quarta-feira, 25 de abril de 2012

Antes de começar meu relato, eu gostaria de deixar bem claro o objetivo dele. Apenas gostaria de passar as impressões e opiniões de alguém que esteve lá e apurou muito antes de falar algo, criar boatos ou opinar. São apenas descrições dos fatos, do olhar de alguém que esteve lá.
Nessa história ninguém é dono da verdade e dificilmente saberemos o que realmente aconteceu enquanto satisfações se confundirem com textos que troquem farpas e aliviem irresponsabilidades.
Portanto, meu intuito não é encontrar culpados (chega de chover no molhado, né?), nem jogar palavras ao vento sobre toda a desgraça que já aconteceu. Acho importante que quando se leia algo, o leitor se identifique com aquilo que está à frente de seus olhos de alguma maneira. Então gostaria de relatar todas as impressões de dentro do festival para que quem esteve lá possa compactuar das opiniões e quem não esteve, para tentar entender o que estava acontecendo ali. Meu objetivo é que debatamos sobre as falhas pensando em como elas devem ser sanadas em um evento no futuro, tirar a culpa de quem não tem nada a ver com o ocorrido (ou seja, tentar fazer os bairristas enxergarem que o Nordeste não tem culpa alguma da falência do evento) e enxergarmos o quanto a cena não pode parar nem se deixar abalar por conta desse grave deslize. Afinal, como outros ótimos textos aqui no Whiplash vêm ressaltando, somos todos GUERREIROS!
Bom, assim como grande parte dos headbangers e de pessoas que integram a cena de alguma maneira, a mim, muito preocupava a grandiosidade do evento pelo que nos era passado em releases e a cada notícia envolvendo o M.O.A., desde seu anúncio oficial, em meados de novembro do ano passado. Para eventos que ocorrem todos os anos e já possuem certa tradição, um período de menos de meio ano para realizar todas as adequações necessárias para a realização de um festival de médio/grande porte, já me parece curto. Agora, imaginem para uma mega produção que teria sua primeira edição realizada? Esse tempo se torna sufocante, eu penso. Tenho humildade em assumir que não tenho o menor knowhow técnico para sair julgando, mas só de pensar em 47 contratos com bandas a serem acertados, já me dava um certo ar de insegurança. Porém, confiando na credibilidade da produtora Negri Concerts que foi a que mais trouxe shows de metal par ao país no ano passado e na liquidez positiva da Lamparina para investimentos, acabei ficando mais tranquila, com um otimismo acomodado, que se manteve até dias antes da minha partida de São Paulo para São Luís. Foi aí que o frio na barriga aumentou e foi se concretizando, aos poucos, a sucessão de infortúnios acerca do M.O.A.
No dia da partida, obtive informações por estar muito próxima a colegas de bandas nacionais, de que muitos dos grupos sequer tinham suas passagens de ida para o festival, apenas vindo a confirmar o que Aquiles Priester tinha divulgado na mídia. Junto a isso, recebi uma ligação de uma colega que estava por lá desde quarta feira, e na quinta (dia de minha partida), estava sem ter para onde ir pois a área de camping, que deveria ter sido aberta ao público neste dia em determinado horário, estava fechada. Pior: ninguém da produção por perto, UM segurança na porta sem saber de nada. Mais tarde, ela me informou que conseguira entrar e que o que mais a espantou era o fato de a área do palco ainda estar sendo capinada e os p.a's de som ainda estarem no chão.
Convenhamos, nem o maior dos otimistas ficaria despreocupado com tais informações. Alguém me explique como coisas básicas e fundamentais como passagens de bandas e equipamento de som ainda estavam incertos um dia antes do festival? Não tive como não pensar na pior das alternativas. Mas, novamente, o otimismo acomodado falou mais alto e deixei os maus pensamentos de lado, acreditando em contratempos normais e numa explicação ótima para isso - que tardou a vir!
No avião, o otimismo aumentou um pouco: embarquei com vários outros headbangers que também tiveram a sorte de vir no mesmo avião das bandas Exodus, Anvil, Exciter, Orphaned Land e Legion of the Damned, Clima bacana! Pra mim, aquilo era a confirmação de que tudo rolaria tranquilamente, afinal, bom sinal que as bandas estão ao menos indo pra lá, ao contrário de algumas bandas nacionais. Sinal de que o problema poderia estar sendo resolvido enquanto eu estava longe da internet e de contatos com os amigos. ERRADO, óbvio.
Isso tudo só me leva a concluir algo óbvio: o que começa errado, termina errado.
Em minha opinião, o que rolou foi que a produção acabou levando esse mesmo otimismo acomodado (acomodado por não levar em consideração os FATOS, mas sim as ambições e o desejo de fazer rolar, somente), a sério demais, a ponto de dar um passo maior que a perna. O que sem dúvida seria o mais correto, era começar com um cast mais modesto, apenas um dia de shows: assim, teriam mais tempo para se preocupar com todo o resto, que vai desde assuntos extra contratuais com as bandas a imprevistos.
Que fossem cinco bandas internacionais e cinco nacionais, ou dois dias com esses mesmo número de bandas cada. Teriam tido tempo, foco e dinheiro para cumprir com exigências de backline e cachê, passagens de TODAS as bandas, e para prevenir toda a estrutura do local contra vistorias da vigilância sanitária e segurança pública. Concordam que é meio óbvio? O público de metal é sedento por novidades e empreendimentos que deem certo e engrandeçam a cena. Ninguém iria deixar de ir ao show pelo cast ser menor. Continuaria sendo um dos maiores festivais a serem realizados no país, pois sem dúvidas os mesmos fãs que estariam ali pelo Anthrax, por exemplo, prestigiariam sem dúvida um show do Korzus ou Stress, principalmente quando se trata de uma região do país onde há uma escassez de shows maior que em outras regiões. Para eles, principalmente, o festival não se tratava apenas de uma atração de entretenimento, mas um motivo de orgulho.
