Antes de começar meu relato, eu gostaria de deixar bem claro o
objetivo dele. Apenas gostaria de passar as impressões e opiniões de
alguém que esteve lá e apurou muito antes de falar algo, criar boatos ou opinar. São apenas descrições dos fatos, do olhar de alguém que esteve lá.
Nessa
história ninguém é dono da verdade e dificilmente saberemos o que
realmente aconteceu enquanto satisfações se confundirem com textos que
troquem farpas e aliviem irresponsabilidades.
Portanto, meu
intuito não é encontrar culpados (chega de chover no molhado, né?), nem
jogar palavras ao vento sobre toda a desgraça que já aconteceu. Acho
importante que quando se leia algo, o leitor se identifique com aquilo
que está à frente de seus olhos de alguma maneira. Então gostaria de
relatar todas as impressões de dentro do festival para que quem esteve
lá possa compactuar das opiniões e quem não esteve, para tentar entender
o que estava acontecendo ali. Meu objetivo é que debatamos sobre as
falhas pensando em como elas devem ser sanadas em um evento no futuro,
tirar a culpa de quem não tem nada a ver com o ocorrido (ou seja, tentar
fazer os bairristas enxergarem que o Nordeste não tem culpa alguma da
falência do evento) e enxergarmos o quanto a cena não pode parar nem se
deixar abalar por conta desse grave deslize. Afinal, como outros ótimos
textos aqui no Whiplash vêm ressaltando, somos todos GUERREIROS!
Bom,
assim como grande parte dos headbangers e de pessoas que integram a
cena de alguma maneira, a mim, muito preocupava a grandiosidade do
evento pelo que nos era passado em releases e a cada notícia envolvendo o
M.O.A., desde seu anúncio oficial, em meados de novembro do ano
passado. Para eventos que ocorrem todos os anos e já possuem certa
tradição, um período de menos de meio ano para realizar todas as
adequações necessárias para a realização de um festival de médio/grande
porte, já me parece curto. Agora, imaginem para uma mega produção que
teria sua primeira edição realizada? Esse tempo se torna sufocante, eu
penso. Tenho humildade em assumir que não tenho o menor knowhow técnico
para sair julgando, mas só de pensar em 47 contratos com bandas a serem
acertados, já me dava um certo ar de insegurança. Porém, confiando na
credibilidade da produtora Negri Concerts que foi a que mais trouxe
shows de metal par ao país no ano passado e na liquidez positiva da
Lamparina para investimentos, acabei ficando mais tranquila, com um
otimismo acomodado, que se manteve até dias antes da minha partida de
São Paulo para São Luís. Foi aí que o frio na barriga aumentou e foi se
concretizando, aos poucos, a sucessão de infortúnios acerca do M.O.A.
No
dia da partida, obtive informações por estar muito próxima a colegas de
bandas nacionais, de que muitos dos grupos sequer tinham suas passagens
de ida para o festival, apenas vindo a confirmar o que Aquiles Priester
tinha divulgado na mídia. Junto a isso, recebi uma ligação de uma
colega que estava por lá desde quarta feira, e na quinta (dia de minha
partida), estava sem ter para onde ir pois a área de camping, que
deveria ter sido aberta ao público neste dia em determinado horário,
estava fechada. Pior: ninguém da produção por perto, UM segurança na
porta sem saber de nada. Mais tarde, ela me informou que conseguira
entrar e que o que mais a espantou era o fato de a área do palco ainda
estar sendo capinada e os p.a's de som ainda estarem no chão.
Convenhamos,
nem o maior dos otimistas ficaria despreocupado com tais informações.
Alguém me explique como coisas básicas e fundamentais como passagens de
bandas e equipamento de som ainda estavam incertos um dia antes do
festival? Não tive como não pensar na pior das alternativas. Mas,
novamente, o otimismo acomodado falou mais alto e deixei os maus
pensamentos de lado, acreditando em contratempos normais e numa
explicação ótima para isso - que tardou a vir!
No avião, o
otimismo aumentou um pouco: embarquei com vários outros headbangers que
também tiveram a sorte de vir no mesmo avião das bandas Exodus,
Anvil, Exciter, Orphaned Land e Legion of the Damned, Clima bacana! Pra
mim, aquilo era a confirmação de que tudo rolaria tranquilamente,
afinal, bom sinal que as bandas estão ao menos indo pra lá, ao contrário
de algumas bandas nacionais. Sinal de que o problema poderia estar
sendo resolvido enquanto eu estava longe da internet e de contatos com
os amigos. ERRADO, óbvio.
