foi um dos grupos sergipanos que mais se apresentou pelo Brasil, fazendo várias turnês pelo nordeste e sudeste, além de montar um importantíssimo intercâmbio que possibilitou a vinda a Aracaju de alguns dos melhores nomes do underground nacional da época, como visto acima quando discorri sobre os shows no Mahalo. Em 1998 conseguiram mais um feito difícil para as bandas sergipanas: lançaram seu primeiro Cd “oficial”, “Waking up waking down”, pela gravadora paulista short Records. Até esta data eram um “Power trio”, com os irmãos Fabinho (baixo e vocal) e Rafael Jr (bateria) acompanhados pelo excelente guitarrista e compositor Daniel, falecido em 2010. Daniel saiu da banda no final da década de 90 para ir morar e trabalhar em São Paulo, o que levou a snooze a um revezamento incessante no posto de guitarrista que segue pela década seguinte adentro, porém sempre mantendo a qualidade do produto final oferecido.
Já o Lacertae surgiu de onde menos se esperava que aparecesse alguma coisa em termos de rock, especialmente com a pegada absolutamente original e experimental que eles tinham: o povoado Campo do Crioulo, no município de Lagarto, interior do estado. Começaram com um som mais “convencional” e pesado, emulando o Pantera, grande febre roqueira do período, mas logo partiram para searas nunca dantes navegadas, utilizando sons obtidos pela percussão de sucata metálica. Eram também um trio, com Paulinho no vocal e percussões esquisitas, Deon na guitarra e Tacer na bateria. Paulinho saiu por problemas pessoais (na verdade ele teve problemas psicológicos, o que o torna uma espécie de “Syd Barret” local) algum tempo após a gravação da demo-tape “100km com um sapato”, que chamou a atenção da crítica Brasil afora e os incluiu no cast da importante coletânea “Brasil compacto”, do selo Rock it, de Dado Villa Lobos, um verdadeiro “raio x” da produção independente brasileira dos anos 90.
Deon e Tacer seguiram como uma dupla, mais uma vez inovando na percussão, já que passaram a usar um berimbau acoplado á bateria. Se inseriram e acompanharam de perto as emergentes cenas de Salvador, que efervescia com novos e grandes nomes como Lisergia, Inkoma, Dead Billies e Dois Sapos e meio, e Recife. Moraram em ambas as cidades e presenciaram “in loco” o embrião do que viria a estourar nacionalmente como “mangue beat”. Por conseqüência, foi provavelmente a banda sergipana que mais teve repercussão na imprensa especializada nacional, com rasgados elogios em importantes veículos como a Folha de São Paulo, a Revista Bravo e o programa Metropolis da TV Cultura.
4.8 – Fanzines
O movimento “fanzineiro” de Aracaju seguiu firme e cresceu muito nos anos 90. Sylvio, da karne Krua, continuava publicando periodicamente seu clássico “Buracaju”, mas desta vez já não navegava mais sozinho pelos mares da troca de papel xerocado. Em 1991 em comecei a publicar meu zine de maior repercussão e que me trouxe muitas amizades e oprtunidades de viagens pelo Brasil, o Escarro Napalm. A primeira edição foi tosca e ainda com aquele clima meio adolescente, apesar de eu já estar na casa dos 20 anos. A capa fui eu mesmo que fiz. Já a segunda edição publiquei em conjunto com o Buracaju de Silvio – foi uma iniciativa inédita e ousada para a época, não me lembro de nenhum outro exemplo de dois fanzines lançados em conjunto numa mesma edição. A temática começou a ser menos politicamente correta e mais escrota, pornográfica até, o que irritou muitos punks que passaram a nos acusar, principalmente a Silvio, que era uma espécie de referência dentro do “movimento”, de sexismo. Olhando agora de longe, não deixavam de ter uma certa razão, mas nossa intenção era mais a de ir de encontro ao bom-mocismo e panfletarismo dos caga-regras de plantão. A partir da terceira edição já tinha um bom número de contatos pelo Brasil afora e pude contar com uma rede de colaboradores, especialmente na questão de arte gráfica propriamente dita, que era o meu ponto fraco. Tive a honra de ter em meu zine o trabalho de grandes artistas marginalizados do underground nacional, como Claudio MSN, Henry Jaepelt, Edgar S. Franco, Yuri Hermuche e Joacy Jamys. O ponto alto desta trajetória foi o convite que me foi feito para participar de um importante festival independente promovido pela prefeitura municipal de Belo Horizonte, Minas Gerais, em 1994, para onde fui com passagem e hospedagem pagas para participar de um seminário sobre fanzines e onde pude conhecer pessoalmente uma boa parte de meus amigos de correspondência. Foi meu momento “rockstar”, do tipo tomar chá com torradas no café da manhã com os caras do Fugazi e tentar desviar da guerra de comida promovida pelos então moleques metaleiros do Anathema durante o almoço. Inesquecível. Silvio ampliou seu leque de publicações com o Microfonia, dedicado exclusivamente à divulgação de bandas, e o Ultralibido, mais voltado para a sacanagem propriamente dita, deixando o Buracaju meio de lado. Publicava também um informativo chamado A BOMBA, com uma folha oficio em 3 dobras, e o CANAL DIRETO, dedicado exclusivamente a notícias sobre a Karne Krua.