Eu acho louvável a atitude de ter culhões para assumir um compromisso de tal magnitude e importância que é um festival desse porte. Mas mais louvável ainda é conseguir fazer isso com os dois pés firmes no chão, e nisso, eles falharam.
Me expliquem PRA QUÊ prometer rodízio de churrasco com o Mad Butcher dando show? E lagoa? Quem precisa de uma lagoa quando se têm bandas ícones tocando no palco? Caixas eletrônicos? Mercado? Tenho certeza que se não tivessem prometido essas coisas, nenhum headbanger deixaria de ir e sem dúvida o festival não teria sido um fiasco com tal dimensão de repercussão. Se nada tivesse sido prometido, a galera chegaria lá, veria yakissoba a 10 reais e pratão de churrasco com arroz, feijão e macarrão por esse mesmo preço e ia achar ótimo. Afinal, quem vai a shows aqui em São Paulo, por exemplo, está acostumado a ver batata chips de 70 gramas sendo vendida a 7 reais. Festival não precisa ter requinte. Já fui ao Wacken na Alemanha e ele próprio não possui um rodízio de nada lá! São barracas vendendo hamburgueres, sanduíches tipo churrasco grego, macarrão e cerveja. SÓ! Quem quiser requinte que saia do pequeníssimo condado de Wacken e demore horas pra viajar até a cidade de Hamburgo pra gastar uma grana absurda num prato de comida. E nunca vi ninguém reclamar disso por lá. Ok, o Rock in Rio por aqui teve até estande do Spoleto? Sim, mas é um festival que já tem várias edições e se tornou uma verdadeira marca com mega investidores milionários por trás com o passar dos anos. Pode ser que o M.O.A. conseguisse isso no futuro, mas não em sua primeira edição, concordam?
Sem contar algo que foi pregado e não cumprido que me chateou MUITO. A igualdade entre bandas nacionais e gringas me deixou muito feliz e me fez dar muitos créditos à Lamparina no começo de tudo. Senti que seriam respeitadas como deveriam. Mas, logo de cara, começaram a limar os logos de bandas nacionais, como se fossem menos importantes. Elas NÃO SÃO menos importantes. Aliás, se não fossem elas, o segundo dia de festival nem teria acontecido, e não teríamos tido o melhor e mais emocionante show do fest, o do Korzus. O Korzus merecia ter seu logo limado como se não tivesse uma longa carreira de lutas? Para mim, passou a ficar claro que desde o começo, a preocupação era: "vamos focar nas gringas. SE DER, a gente começa a pensar nas nacionais". E não deu! Afinal, muitas nem viajaram por não terem passagem e cachê então, nem entremos no mérito, né? E para mim, o que mais me IRRITA é ler e ver depoimentos como "fiz o que pude", "ocorreram problemas de liquidez", "tivemos dificuldades na reta final". Bem, pra mim, nem precisa ver logística de palco se não tem nem banda confirmada, e confirmação ao meu ver, vem com contrato, cachê e passagens (MÍNIMO, convenhamos!). Não faz sentido também para vocês? Se as bandas que representam metade do cast do festival não têm passagem, isso pra mim não configura um problema de "reta final", mas sim de "reta inicial"!!!
Enfim, exponho tudo isso apenas para exemplificar o que quero dizer com esse lance de prometer muito. Se não tivessem prometido tanta coisa, o efeito não teria sido negativo. Esses dias, me falaram que PALAVRA é algo essencial para a cena rolar. Então eu concluo que muitos bangers ficaram chateados (para não dizer putos), com essa quebra na palavra. Eles confiaram em algo e se sentiram como bobos quando não receberam aquilo que fez seus olhos brilharem ao comprar os ingressos e na hora de parcelar em vinte vezes suas passagens. Então, para um próximo festival, vamos torcer para que fiquem naquele termo do "menos é mais". Se for prometido algo básico e for oferecido algo melhor, já se começa com o pé direito. Não trato aqui de se contentar com pouco, mas se contentar com a realidade. Sonhar é uma delícia, mas não quando se mexe no bolso de 10 mil headbangers. Um passo de cada vez é a minha dica.
Enfim, voltando à descrição do fest… Enquanto estávamos pela cidade durante toda a quinta feita, MUITOS, eu ressalto, MUITOS boatos começaram a rolar, de todas as espécies, fontes e gravidades. Aliás, foi neste dia que conheci a fundo o verdadeiro significado da palavra boato. Muita gente que gosta de falar bastante na internet para se aparecer, para parecer que é sempre o primeiro a saber de tudo e que gosta de gerar polêmica, acabou soltando coisa que começou a desesperar muita gente, e, que na verdade, não passavam de pura balela sem apuração. O resultado foi um pânico parcial, pois muita gente se São Paulo começou a ligar desesperada e preocupada com o que lia na internet, enquanto eu mesma, que estava ali, muito bem acompanhada de gente bem informada, não estava sabendo. Então, outra dica: confiemos em gente com credibilidade numa próxima. Boato é coisa grave. Mas, novamente, boa parte dos boatos só se fortaleceu por conta de outra falha na produção, que eu compreendo que para eles, que estavam resolvendo altos pepinos, seria a última coisa com o que se preocupariam, mas, para nós, da imprensa ou fãs, seria importantíssimo.
