Luiz Inácio Lula da Silva contou com a aprovação de 87% da
opinião pública ao sair do Planalto. A popularidade
colossal faz dele um dos governantes mais bem-sucedidos da história
contemporânea, e o de maior êxito num período democrático: foi eleito, reeleito
e passou o cargo a uma sucessora que escolheu à revelia das forças que o
sustentavam, além de jejuna nas urnas. O triunfo de Lula se deve à percepção de
que, ao longo da sua Presidência, houve aumento real do salário mínimo, dezenas
de milhões de brasileiros passaram a comprar o essencial para viver e uma
parcela significativa do povo dispôs de bolsas estatais para dirimir a miséria.
Noutra esfera da sociedade, a do privilégio, nunca na história deste país os
poderosos – do exterior e do interior – ganharam tanto. Em termos econômicos, o
governo do petista foi a favor de todos, e conseguiu agradar a quase todos.
Como a vida não é só economia, ainda que ela a determine, há
outras maneiras de explicar a popularidade de Lula. Duas imagens de seu governo
ajudam a pensar o que aconteceu nos oito anos em que esteve à testa do Estado.
Na primeira, em abril de 2009, ele estava numa reunião do G20, em Londres, e o
presidente americano aproximou-se para cumprimentá-lo. This is the guy, disse
Barack Obama aos que estavam em torno, apontando o brasileiro. I love this guy. The most popular
politician on Earth. Because of his good looks. Amo esse cara, o
político mais popular do planeta, porque ele é bonitão. Lá estava ele: o líder
de uma nação pobre que parecia sair do buraco, o governante que seguira um
caminho diverso do receituário neoliberal e dirimira a crise que vergava países
poderosos. E lá estava o outro: o dirigente do império capitalista e gerente
geral da Pax Americana.
Na segunda imagem, no feriado de Réveillon de 2010, Lula foi
flagrado a distância, na praia de uma base naval na Bahia. Entrou duas vezes no
mar, tomou uma chuveirada ao ar livre, bebeu uma latinha e, de camiseta,
bermudão e sandália de dedo, botou na cabeça a caixa de isopor com as tralhas
levadas à praia e foi embora. Lá estava ele: o menino do sertão pernambucano
que foi de pau de arara para São Paulo, morou nos fundos de um bar e usava o
mesmo banheiro que a freguesia, o metalúrgico que perdeu o dedo num acidente na
fábrica, o sindicalista do ABC que ia à Praia Grande. Primeiro mandatário, ele
continuava o mesmo brasileiro que aprendeu nas mesas dos bares que o
nacionalismo é uma virtude.
Lulismo, Carisma Pop e Cultura Anticrítica passa pelas duas
imagens para analisar como funcionou a figura do presidente na sociedade
brasileira e no exterior. O autor do livro, o psicanalista Tales Ab’Sáber, vai
à intersecção da cultura com a política para sustentar que o corpo de Lula tem
uma dimensão simbólica: ele próprio é a encarnação do pacto social que
sustentou o seu governo. Aquele corpo que em Londres foi elogiado por Obama é o
de milhões de brasileiros que carregam um isopor na cabeça na praia, de todos
os que compartilham uma história semelhante à dele, e nele se reconhecem. O
presidente americano se referiu a ele com um linguajar que não é o da política
(this is the guy) para sublinhar a sua popularidade e aparência (good looks).
Para além dos dados econômicos, Lula tem carisma. E, como está no título do
livro, esse carisma pertence ao universo pop e integra uma cultura que atenua
antagonismos.
Carisma é a atração que um corpo desperta em outros corpos.
O sujeito carismático, que expressa outros humanos e às vezes os lidera, tem um
poder cuja origem é atribuída ao divino. As Escrituras registram a incorporação
do sobrenatural no humano: o Verbo se fez carne. A partir da Antiguidade, e
sobretudo na Idade Média, o corpo dos santos católicos manifestavam poderes
excelsos. Santos curavam, faziam milagres. O carisma não está só na religião,
passa igualmente pela arte e pela política. O herói artístico torna-se
carismático porque assume uma responsabilidade social, como Aquiles na Ilíada.
Os reis recebem unção da Igreja, que representa Deus, e têm eles também o dom
da cura. Luís XIV, o Rei Sol, fez de Versalhes o theatrum mundi onde
demonstrava o poder de seu corpo absolutista. Napoleão, ao ser sagrado
imperador, tirou a coroa das mãos do papa e dispensou a intercessão do Vigário
de Cristo. Fez-se por si mesmo representante da soberania francesa.