Isso tudo só me leva a concluir algo óbvio: o que começa errado, termina errado.
Em
minha opinião, o que rolou foi que a produção acabou levando esse mesmo
otimismo acomodado (acomodado por não levar em consideração os FATOS,
mas sim as ambições e o desejo de fazer rolar, somente), a sério demais,
a ponto de dar um passo maior que a perna. O que sem dúvida seria o
mais correto, era começar com um cast mais modesto, apenas um dia de
shows: assim, teriam mais tempo para se preocupar com todo o resto, que
vai desde assuntos extra contratuais com as bandas a imprevistos.
Que
fossem cinco bandas internacionais e cinco nacionais, ou dois dias com
esses mesmo número de bandas cada. Teriam tido tempo, foco e dinheiro
para cumprir com exigências de backline e cachê, passagens de TODAS as
bandas, e para prevenir toda a estrutura do local contra vistorias da
vigilância sanitária e segurança pública. Concordam que é meio óbvio? O
público de metal é sedento por novidades e empreendimentos que deem
certo e engrandeçam a cena. Ninguém iria deixar de ir ao show pelo cast
ser menor. Continuaria sendo um dos maiores festivais a serem realizados
no país, pois sem dúvidas os mesmos fãs que estariam ali pelo Anthrax,
por exemplo, prestigiariam sem dúvida um show do Korzus ou Stress,
principalmente quando se trata de uma região do país onde há uma
escassez de shows maior que em outras regiões. Para eles,
principalmente, o festival não se tratava apenas de uma atração de
entretenimento, mas um motivo de orgulho.
Eu acho louvável a
atitude de ter culhões para assumir um compromisso de tal magnitude e
importância que é um festival desse porte. Mas mais louvável ainda é
conseguir fazer isso com os dois pés firmes no chão, e nisso, eles
falharam.
Me expliquem PRA QUÊ prometer rodízio de churrasco com o
Mad Butcher dando show? E lagoa? Quem precisa de uma lagoa quando se
têm bandas ícones tocando no palco? Caixas eletrônicos? Mercado? Tenho
certeza que se não tivessem prometido essas coisas, nenhum headbanger
deixaria de ir e sem dúvida o festival não teria sido um fiasco com tal
dimensão de repercussão. Se nada tivesse sido prometido, a galera
chegaria lá, veria yakissoba a 10 reais e pratão de churrasco com arroz,
feijão e macarrão por esse mesmo preço e ia achar ótimo. Afinal, quem
vai a shows aqui em São Paulo, por exemplo, está acostumado a ver batata
chips de 70 gramas sendo vendida a 7 reais. Festival não precisa ter
requinte. Já fui ao Wacken na Alemanha e ele próprio não possui um
rodízio de nada lá! São barracas vendendo hamburgueres, sanduíches tipo
churrasco grego, macarrão e cerveja. SÓ! Quem quiser requinte que saia
do pequeníssimo condado de Wacken e demore horas pra viajar até a cidade
de Hamburgo pra gastar uma grana absurda num prato de comida. E nunca
vi ninguém reclamar disso por lá. Ok, o Rock in Rio por aqui teve até
estande do Spoleto? Sim, mas é um festival que já tem várias edições e
se tornou uma verdadeira marca com mega investidores milionários por
trás com o passar dos anos. Pode ser que o M.O.A. conseguisse isso no
futuro, mas não em sua primeira edição, concordam?
Sem contar algo
que foi pregado e não cumprido que me chateou MUITO. A igualdade entre
bandas nacionais e gringas me deixou muito feliz e me fez dar muitos
créditos à Lamparina no começo de tudo. Senti que seriam respeitadas
como deveriam. Mas, logo de cara, começaram a limar os logos de bandas
nacionais, como se fossem menos importantes. Elas NÃO SÃO menos
importantes. Aliás, se não fossem elas, o segundo dia de festival nem
teria acontecido, e não teríamos tido o melhor e mais emocionante show
do fest, o do Korzus. O Korzus merecia ter seu logo limado como se não
tivesse uma longa carreira de lutas? Para mim, passou a ficar claro que
desde o começo, a preocupação era: "vamos focar nas gringas. SE DER, a
gente começa a pensar nas nacionais". E não deu! Afinal, muitas nem
viajaram por não terem passagem e cachê então, nem entremos no mérito,
né? E para mim, o que mais me IRRITA é ler e ver depoimentos como "fiz o
que pude", "ocorreram problemas de liquidez", "tivemos dificuldades na
reta final". Bem, pra mim, nem precisa ver logística de palco se não tem
nem banda confirmada, e confirmação ao meu ver, vem com contrato, cachê
e passagens (MÍNIMO, convenhamos!). Não faz sentido também para vocês?