Nenhum tipo de equipe de assessoria de imprensa, de ambas as partes envolvidas no evento, se prontificou a lançar notas OFICIAIS quanto ao que estava acontecendo. Ficávamos numa verdadeira sinuca de bico de dúvidas. Boatos estavam sendo alimentados, mas não havia NENHUM pronunciamento oficial para acalmar os ânimos. Isso não se faz! Mesmo que a notícia a se dar seja pavorosa, ela TEM que ser dada. Melhor que se instaurar um pânico e bochichos piores que a realidade. Não via a hora de ouvir algo oficial, para o próprio bem do evento, pelo qual torci até o último fôlego.
Para somar a isso, eu, e algumas outras pessoas de São Paulo, tivemos sérios problemas com rede de celular. Não sei o que diabos aconteceu, mas estava muito difícil rolar uma comunicação decente via celular. Talvez isso seja um caso isolado porque meu celular é um terror, mas, por outras vezes, do nada, em meio a alguma ligação, aparecia um sinal de "rede ocupada" em todos os celulares ao mesmo tempo. Esse, eu diria, seria um dos únicos problemas estruturais mais graves da cidade de São Luís. A cidade tem sim seus altos e baixos e bastante falhas, mas não cabem ao mérito quando quanto ao festival. Afinal, não existe no Brasil uma cidade perfeita, sempre haverão problemas de âmbito governamental e social, infelizmente. Mas, no que diz respeito à realização do festival, desde o momento em que cheguei na cidade, só passei a confirmar mais ainda que nada do que muitos bairristas falaram no começo sobre "a cidade não ter porte para realizar o evento", cairiam por água abaixo. Havia hotéis para quem procurou com antecedência, lugares para comer, visitar, bom trânsito, táxis, policiamento na medida do possível, etc. A maior prova de que isso é verdade e que essa coisa de Nordeste não ter porte pra shows gigantes, são os grandes festivais que já acontecem a um bom tempo como o Abril Pro Rock e o Palco do Rock. Isso sem contar algo importante: no primeiro táxi que peguei por lá, vim conversando com o motorista que disse que sabia que o festival ia acontecer tranquilo, porque outros shows bem grandes, como aqueles de forró e outros estilos que ENCHEM ESTÁDIOS, acontecem com grande freqûencia por lá e não dão errado. Faz sentido, de certa forma. Então, só me leva a crer que se houve alguma falha, com certeza não foi da cidade. E senti isso no depoimento de cada nordestino para mim lá no camping do M.O.A. Muitos estavam preocupados sobre o que esses que sempre falaram que não rolariam no nordeste iriam falar agora, e, pela Tv Maloik, peguei depoimentos de pessoas que enfatizaram bastante isso, dizendo que o Nordeste podia ter muitos problemas, mas que aquela bagunça toda envolvia muita gente de outros lugares e não tinha nada a ver com a região! E sobre isso não há dúvida mesmo: a galera ali é sedenta por shows de qualidade e a cena ali é fortíssima e muito unida. Então por favor, parem com tantos comentários preconceituosos pela internet, isso é desanimador e só demonstra ignorância de gente que não faz idéia do que a cena no nordeste é. Eles têm muitos problemas por lá sim, que PRECISAM ser sanados a tempo de coisas de âmbito maior, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, por exemplo. mas, para que ocorra um festival, as coisas parecem estar dentro dos parâmetros sim.
Primeiro dia de festival já começa com muita incerteza. Eu e a equipe do Whiplash preparadas para ir a campo, mas não tínhamos nem certeza se o festival iria acontecer. Isso porque boatos, juntamente a relatos de amigos nos campings, alimentavam notícias como a presença de vigilância sanitária e bombeiros no local querendo vetar a realização do evento (por problemas básicos, fortemente relacionados ao camping, como falta de postos de alimentação, quedas de luz, condições precárias de higiene e segurança, etc).
Sem dúvidas, nos primeiros momentos, o que mais estava causando problemas era o camping. Muita coisa que estava sendo apontada como errada e que poderiaa chegar a levar ao cancelamento do evento, vinha de lá.
Daí, óbvio a indignação. Seja lá quem foi o responsável por esse quesito (chega de apontar que foi esse ou aquele), porque não pensou nesses problemas estruturais antes? Não havia uma equipe que pudesse agir para resolver com antecedência tudo que pudesse causar problemas em relação àquilo?
Então, no ápice do pensamento, eis que me deparo com uma amiga me mostrando um trecho supostamente escrito pelo Júnior, da Lamparina, no dia 06 de março no grupo do M.O.A. no Facebook, dizendo o seguinte:
"Acho que não devia, mas vou ser sincero com relação a política de camping! Na boa, estamos pagando tanta coisa...Aí uma meia dúzia de pessoas reclamam que não podem entrar com seu leite ninho, nescau e biscoito piraquê, tenha santa paciência, banger toma cerveja e come churrasco, eu pelo menos, estou sedento para rasgar uma picanha na churrascaria mad butcher!!!!!"
Bem, depois dessa, não tenho nem o que comentar. Desejaria que isso fosse um mero boato. Mas, lembram-se do que eu disse sobre sonhar sem o pé no chão? Poisé, se preocupar com picanha enquanto pode sofrer uma intimação da vigilância sanitária, não é lá muito sábio. Se tudo no camping tivesse rolado tranquilamente, eu até acharia engraçada essa afirmação, mas dadas as condições, fica difícil até pensar que isso é sério, não? E a Lamparina não deve levar toda a culpa, todos os envolvidos que concordaram e aceitaram essa condição de deixar fatos fundamentais por último, devem ser creditadas também.