Depois de se aproveitar de crises para se livrar de dois
ministros que ambicionavam a sua sucessão, José Dirceu e Antonio Palocci, Lula
exerceu o poder plenamente. E desenvolveu uma política a favor dos extremos da
sociedade, os milionários e os muito pobres. Para estes últimos, concedeu
bolsas sociais, de no máximo 200 reais, a quase 13 milhões de famílias,
introduzindo-as num universo mais amplo de consumo. Tais bolsas não
ultrapassaram o custo total de 1% do Produto Interno Bruto. Mas, aos que vivem
de rendas financeiras, em 2009 Lula destinou 5,4% do PIB apenas em serviços dos
juros da dívida pública. No ano seguinte, os juros e a rolagem da dívida consumiram
45% do orçamento da União, 635 bilhões de reais. Com isso, diz Ab’Sáber, o
presidente “cooptou amplamente os muitíssimo ricos”.
A ação bifronte resultou na anestesia da oposição. À
direita, tucanos e DEM ficaram sem ter o que falar: a pregação deles se dirigiu
às classes médias, que, se não se aproveitaram diretamente de bolsas sociais e
juros estratosféricos, beneficiaram-se da melhoria geral dos indicadores
econômicos. À esquerda, houve a agregação ao Planalto das centrais sindicais e
o crescimento de fundos de pensão, que passaram a gerir parte significativa dos
investimentos estatais e se associaram a grupos privados. Integraram aquilo que
o sociólogo Francisco de Oliveira chamou de “nova classe” e desmobilizaram a
militância radical.
Lula promoveu um acordo entre os socialmente antagônicos que
foi a quadratura do círculo. Conciliação enunciada, sibilinamente, pelo próprio
presidente: “Foi preciso um torneiro mecânico, metido a socialista, para fazer
o país virar capitalista.” Como Lula há muito deixou de ser torneiro, o
socialismo saiu do horizonte contemporâneo e o Brasil nunca deixou de ser
capitalista, tal acordo se dá em condições peculiares: no corpo do presidente,
que o avaliza pessoalmente. O seu carisma é isso.
O carisma teve muito de construção edificante, de obra de
marketing. Mas também foi real e consistente, como na cena da praia baiana, na
qual Lula se portou sem saber que era fotografado pela imprensa. Alguém
consegue ver Fernando Henrique Cardoso carregando uma caixa de isopor de bermuda
e camiseta? Mais fácil imaginá-lo de pulôver de cashmere e paletó de tweed com
protetores de couro nos cotovelos.
Para Lulismo, o alcance da imagem de Fernando Henrique
Cardoso era de outra ordem. O presidente do PSDB “tinha imenso impacto de
personalidade apenas sobre o seu grupo social, bem paulistano, que envolvia
dois ou três departamentos de universidade e três ou quatro bairros ricos da
cidade”, diz o livro. “O seu imenso amor por si mesmo, expresso na forma de
vaidade, jamais totalizou o amor e a confiança dos brasileiros a seu respeito,
brasileiros a quem mais de uma vez o presidente tucano se referiu como
‘caipiras’.”
Conscientemente, Lula fortaleceu a sua imagem
identificatória com os brasileiros. Promoveu todos os anos em Brasília festas
juninas, para as quais se vestia a caráter. Ofereceu churrascos a auxiliares e
aliados. Falava de política com termos do futebol e disputou peladas em fins de
semana. Ia a programas de televisão popularescos e se comportava como animador
de auditório. De camiseta canarinho, tocou vuvuzela na Copa do Mundo. O rei não
estava nu como na fábula. Foi um dos do povo que chegou ao poder, como aliás
pregava o seu antigo jingle de campanha: Lula lá. De lá, do Planalto, ele dizia
ao povo que a expansão do salário mínimo e do crédito era o máximo que ele
poderia oferecer aos seus iguais em origem. O carisma cerrava o vínculo com os
governados, que nele projetaram as suas aspirações e realizações.