Ainda na década de 90 um grupo de punks se juntou e publicou, com uma qualidade gráfica razoável e uma periodicidade exemplarmente regular, o informativo HUMANISMO, um pequeno órgão de divulgação anarquista. Os textos eram excessivamente rasos e panfletários, mas era válido pela dedicação a uma boa intenção. Além do Humanismo a galera mais punk costumava lançar alguns fanzines que não costumavam passar da primeira ou, no máximo, segunda edição. E haviam as publicações mais exprimentais, usando e abusando de colagens de imagens e fotos, como o EXPRESSÃO MUDA, de Cícero Mago, e os fanzines de Fúria. Jamson Madureira era colaborador contumaz de todos com suas belíssimas ilustrações e passou a publicar seus próprios fanzines de quadrinhos no final da década, chegando a criar um personagem própria, Automazo, sempre envolvido em situações marginais regadas a sexo, drogas e alucinações e banhadas num texto imerso em surrealismo.
Já numa linha mais ligada à literatura havia o SINAGOGA´S BUTTERFLY, de Daniela Gomes, Clarck Bruno e Sergio “Dedão”. Publicava contos e Histórias em quadrinhos, basicamente. Outro ativista desta seara foi Teleu, com a sua “Zé Guiaba produções” publicando fanzines dementes e divertidos que mesclavam poemas “nonsense” com textos divagantes. Não tão divertidos, no entanto, quanto o Putrefy, um dos únicos de que tenho notícia que era publicado no interior, na cidade de Estância, por Alberto “Pereba”. Era um verdadeiro tapa na cara do falso moralismo, escrachado, safado, escroto e escatológico ao extremo. Memorável – e raro, as poucas cópias existentes são únicas, já que o autor tinha o peculiar costume de queimar os originais das edições publicadas.
Mas o melhor fanzine sergipano da década e provavelmente de todos os tempos foi o CABRUNCO, editado por Adolfo Sá (hoje blogueiro) em parceria com Rafael jr. e Márcio “de Dona Litinha”, que na época tinha uma banda chamada MILLER BABES (responsável pelo primeiro show do Pato Fu em Aracaju, no extinto Batata quente da Orla de Atalaia) e atualmente é cantor e zabumbeiro da Naurêa. Começou timidamente, numa edição fininha porém com uma já bela e provocativa arte de capa desenhada por Eduardo Oliveira, outro grande talento local pouco conhecido. A publicação foi ganhando corpo e conteúdo com o tempo até chegar a um nível de excelência nunca antes visto por aqui. Os textos de Adolfo Sá eram excelentes e bastante sinceros, inclusive nas resenhas de shows que fazia, o que o tornou alvo da fúria de alguns egos machucados, culminando com um célebre quebra pau na frente do Cotinguiba, quando um dos artistas criticados foi tomar satisfação e, ao receber uma resposta igualmente sincera e direta como resposta, reagiu com chutes e pontapés. Já Rafael jr, que era encarregado das resenhas de discos, pegava mais leve e tinha mais jogo de cintura. Marcio, que é também professor de Redação, fazia uma interessante sessão de literatura. O Cabrunco teve grande repercussão nacional, com direito a resenha elogiosa na Folha de São Paulo, e até hoje é citado como uma das grandes publicações alternativas do Brasil, ao lado de nomes como PAPAKAPIKA, PANACEA E MASTURBAÇÃO, IOGURTE E ROCK AND ROLL.