Enfim… Antes de chegar na parte boa (SIM, houve uma parte MUITO boa!), a outra má notícia que pegou a todos de surpresa. A banda Anthrax, para espanto de todos, acabou cancelando repentinamente sua apresentação, mesmo já estando na cidade, pronta para o show.
A partir daí, começaram a rolar os MALDITOS boatos novamente, de que o Anthrax, e váááárias outras bandas teriam cancelado suas apresentações por conta de cachê, segundo o que estava rolando na internet. Muita informação mal apurada, e a gente quase enfartando de pânico lá em São Luís. Daí entramos em mais um tópico polêmico, e eu vou falar AS MINHAS impressões, interpretem como quiserem. Aliás, coloco isso à mesa para debatermos. Não sou dona da verdade, mas conversei com bastante, MUITA gente antes de redigir isso aqui para tirar minhas conclusões.
Até onde eu sei e apurei, o Anthrax cancelou a apresentação por quebras no contrato em relação a backlines. Eles haviam pedido alguns equipamentos que não estavam por lá, como por exemplo, a bateria Tama da qual Charlie é endorsee e, logicamente, havia exigido e não estava lá. Devemos contestar então a atitude do Anthrax? Vi muitas coisas por aí que me dividiram a opinião. É claro que seria ótimo se eles tivessem tocado em respeito a nós, que estávamos lá, e muitos criticaram essa falta de consideração, ficando frustrados, como eu. Mas, entendo também o lado da banda. Charlie deveria fazer o quê? Arriscar seu contrato com a Tama, usando outra marca, sendo que tudo já estava esclarecido desde que a banda foi fechada no cast (uma vez que o backline é algo básico que as bandas sempre pedem para poderem realizar uma boa apresentação de acordo com suas necessidades)? Em minha opinião, existem exigências e exigências. Aquelas coisas do tipo "vinte opções diferentes de almoço" ou "100 toalhas brancas por integrante", acho sem sentido algum, mas quando envolve equipamentos, o lance é outro.
De qualquer maneira, mais uma lição foi tirada dessa triste situação. Aqui, estamos infelizmente acostumados, e quem tem banda pode confirmar, a parte das vezes, na última hora, produtores dizerem que está faltando algo no backline, e, por entender a situaçao difícil e guerreira desses realizadores de show e também para não decepcionar o público, os grupos acabam aceitando. Mas, com os gringos, aprendemos que nem sempre será assim. Talvez esse fato tenha vindo para abrirmos os olhos e tentarmos melhorar essas falhas. A cena só terá a ganhar com mais shows de qualidade.
Enfim, finalmente nos deslocando ao local do evento, quando chegamos por lá, tive a primeira e mais grata surpresa de todas. O festival estava ali, rolando, e o que me deixou mais feliz, LOTADO de gente e com uma puta estrutura de palco, som e iluminação. Aquela vibe de festival estava perfeita até então, fiquei com o coração cheio de esperança. Através das fotos, vocês devem ter percebido do que estou falando, certo? Se os detalhes que citei ali em cima sobre infra estrutura tivessem sido sanados, eu diria que seria uma área digna de um festival legal e de grande porte. Área bem ampla, com muito espaço para camping (POR QUÊ tinham que fazer num estábulo, sendo que ia dar margem pra críticas? Tinha tudo para dar certo!), dois palcos enormes, iluminação classe A, enfim… Na vdd, maior do que aquela alegria que me bateu aquela hora, é a tristeza agoniada agora que tenho que se tudo tivesse sido feito com mais esmero, tinha TUDO, mas TUDO para dar certo, funcionar, e fazer história no país.
E falo isso tão com a boca cheia que, apesar do atraso até o início da primeira banda, tudo acabou rolando quase que perfeitamente e de acordo com o cronograma.
Para quem gosta do estilo, Almah e Shaman fizeram bons shows. Quanto aos das bandas internacionais, ocorreram sem maiores problemas e atenderam às expectativas dos headbangers.
O Exciter teve alguns problemas no som, mas rolou tranquilamente. O Orphaned Land, apesar de não me agradar nem um pouco e para falar a verdade, até me irritar com sua sonoridade por alguns momentos, fizeram um bom show. Se sentiram visivelmente bem recebidos e pareciam muito excitados em tocar aqui pela primeira vez. O público retribuiu com muitos aplausos e cabeças bangueando. O Anvil, ícone do Heavy Metal mundial, também se apresentou bem, porém sofrendo com consecutivas falhas nos microfone do vocalista e guitarrista Lips. O Destruction também só veio a confirmar que NUNCA decepciona ao vivo. Desfilou clássicos do início ao fim em o show mais energético até então. Até então, eu disse! Pois logo na sequência, entrariam os americanos do Exodus, dando uma lição de como se faz um show de thrash metal da maneira mais agressiva e de tirar o fôlego. Até mesmo o vocalista Rob Dukes fazia questão de frisar isso, quando disse: "Vocês querem uma música lenta para poderem descansar? Me desculpa, mas não temos músicas lentas!"! EXCELENTE apresentação, com direito a prêmio Fernanda Lira de melhor show da noite, tendo como concorrente à altura somente o Destruction.