Na história republicana, outro presidente teve um carisma que
emanou da base empobrecida da sociedade, Getúlio Vargas. Houve semelhanças
entre ele e Lula: atenção ao salário mínimo, codificação de direitos populares,
algo da demagogia, benesses à burguesia – industrializante num caso, financeira
noutro – e elementos de bonapartismo, no qual o líder paira sobre os conflitos
das classes. Mas as diferenças entre eles eram grandes. Getúlio foi golpista em
1930, depois ditador militar e por fim
populista eleito até o seu suicídio – gesto altamente carismático – em 1954.
Lula agiu num cenário com elementos legados pelo varguismo,
dos quais Lulismo fala de maneira muito breve. Em vez disso, o livro vai ao
cinema para ver a continuidade entre Getúlio e o presidente petista. Num
momento forte do ensaio, Ab’Sáber volta-se para o personagem Jerônimo, o
sindicalista de Terra em Transe. No filme de Glauber Rocha, numa sequência na
qual sambistas, militantes do Partido Comunista, um acadêmico de fraque e
agentes de segurança dançam no transe que precedeu o golpe de 1964, Jerônimo, o
representante dos trabalhadores, é instado a falar. Ele diz:
Sou um homem pobre, um operário, sou presidente do meu
sindicato, estou na luta das classes, acho que está tudo errado, e eu não sei
mesmo o que fazer. O país está numa grande crise e o melhor é aguardar a ordem
do presidente.
Paulo Martins, o jornalista e poeta que trocara a fidelidade
à elite pelo apoio à demagogia populista, tapa a boca de Jerônimo, olha direto
para a câmara, para quem assiste ao filme, e, ainda que com a crítica do
distanciamento brechtiano, recai na rudeza oligárquica:
Estão vendo o que é o povo – um imbecil, um analfabeto, um
despolitizado! Já pensaram um Jerônimo no poder?
A cena de Terra em Trans e está entre os momentos capitais
do cinema nacional. Em Verdade Tropical, Caetano Veloso escreveu a respeito
dela que “nada do que veio a se chamar de ‘tropicalismo’ teria tido lugar sem
esse momento traumático”. Para o compositor, a sequência do filme marcou a
morte de sua “fé nas forças populares – e o próprio respeito que os melhores
sentiam pelos homens do povo”. Num poderoso ensaio recém-publicado no livro
Martinha Versus Lucrécia, Roberto Schwarz retomou a cena e a interpretação de
Caetano Veloso. Para o ensaísta, as conclusões do cantor “enxergavam
oportunidades e saídas onde o filme de Glauber desembocava em frustração
nacional, autoexame político e morte”.
Para Ab’Sáber, o sindicalista que é manipulado pelo
populismo e calado pelo intelectual de esquerda na crise de 1964 não é
Jerônimo. É Lula. Nascido no chão da fábrica da industrialização getulista, ele
é o operário que se politiza depois do golpe. Não era tutelado pelos pelegos
nem pelos intelectuais, e o PCB se opõe a ele. Sua força no panorama nacional
dependia da categoria que o elegeu para dirigir o Sindicato dos Metalúrgicos de
São Bernardo do Campo e Diadema. Quando comanda greves e passa a construir o
Partido dos Trabalhadores, sua liderança se estende à classe operária e ao
conjunto dos trabalhadores. Segundo Ab’Sáber, Lula “representou todos os
anseios reprimidos de voz e confronto com a ditadura militar”.
Essa militância de classe, que não se prestava às manobras
da política tradicional e do stalinismo, como ocorrera na luta popular do
início dos anos 60, teve enorme potencial. É o que sustenta Lulismo:
Lula não representava, como todos sempre o soubemos, a
liderança do novo, amplo e de esquerda Partido dos Trabalhadores; ele, desde o
início e sempre, foi a liderança esperançosa de todos nós, com alguns traços
messiânicos, embora muito esmaecidos, da tradição imaginária dos
revolucionários de esquerda. Desde o início, o desejo inconsciente que o
colocava naquela posição já aspirava e sonhava que ele se tornasse o líder de
todos os brasileiros.