4.9 - Rock-se
No final de 1998, um momento de ruptura: A Marginal produções, que já havia sido responsável por alguns eventos memoráveis, como A Boate do porão do Cultart, As festas “Castelo Rá-Tim-Bum” e shows de bandas como Planet Hemp, Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, resolve dar um passo além: promover o primeiro Festival de rock digno de nota na cidade. Para tanto, se associou ao Tequila Café e, com o apoio da Emsetur, Empresa Sergipana de Turismo, conseguiu a quadra do Estádio Lourival Batista, o maior do estado, também conhecido como “Batistão”, para a realização do evento.
Eu, que morava praticamente no quarteirão ao lado, mal pude acreditar no “cast” de bandas anunciadas, digno de um evento de grande porte, tipo o Abril pro rock: Pin Ups, seminal banda “indie” paulistana, grande influência para o Snooze, por exemplo, Mechanics, de Goiás, Hannagorik e Eddie, de Pernambuco, Júpiter Scope, Catapulta e Dois Sapos e meio, da Bahia, Living In the shit, de Maceió, Pelvs (que não veio), Squaws, Marcelo D2 e O Rappa, do Rio de Janeiro (Bruno Montalvão, “big boss” da Marginal, tinha muitos contatos no Rio, provavelmente vem daí a predominância de bandas daquele estado na escalação). De sergipanos teríamos Nino Karva e Mangaba Madura, Karne Krua, Snooze, Lacertae, Warlord, Sulanca e Mosaico. Consegui uma credencial de imprensa via Rock Press, revista especializada do Rio de Janeiro para a qual eu colaborava de tempos em tempos e lá estava eu, lado a lado com a equipe da MTV, que cobriu o evento via programa Lado B, apresentado por Fábio Massari, com total acesso ao palco e aos bastidores.
Foram dois dias delirantes em que o rock sergipano ousou sonhar mais alto – depois de tudo veio a dura realidade e as contas que não batiam, o que inviabilizou a continuidade do projeto, mas pelo menos naqueles dois dias, estávamos no mapa da música alternativa feita no Brasil. Um feito e tanto, especialmente se considerarmos que nem se sonhava com movimentos descentralizadores como o “Fora do eixo” na ocasião. O Goiânia Noise e a Monstro discos, por exemplo, estavam em fase embrionária - lembro bem de Marcio Jr. e Cia. Ltda com uma banquinha da nova gravadora e seu primeiro lançamento, o compacto do Mechanics.
O show do Mechanics, por sinal, foi antológico: muito energético, muito “rock” e com um cover matador para “Psycho killer” do Talking Heads. O “hit” próprio deles, “formigas comem porra”, também caiu nas graças do público presente. Outros shows memoráveis se sucederam: Eddie, se redimindo finalmente do fiasco (não por culpa da banda) que foi a primeira vez deles em Aracaju, Pin Ups mandando ver em seu som esporrento com Rafael, do Planet Hemp, substituindo o guitarrista/fundador Zé Antonio, que não pôde vir devido a compromissos profissionais (ele trabalhava na MTV) e Alê, a baixista/vocalista, em constante conflito com o excesso de testosterona da galera do gargarejo, Snooze, que fez um dos melhores shows de sua carreira, provavelmente por estarem, surrealisticamente, dividindo um palco, em sua terra natal, com uma das bandas que mais os influenciou, e Karne Krua, que mandou um sonoro e inesquecível “Rappa de cu é rola” como desabafo pelo grande atraso para subirem no palco porque a citada banda, “estrela” da ocasião, não queria que ninguém tocasse antes deles.
Squaws e Marcelo D2 eu não tive muito saco pra ver, mas resisti heroicamente para presenciar, já na manhã da segunda feira, os três antológicos shows que encerraram a noite: Catapulta e seu esporro percursivo competentíssimo, Living In the shit em uma nova fase (viviam mudando), totalmente reggae – seria o último show que eu veria deles – e Dois Sapos e meio, sempre bastante perfomáticos e conduzidos pela guitarra endiabrada de Peu, que posteriormente seria o primeiro guitarrista da banda de Pitty em fase “rockstar”. Para fechar a maratona com chave de ouro, Montalvão conseguiu a liberação da piscina do complexo aquático e a galera não se fez de rogada: todo mundo caiu na água. Sapulha, o louco, em grande estilo: pulando de um dos trampolins de salto ornamental.
O Rock-se, como mencionei anteriormente, não teve continuidade – apenas uma segunda edição, desfigurada, no ano seguinte, no Espaço Emes – mas marcou toda uma nova geração que se formava, teve seu batismo de fogo naquelas duas noites e montaram bandas e/ou organizaram eventos na década/milênio seguinte.
Depois do Rock-se, o rock sergipano nunca mais seria o mesmo.
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