Na sequência, veio o morno show do Megadeth. Talvez tenhamos criado tanta expectativa e medo de ele não tocar no festival por alguma frescurite, que na hora em que terminaram o show, a maioria esperava muito mais. Set curto, poucos clássicos (conseguem acreditar que não tocaram Sweating Bullets?), pausas contínuas e frequentes de Mustaine para reclamar nos bastidores sobre alguns problemas, e visíveis complicações vindas da mesa de som: microfonia, volume oscilante e falhas mais estranhas, como por exemplo, naquela pausa no meio da Holy wars, onde entra um quase dedilhado com a guitarra limpa, O SOM NÃO APARECEU.
Mas, enfim, eu estava feliz demais. O saldo havia sido extremamente positivo. Uma coisa que me demonstrou muita consideração com o público e pelo menos uma sombra de organização, foi a agilidade na troca de palcos. Tenho certeza de que assim que um show temrinava em um palco, o outro já havia sido montado para a próxima banda, que não tardava mais que 10 minutos para entrar. A não ser antes do show do Symphony X, se não me engano, que houve uma pausa de 40 minutos, mas programados, provavelmente para dar uma pausa para os bangers poderem ir ao banheiro ou comer (essa pausa já havia sido avisada, pelo menos para quem era da imprensa).
Tenho certeza que se houvesse alguém que não soubesse o que tinha se passado no camping nem dos problemas nos bastidores e visse o show, não teria do que reclamar.
O clima parecia ser de felicidade, eu pelo menos voltei para o hotel com a alma lavada. Mas sentia-se um certo clima de tensão no ar. Será que os problemas de camping já haviam sido resolvidos ou pelo menos haveria segurança para quem ficasse lá até que as falhas fossem consertadas?
Será que mais bandas vão cancelar?
Mas, eu, pelo menos, fui dormir otimista novamente!
Acordei tarde no dia seguinte, engolindo a comida rapidamente e botando a roupa de qualquer jeito, achando que já estava atrasada para o festival. Quando ligo a TV, reportagem ao vivo de um canal maranhense no local. Todo meu otimismo foi ladeira abaixo. Tudo estava pior do que no dia anterior. Tudo o que tinha me dado um sorriso de orelha a orelha na noite anterior, havia desmoronado, e o festival já tinha sido notícia no Jornal da Globo, Jornal Nacional, e já era capa dos principais jornais de São Luís.
Além do cancelamento do Rock and Roll All Stars, uma série de outros fatores havia vindo à tona. Novamente, o camping era o problema e, por algum motivo ainda desconhecido, um dos palcos havia sido parcialmente desmontado. Passamos o dia inteiro precisando de informações sobre o início dos shows e também da confirmação ou não dos boatos que estavam rolando. Felizmente, empresários da Lamparina deram as caras, e falaram com o público, num ato que achei muito digno. Porém só avisaram que ocorreriam atrasos, deixando muitas dúvidas nas cabeças dos bangers. Tanto que, fiquei sabendo de DEZENAS de pessoas que cancelaram sua vinda ao festival exatamente por não saberem se ele rolaria ou não. Isso é grave, deveria ter havido, novamente, algum pronunciamento oficial.
Nossa equipe se deslocou até o hotel onde algumas bandas estavam hospedadas e começamos a sondar respostas. Mas, o clima era de suspense, ninguém sabia qual banda começaria, qual banda cancelaria, e o pior, se o festival iria rolar. Essa dúvida permaneceu até quase sete da noite, quando a banda Ácido subiu ao palco.
Boatos sobre o cancelamento do Blind Guardian e Grave Digger eram fortíssimos, mas ainda sem nada concreto para acalmar, ou revoltar o público.
Mas, seguimos para o festival e o clima por lá foi negativamente surpreendente, INFELIZMENTE. Digo infelizmente porque eu, assim como vários outros headbangers, torcemos, acreditamos e queríamos mais que TUDO que esse festival rolasse. Eu acreditei e apoiei até o último momento. E fiquei muito triste quando cheguei por lá.
Logo após ingressarmos, infelizmente constatamos que muitas pessoas estavam entrando sem ingresso, credencial ou qualquer outro tipo de passe. Triste para os bangers que pagaram, mas o meu medo era maior quanto à segurança. Bandido é esperto. Numa dessas, pra entrarem de graça por lá e tocarem o terror, é um passo.
Como estava também com uma câmera de vídeo para gravar algumas imagens para o programa de TV do qual sou repórter, o Maloik, muita gente vinha me pedir por informações e ajuda, e eu sinceramente não sabia o que responder. muitos deles, inclusive, vinham PEDINDO para dar entrevista, como fosse sua última maneira de desabafar. Muitos me falaram sobre segurança, e, em determinado ponto da noite, enquanto a banda Dark Avenger tocava, eu fui averiguar e realmente havia pouquíssima segurança. Pasmem colegas de imprensa, entre a grade de público e o palco, não havia alguma pessoa da equipe lá em dado momento. E, o mais lindo de tudo, foi ver que os bangers, educados e politizados que somos apesar de toda a bagunça que a mídia fala sobre nós, nem sequer invadiram a área. Somente fotógrafos estavam lá. A área de camarote, sim, havia sido tomada por varias pessoas do público. pois não havia segurança. Depois de algum tempo, a segurança se normalizou novamente, fazendo presença por vários pontos do festival. Mas até isso aocntecer, pude sentir um clima de medo e insegurança.