Nessa condição, Lula pôde aplastar, ao longo de trinta anos
de petismo, não só o PCB como todas as forças da esquerda que se juntaram para
construir o partido, oriundas da luta armada, da Teologia da Libertação, do
castrismo, de dissidências do populismo radicalizado e do trotskismo. Junto com
elas, foram sendo marginalizados também intelectuais como o Paulo Martins de
Terra em Transe. Ab’Sáber cita uma entrevista de Marilena Chaui, em 2009, que
capta o deslumbramento dos letrados com o movimento no qual o ímã eram os
trabalhadores. Ela disse:
Sobretudo na fase inicial, havia um laço entre os
intelectuais, os sindicalistas e as lideranças de movimentos populares que era
impressionante. Eu tenho o caderno das primeiras grandes reuniões, dos cursos
que foram organizados, em que eu anotava até a respiração de cada um. Com
aqueles operários e aquelas lideranças eu aprendi a pensar, a ver a política a
partir deles, e eles diziam o mesmo de nós.
A especialista em Spinoza que “anotava até a respiração de
cada um” e dizia que aprendia “a pensar” com os operários prefigura um quadro
no qual a discussão e a crítica passam para um segundo plano. Ab’Sáber nota que
as atitudes de Lula sempre foram um tanto diferentes do petismo, e ao longo do
tempo foram se distanciando ainda mais: ele “se colocou no espaço público de
modo relativamente soft, agregador, mediador, cordial, de modo a merecer
pessoalmente, no trato quase individual com cada um, o imenso desejo político”.
O líder se impõe ao partido na mesma medida em que a sua figura pessoal vai se
compondo com as camadas acima e abaixo da sociedade. Esse percurso tem momentos
de tensão, como o afastamento ou a domesticação de diversos grupos do pt. Ao
chegar ao poder do Estado, o partido havia abdicado do ideário da esquerda
independente. E Lula permanecia o mesmo. Agora, ele era Jerônimo: tinha uma
política própria. Mas ela era de conciliação.
O carisma do presidente se manifestou por completo no
Planalto. Ele encenou “o seu teatrinho de fantoches de luta de classes, que não
enganava ninguém, da luta entre o seu povo brasileiro e as elites deste país”.
Esse “não enganava ninguém” pode parecer exagerado. Mas ao lado de José Sarney,
o representante por excelência do patrimonialismo, alvejado pela enésima
denúncia de nepotismo e corrupção, Lula o classificou de um político “incomum”,
e conclamou a todos a prosseguir na luta contra as “elites”. O transe do pré-64
ressurgia, agora, orquestrado por Jerônimo.
Nesse ponto, a análise de Lulismo passa do nacional para o
internacional, e da política para a cultura. No plano interno, emergiram os
trabalhadores mais pobres, mas apenas enquanto consumidores, que aqui receberam
o apelido neutro de “nova classe média”. No externo, os ciclos de crises capitalistas
se tornaram uma convulsão contínua, pegando em cheio os países centrais. O novo
mercado brasileiro passou a contar mais para o sistema econômico mundializado,
que se interessa por ele. O interesse é percebido na crescente atenção pelo
Brasil e por Lula na imprensa americana e europeia, principalmente a econômica,
mas não só ela. Jornais e revistas viram no petista alguém que não resvalava
para as atitudes tradicionais da esquerda e do populismo, como Chávez na
Venezuela: tudo se fazia aqui dentro da ordem, sem mobilização, nacionalizações
e expropriações. O processo culminou na famosa capa da Economist, em novembro
de 2009, revista inglesa que Ab’Sáber classifica de “vanguarda neoliberal
radical”, e dela diz:
Brazil Takes Off, “o Brasil decola”, com o famigerado Cristo
Redentor decolando rumo aos céus como um foguete, em uma espécie de imagem
neotropicalista, internacional brega, muito apropriada ao jogo de popular e
avançado do lulismo para fora, do lulismo pop.
O presidente deixou de ser um símbolo local para se tornar
universal, num panorama internacional em que o Brasil ganhou realce. Tanto que
o país e o presidente foram presenteados com a oportunidade de sediarem a Copa
do Mundo e a Olimpíada. E por isso Lula virou “o cara” para “um Obama em busca
de alguma referência para o próprio descarrilamento econômico e social de seu
mundo”. Ainda que o americano tenha demonstrado inveja ao tratar o brasileiro,
houve também uma ponta de condescendência. Ele foi encarado como um pequeno
boneco de pelúcia inofensivo, com uma expressão brava divertida. O bichinho por
sinal existe. Foi criado pelo artista plástico Raul Mourão, o “Lulinha paz e
amor”, e segundo Ab’Sáber ele é “a obra-prima da época”.