Mas o pior dos climas que eu senti, estava por vir. Alguns fãs tinham me relatado sobre uma certa sensação de abandono, que se sentiam abandonados, à mercê de qualquer coisa que a produção decidisse e sem poder para fazer nada. Quando ingressei no camarim, isso se confirmou. Ele, que estava hiper movimentado e equipado no dia anteiror, havia sido quase totalmente retirado, sobrando apenas geladeiras e um camarim em pé. Quase ninguém da produção rondava, as pessoas andavam de um lado por outro sedentas por informação… Foi realmente muito triste. Conversei com uma pessoa muito importante lá no camarim que me explicou muitas coisas sobre o que estava acontecendo, coisas estas que já foram esclarecidas nas notas que ambas as produtoras divulgaram nos últimos dias. O palco, o camarim, aquela hora sem seguranças, tudo ocorreu por falta de pagamento, o que é MUITO triste. Tudo isso deveria ter sido acertado antecipadamente, não é mesmo? E isso me entristeceu, porque, pensem comigo, se tudo isso tivesse sido pensado e fechado previamente, o festival continuaria rolando tão lindamente quanto aconteceu na sexta feira. Isso me cortou o coração.
E e pergunto mais ainda: se os pagamentos de algumas coisas não haviam sido efetuados, se as bandas nacionais quase todas foram deixadas em segundo plano, se as condic'ões do camping não foram analisadas, o que rolou em todos esses meses que antecederam o festival?
Acho que essa pergunta expressa grande parcela da indignação de todos os metalheads que estavam por lá e sofreram as consequência dessa possível falta de panejamento e visão.
A partir dessas constatações, pude entender perfeitamente o por quê das banda sque tocariam naquela noite terem cancelado, Não foi cachê, não foi backline, mas sim o acúmulo de todas essas condições. Em minha opinião, elas estão na razão delas.
Com tudo isso, eu cheguei à conclusão bem particular (esse foi o MEU sentimento) que, com tudo isso que me foi esclarecido, seria muito difícil o festival 'sobreviver' até o dia seguinte. Para isso aocntecer, teriam que tirar dinheiro de algum lugar, derrubar liminares de órgãos como a vigilância sanitária que ovamente passaria pelo camping, e tudo o mais. Tenho certeza de que eles da produção lutaram até o último minuto para fazer o festival acontecer até seu fim, mas eram muitas coisas que precisariam ser resolvidas num pouquíssimo intervalo de tempo, já que não foram solucionadas com meses de antecedência.
Isso me causou muita tristeza, porque logo na sequência fui ver o MARAVILHOSO e EMOCIONANTE show do Korzus, com um nó do tamanho do planeta na garganta.
Tristeza porque todos ali estavam de coração aberto para curtir metal, para demonstrar sua paixão pela música e o quanto ela representa para cada um deles, afinal, quem vive, sabe que metal está longe de ser um estilo de música, mas, sim, um estilo de vida! Tristeza de ver que mesmo sabendo que aquele poderia ser o último show do festival, eles estavam ali, curtindo cada segundo como se nada tivesse acontecido, prontos para gritar e apoiar quem pisasse ali no palco. Tristeza de ver que o sonho de 10 mil pessoas que mal pudiam ver a hora de conferir um festival à altura de sua devoção para o metal, ir por água abaixo.
Muitos choravam, ouvi até gente querendo fazer uma vaquinha coletiva para conseguir dinheiro para pagar o que faltava, e muitos abraçavam os colegas do lado, dizendo que pelo menos a união de quem estava no camping fez valer à pena.
O show do Korzus veio para que todos se sentissem representados. No palco, o Pompeu disse palavras que todos ali gostariam de falar. Confirmou que somos todos guerreiros, que nem mesmo um desastre como aquele nos faria desistir do metal, porque nós, da cena nacional, somos fortes e apaixonados demais para deixar que isso aocntecesse.
Impossível segurar as lágrimas durante o hino nacional cantado em côro, por pessoas que, com aqule gesto, queriam mostrar que acreditam, apesar de tudo, no metal no Brasil, e isso é lindo e muito verdadeiro.
Após o show do Korzus, uns ainda alimentavam a esperança de que mais bandas tocassem, mesmo com o palco já sendo desmontado.
Devido a compromissos em São Paulo com a minha banda, tive de retornar, mas com aquela preocupação com todos os amigos e irmãos do metal que ficaram ali com suas passagens marcadas para domingo ou segunda, com suas barracas à mercê de todo perigo no camping e tudo o mais. Chegando em casa, vi que o que eu previa, havia acontecido: o festival não sobrevivera.
Para falar a verdade nem estou ligando muito para o que a bosta da mídia não especializada está pensando de nós depois disso, afinal, eles nUNCA se interessam em compartilhar nada das milhares de coisas boas que acontecem todo dia em cada canto do país relacionado ao metal, mas quando alguma desgraça acontece, são os primeiros a nos denegrir, afinal, para eles, metal é e sempre será bagunça, não é?
Mas ligo muito para o que a cena perdeu com a queda de um fest dessas proporções, ainda não acredito que o sonho de termos o maior festival do país para nossa alegria (sem piadas, por favor) se esvaiu tão rapidamente, por problemas, digamos eminentes.
Enfim, em minha opinião, ficar culpando este ou aquele, ou tentar achar quem é mais culpado que quem, é chover no molhado e não vai levar a lugar nenhum. Devemos ler os relatos, analisar as notas oficiais e tirar nossas próprias conclusões. Quanto aos produtores, tenho plena certeza de que sabem de todos os problemas que ocorreram e que deverão arcar com as consequências, ninguém tentou dar golpe, e muito menos vão fugir de suas repsonsabilidades legais quanto ao ocorrido.
Resta aos headbangers que se sentiram lesados, seguirem os procedimentos corretos para que reinvidiquem seus direitos.