Obra-prima possível porque outras operações ocorriam no
domínio da cultura no Brasil e lá fora. Lentamente, as artes e a cultura
deixaram de pensar o presente criticamente e renderam-se à lógica da circulação
de mercadorias. Sem mediações, foram do sujo solo pátrio às imagens da
propaganda mundial. O movimento geral tende à esterilidade, por um lado, e,
pelo outro, à celebrização de astros. É o mundo dos valores imateriais e
ideológicos. Das leis de incentivo cultural. Do colecionismo elegante de
grandes empresas em busca de verniz artístico. De cantoras que são “garotas
bonitinhas ligeiramente fashion que, a julgar por sua música, nunca foram
tristes, nunca tomaram um porre ou um tapa na cara”. Das Beatriz Milhazes, “que
vendeu um quadro com a sua estamparia de vestido hippie da Praça da República
por um milhão dedólares”. Do ensaísmo que só fala de coisas muito mortas, para
mumificá-las. Das megaexposições que são mais espetáculo que raciocínio. Dos
anúncios de loiras lânguidas em poses de transgressão dark que ocupam as
primeiras páginas dos cadernos culturais de jornais para propagandear artigos
de luxo. De roqueiros sessentões com os cabelos pintados de acaju à la Sarney,
gritando pela enésima vez, mas agora em playback, hinos de rebeldia juvenil de
há muito incorporados ao repertório do conformismo.
Esse universo é o do pop, aquele em que o artista é
mercadoria fantasmagórica. Um universo que obviamente não se materializou ontem
nem anteontem. No ciclo de palestras que Oscar Wilde fez nos Estados Unidos, no
final do século XIX, o artista foi tratado e se comportou como um ídolo pop.
Lula e Obama participam desse circuito. O primeiro transita entre o auditório
de Ratinho e palestras em que recebe títulos universitários mundo afora. Não é,
como Oswald de Andrade falou de Rui Barbosa, “uma cartola na Senegâmbia”, mas o
seu contrário: um pau de arara entre doutores, o metalúrgico metido a
socialista que celebra o capital. E Obama, no seu cartaz de campanha com a
palavra Hope, está mais para um modelo de Andy Warhol do que para o comandante
de operações colonialistas no Iraque e no Afeganistão.
Na última semana de novembro de 2010, a um mês do fim do
segundo governo de Lula, Paul McCartney se apresentou em São Paulo. Também
fizeram shows na cidade Lou Reed, o guitarrista Jeff Beck, o jazzista Ornette
Coleman e a cantora Martina Topley Bird. Para Ab’Sáber, tivemos, então, “uma
boa medida de nossa nova presença no circuito mundial de cultura, e das
mercadorias culturais, e mais, do nosso modo de lidarmos com esta condição,
talvez síntese do espírito cultural da era lulista”.
Lulismo centra a análise em McCartney (“um verdadeiro
inventor da relação superficial encantada e apaixonada da massa com seus
ídolos”) e Reed (“o enfant terrible do rock de todos os tempos, bem como o seu
típico artista hiperconsciente”). Diz que 60 mil pessoas foram ao primeiro show
do ex-Beatle, entre elas José Dirceu e Fernando Henrique Cardoso, Eike Batista
e Kaká, José Serra e a família de Lula – e se congregaram numa
Festa pop do tipo total, do tipo Carnaval, do tipo
celebração religiosa de massa, verdadeira competição do pop, religião laica,
com a religião materialista e telemarqueteira de hoje... Uma festa universal do
gozo do reconhecimento no próprio signo universal da melhor mercadoria.
Lou Reed não ofereceu o que a plateia esperava, e ela
abandonou o show aos poucos. Para Ab’Sáber, as duas atitudes foram lógicas. O
músico, “como verdadeiro artista, não deu o óbvio ao seu público, e o seu
público, como a verdadeira experiência de massa da época preconiza,
reconhecendo apenas a marca universal da mercadoria, deu o seu óbvio ao
artista, a sua recusa em entrar em contato com o outro e o seu desprezo”. Ou
seja, o público de Paul McCartney era exatamente igual ao de Lou Reed. Mas
enquanto um dizia a 60 mil fãs All You Need Is Love e era aplaudido por eles, o
outro não lhes entregava a mercadoria, e eles o abandonavam. Ambas as plateias
queriam amor e mercadoria.