E espero que com o meu texto, possamos refletir sobre tudo o que houve e torçamos para que os problemas apontados sejam sanados e prevenidos em uma próxima vez. E essa próxima vez, VAI acontecer. Afinal, headbanger é headbanger! E é claro, o rock não pode parar!

Por Fernanda Lira 

    Fonte: Whiplhash

sábado, 7 de abril de 2012

Não me abandone jamais ...

Me chamo Kathy H. Tenho trinta e um anos e sou cuidadora há mais de onze. Tempo demais, eu sei, mas eles querem que eu fique mais oito meses, até o fim do ano. O que dará quase exatos doze anos de serviço. Sei que o fato de ser cuidadora há tanto tempo não significa necessariamente que meu trabalho seja considerado fantástico. Houve alguns ótimos cuidadores que receberam ordem de parar depois de dois ou três anos apenas. E eu conheço pelo menos um que ficou os catorze anos completos, apesar de ter sido um desperdício total de espaço. Portanto, minha intenção aqui não é me vangloriar. Mas não resta a menor dúvida de que eles estão satisfeitos comigo e de modo geral não tenho do que me queixar. Meus doadores sempre foram muito melhores do que eu esperava. Todos se recuperaram com uma rapidez impressionante e quase nenhum chegou a ser classificado como 'agitado', nem mesmo antes da quarta doação. Muito bem, talvez eu esteja me vangloriando um pouco agora, admito. É que significa um bocado para mim poder dar conta direito do trabalho, sobretudo essa parte dos doadores continuarem 'calmos'. Desenvolvi uma espécie de instinto em relação a eles. Sei quando devo permanecer por perto oferecendo consolo e quando é melhor deixá-los em paz; quando escutar o que têm para falar e quando tão-somente encolher ombros e dizer-lhes que não se entreguem ao desânimo.
De todo modo, não estou reivindicando nada de muito grandioso para mim. Conheço cuidadores que trabalham tão bem quanto eu e que não recebem nem a metade dos créditos. Se você for um deles, entendo o motivo de possíveis ressentimentos — em relação a meu conjugado, meu carro e, acima de tudo, ao fato de eu mesma escolher os que vão ficar sob meus cuidados. Sem falar que sou de Hailsham — o que por si só muitas vezes é suficiente para deixar as pessoas de mau humor. Elas dizem, a Kathy H.? Ela escolhe o pessoal a dedo, e sempre da turma dela: gente de Hailsham ou de algum outro estabelecimento igualmente privilegiado. Não é à toa que ela tem uma ficha excelente. Nem sei quantas vezes já escutei isso, e posso imaginar que você ouviu muitas mais, de modo que talvez haja um fundo de verdade aí. Mas não fui a primeira a poder escolher, e duvido que seja a última. De qualquer forma, já fiz minha parte, cuidando de doadores trazidos de tudo quanto foi lugar. Até eu terminar meu serviço, não se esqueça, terei completado doze anos, e só nos últimos seis é que eles me deixaram escolher.
E por que não me deixariam? Cuidadores não são máquinas. Nós tentamos fazer o melhor possível para cada um dos doadores, mas no fim o serviço é exaustivo. Paciência e energia têm limite, e isso vale para todo mundo. De modo que quando surge a oportunidade de escolher, claro que você vai optar por pessoas semelhantes a você. Isso é natural. Eu não teria tido a menor condição de continuar fazendo o que faço durante tanto tempo se porventura deixasse de nutrir sentimentos pelos meus doadores em cada uma das etapas percorridas. Além do mais, se eu não tivesse obtido permissão de escolher, não poderia ter me reaproximado de Ruth e Tommy depois de tantos anos, não é mesmo?
Nos dias que correm, claro, há cada vez menos doadores conhecidos, o que significa que na prática não tenho escolhido tanto assim. E, como eu sempre digo, quanto menos ligação existe com o doador, mais difícil fica fazer o serviço; portanto, mesmo que eu sinta falta de ser cuidadora, acho correto dar finalmente por encerradas minhas atividades no final do ano.
Ruth, por falar nisso, foi apenas a terceira ou quarta doadora que pude escolher. Já havia uma cuidadora designada para ela, na época, e lembro-me que foi preciso uma certa dose de coragem de minha parte. Mas no fim dei um jeito, e assim que a vi de novo, naquele centro de recuperação de Dover, nossas diferenças — ainda que não tivessem exatamente sumido do mapa — não me pareceram nem de longe tão importantes quanto tudo o mais: o fato de termos crescido juntas em Hailsham, o sabermos e nos lembrarmos de coisas que ninguém mais sabia ou das quais ninguém mais se lembrava. Foi dessa época em diante, imagino, que comecei a buscar nos doadores pessoas conhecidas no passado e, sempre que possível, de Hailsham.
Houve épocas, no decorrer desses anos todos, em que tentei esquecer Hailsham e me convencer de que não seria bom ficar olhando tanto para trás. Porém num determinado momento simplesmente parei de resistir. E isso teve a ver com um doador em particular, de quem tomei conta certa feita, no meu terceiro ano como cuidadora; com a reação dele quando comentei que era de Hailsham. Ele tinha acabado de sair da terceira doação, que não dera muito certo, e já devia saber que não iria se safar. Embora mal conseguisse respirar, me olhou e disse: 'Hailsham. Aposto como era um lugar lindo'. Na manhã seguinte, batendo um papinho na tentativa de distraí-lo daquilo tudo, perguntei de onde ele era; o doador mencionou algum lugar em Dorset e sua expressão, por baixo da pele manchada, passou a um tipo bem diferente de esgar. Foi então que caí em mim e percebi a vontade imensa que ele tinha de não se lembrar de nada. Tudo o que ele queria era que eu falasse de Hailsham.
Portanto, durante os cinco ou seis dias que se seguiram, contei-lhe tudo o que ele quis saber, enquanto, do leito, ele me ouvia fascinado, com um leve sorriso nos lábios. Falei dos nossos guardiões, das caixas com as coleções que eram guardadas debaixo da cama, do futebol, das partidas de rounders, do caminho estreito que contornava todos os cantos e recantos externos do casarão, do lago com os marrecos, da comida, da vista que tínhamos das janelas da Sala de Arte pela manhã, com os campos cobertos de bruma. Às vezes ele me fazia repetir vezes sem conta a mesma coisa; algo que eu mencionara no dia anterior voltava a ser alvo de perguntas, como se ele nunca tivesse escutado uma única palavra sobre o assunto. 'Vocês tinham um pavilhão de esportes?' 'Quem era seu guardião predileto?' De início, pensei que fosse apenas efeito dos remédios, mas depois me dei conta de que ele estava bem lúcido. Mais do que ouvir falar de Hailsham, ele queria se lembrar de Hailsham como se Hailsham tivesse pertencido a sua própria infância. Sabia que estava perto de concluir, de modo que me fazia descrever as coisas de forma que elas penetrassem de fato em sua lembrança. A intenção dele, talvez— durante as noites insones devido aos remédios, à dor e à exaustão —, era tornar indistintos os contornos que separavam as minhas memórias das suas. Só então compreendi, compreendi de fato, quanta sorte tivéramos — Tommy, Ruth, eu, na verdade todos nós.
Ainda hoje, dirigindo pelas estradas do interior, vejo coisas que me fazem lembrar de Hailsham. Às vezes, passando por um trecho sob neblina ou descendo a encosta de algum vale, ao divisar parte de um casarão ao longe, e até mesmo quando vislumbro o desenho formado por um grupo de choupos plantados no alto de um morro, logo me ocorre pensar: 'Talvez seja ali! Achei o lugar! Aquilo é Hailsham, só pode ser!'. Depois percebo que é impossível e sigo adiante, com os pensamentos vagando por outras paragens. Em especial, há os pavilhões. Vejo-os por todo o interior, sempre erguidos ao lado de um campo de esportes — pequenas construções pré-fabricadas, pintadas de branco, com uma fileira de janelas numa altura absurda, bem lá em cima, enfiadas quase debaixo dos beirais. Acho que eles devem ter construído um monte desses pavilhões nos anos 50 e 60, época em que muito provavelmente também construíram o nosso. Toda vez que passo perto de um, olho comprido para ele durante o tempo que for possível, e qualquer dia ainda vou causar um acidente por causa disso, mas não consigo evitar. Não faz muito tempo, eu rodava por um trecho deserto de Worcestershire e vi um, ao lado de um campo de críquete, tão parecido com o nosso em Hailsham que cheguei até a fazer o retorno e voltar para dar uma segunda olhada.
Adorávamos nosso pavilhão de esportes, talvez porque nos trouxesse à mente aquelas deliciosas casinhas que apareciam em tudo quanto era livro ilustrado, quando éramos crianças. Lembro-me de nós, ainda nos anos Júnior, implorando aos guardiões para que dessem a aula seguinte lá, e não na sala habitual. Mais tarde, quando cursávamos o Sênior 2 — quando tínhamos doze para treze anos —, o pavilhão se tornou nosso esconderijo predileto, nosso e dos nossos amigos mais íntimos, quando queríamos fugir de tudo e de todos em Hailsham.
O pavilhão era suficientemente grande para abrigar dois grupos distintos sem que um incomodasse o outro — no verão, um terceiro grupo podia ficar na varanda. Mas o ideal é que você e seus amigos ficassem com o lugar só para si, de modo que era muito freqüente haver discussões e empurra-empurra. Os guardiões viviam nos dizendo para agirmos com civilidade a respeito, mas na prática era preciso contar com personalidades fortes no grupo para ter alguma chance de conseguir exclusividade no pavilhão durante um recreio ou um período livre. Eu própria não era do tipo franzino, mas desconfio que foi de fato graças a Ruth que conseguimos nos reunir lá com a freqüência com que nos reuníamos.
Em geral não fazíamos mais que nos aboletar nas cadeiras e nos bancos — éramos cinco, seis quando Jenny B. ia junto — e bisbilhotar sobre a vida alheia. Havia um tipo de papo que só tinha possibilidade de acontecer quando estávamos escondidas lá no pavilhão; só então podíamos conversar sobre alguma coisa que estivesse nos preocupando, assim como também podíamos acabar às gargalhadas ou num arranca-rabo danado. Na maior parte das vezes, era uma forma de descontrair um pouco, ao lado das amigas do peito.
Nessa determinada tarde à qual me refiro agora, estávamos em pé sobre banquinhos e bancos, amontoadas em volta das janelas altíssimas. Isso nos dava uma visão muito boa do Campo de Esportes Norte, onde cerca de doze meninos, do nosso ano e do Sênior 3, se preparavam para jogar futebol. O tempo estava claro, mas devia ter chovido pouco antes, porque me lembro da luz do sol cintilando na superfície da relva enlameada.
Alguém comentou que não devíamos espiar daquela maneira assim tão óbvia, mas nós mal recuamos da janela. E então Ruth falou: 'Ele não desconfia de nada. Olha só para ele. Ele de fato não desconfia de nada'.



Kazuo Ishiguro

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