Lula é como McCartney, tem carisma. Propiciou uma circulação
maior de mercadorias e foi amado por isso. Ele tem valor, é ouro puro,
dinheiro. Ou, conforme disse Ab’Sáber:
Como o ídolo pop, Lula articulou os efeitos de crescimento e
excitação de sua grande distribuição de dinheiro a todos, como uma mágica
pessoal, advinda de sua personalidade, e se tornou uma espécie de novo
equivalente geral, o dinheiro.
O autor de Lulismo, Carisma Pop e Cultura Anticrítica tem 46
anos. Ele nasceu em Porto Alegre, aonde seu pai, o geógrafo Aziz Ab’Sáber, fora
trabalhar, mas fez a vida em São Paulo. Demorou a decidir qual profissão
seguiria. Estudou administração pública na Fundação Getulio Vargas e cinema na
Universidade de São Paulo, onde fez mestrado sobre o cinema paulista nos anos
80. Fez psicologia, também na USP, e doutorou-se com uma tese sobre o sonho em
Winnicott, Bion e Freud. Tornou-se analista de crianças, inclusive psicóticas,
e hoje é professor de filosofia da psicanálise na Universidade Federal de São
Paulo. Com 2 metros de altura, barbudo e com jeito de urso, ele mora num
apartamento pequeno para o seu porte, o que fica visível quando faz café na
cozinha, num prédio sem elevador em Pinheiros.
Suas duas teses deram origem a livros, e ele tem pronto um
quarto, a ser lançado no segundo semestre pela Cosac Naify, sobre música techno
e raves. Lulismo é um ensaio de 100 páginas, com fotos de João Bittar do
presidente quando sindicalista. Ele foi escrito no fim do governo Lula, entre
dezembro de 2010 e janeiro do ano seguinte – o que explica alguns tropeços de
exposição –, para registrar a quente o balanço da administração do presidente.
A sua análise, que combina teoria crítica, psicanálise, política e semiótica, é
pouco usual no Brasil. No mundo de língua inglesa, Terry Eagleton, Fredric
Jameson e Slavoj Žižek fazem coisas semelhantes.
Há uma indagação subjacente ao ensaio: O que é ser de
esquerda hoje, numa conjuntura em que a maioria parece feliz, o capitalismo
continua a produzir mazelas e as crises não param de estourar? Num contexto em
que a própria ideia de crítica entrou em parafuso, a resposta é problemática.
Na última página do livro, Tales Ab’Sáber colocou assim a questão:
Até segunda ordem estamos em uma situação muito difícil, em
que cabe de fato perguntar qual é o sentido da noção de crítica em um mundo que
se forma cotidianamente de modo radicalmente anticrítico. Como alguém já disse
com precisão, o que não for de consumo, que silencie, o que leva a crer que,
nesta ordem concreta das coisas, como há muito já foi intuído, arte e
pensamento estão mortos.
Embora a proposição seja pertinente, o próprio Lulismo é uma
negativa à afirmação de que o pensamento está morto. Da mesma forma, também
estão muito vivos os escritos de Chico de Oliveira e André Singer sobre Lula e
o Partido dos Trabalhadores. Oliveira, que rompeu com o PT no início do governo
Lula, e Singer, ex-porta-voz do presidente, partiram de pressupostos diferentes
e chegaram a conclusões quase opostas. (Ambos publicaram ensaios a respeito do
assunto em piauí; Oliveira os reuniu em O Ornitorrinco e Singer prepara um
livro com suas descobertas e análises.) Embora o trabalho de Ab’Sáber tenha
escopo diferente do desses autores, os três fazem críticas que visam tornar
consciente – tornar presente e modificável – o que o poder petista fez e faz.
A morte do pensamento
está em outro lugar. Mais precisamente, no próprio PT. Nenhum prócer ou
formulador político do partido se dispôs a debater as críticas de Oliveira,
Singer e Ab’Sáber, mesmo quando elas elogiam aspectos do governo de Lula. O
raciocínio de alguns dirigentes do PT parece ser o seguinte: enquanto o
capitalismo crescer no Brasil, proporcionando alguma melhoria material na vida
dos trabalhadores, tudo bem, aproveitaremos a onda para nos eleger e reeleger,
para arrumar cargos em governos municipais, estaduais e nacionais, ou então
para montar consultorias que azeitem o trânsito de pleitos de empresários junto
ao partido.
Tudo bem?
Por Mario Sergio Conti
JUNHO DE 2012
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