Se as bandas que representam metade do cast do festival não têm
passagem, isso pra mim não configura um problema de "reta final", mas
sim de "reta inicial"!!!
Enfim, exponho tudo isso apenas para
exemplificar o que quero dizer com esse lance de prometer muito. Se não
tivessem prometido tanta coisa, o efeito não teria sido negativo. Esses
dias, me falaram que PALAVRA é algo essencial para a cena rolar. Então
eu concluo que muitos bangers ficaram chateados (para não dizer putos),
com essa quebra na palavra. Eles confiaram em algo e se sentiram como
bobos quando não receberam aquilo que fez seus olhos brilharem ao
comprar os ingressos e na hora de parcelar em vinte vezes suas
passagens. Então, para um próximo festival, vamos torcer para que fiquem
naquele termo do "menos é mais". Se for prometido algo básico e for
oferecido algo melhor, já se começa com o pé direito. Não trato aqui de
se contentar com pouco, mas se contentar com a realidade. Sonhar é uma
delícia, mas não quando se mexe no bolso de 10 mil headbangers. Um passo
de cada vez é a minha dica.
Enfim, voltando à descrição do fest… Enquanto estávamos pela cidade durante toda a quinta feita, MUITOS, eu ressalto, MUITOS boatos
começaram a rolar, de todas as espécies, fontes e gravidades. Aliás,
foi neste dia que conheci a fundo o verdadeiro significado da palavra
boato. Muita gente que gosta de falar bastante na internet para se
aparecer, para parecer que é sempre o primeiro a saber de tudo e que
gosta de gerar polêmica, acabou soltando coisa que começou a desesperar
muita gente, e, que na verdade, não passavam de pura balela sem
apuração. O resultado foi um pânico parcial, pois muita gente se São
Paulo começou a ligar desesperada e preocupada com o que lia na
internet, enquanto eu mesma, que estava ali, muito bem acompanhada de
gente bem informada, não estava sabendo. Então, outra dica: confiemos em
gente com credibilidade numa próxima. Boato é coisa grave. Mas,
novamente, boa parte dos boatos
só se fortaleceu por conta de outra falha na produção, que eu
compreendo que para eles, que estavam resolvendo altos pepinos, seria a
última coisa com o que se preocupariam, mas, para nós, da imprensa ou
fãs, seria importantíssimo.
Nenhum tipo de equipe de assessoria de
imprensa, de ambas as partes envolvidas no evento, se prontificou a
lançar notas OFICIAIS quanto ao que estava acontecendo. Ficávamos numa
verdadeira sinuca de bico de dúvidas. Boatos
estavam sendo alimentados, mas não havia NENHUM pronunciamento oficial
para acalmar os ânimos. Isso não se faz! Mesmo que a notícia a se dar
seja pavorosa, ela TEM que ser dada. Melhor que se instaurar um pânico e
bochichos piores que a realidade. Não via a hora de ouvir algo oficial,
para o próprio bem do evento, pelo qual torci até o último fôlego.
Para
somar a isso, eu, e algumas outras pessoas de São Paulo, tivemos sérios
problemas com rede de celular. Não sei o que diabos aconteceu, mas
estava muito difícil rolar uma comunicação decente via celular. Talvez
isso seja um caso isolado porque meu celular é um terror, mas, por
outras vezes, do nada, em meio a alguma ligação, aparecia um sinal de
"rede ocupada" em todos os celulares ao mesmo tempo. Esse, eu diria,
seria um dos únicos problemas estruturais mais graves da cidade de São
Luís. A cidade tem sim seus altos e baixos e bastante falhas, mas não
cabem ao mérito quando quanto ao festival. Afinal, não existe no Brasil
uma cidade perfeita, sempre haverão problemas de âmbito governamental e
social, infelizmente. Mas, no que diz respeito à realização do festival,
desde o momento em que cheguei na cidade, só passei a confirmar mais
ainda que nada do que muitos bairristas falaram no começo sobre "a
cidade não ter porte para realizar o evento", cairiam por água abaixo.
Havia hotéis para quem procurou com antecedência, lugares para comer,
visitar, bom trânsito, táxis, policiamento na medida do possível, etc. A
maior prova de que isso é verdade e que essa coisa de Nordeste não ter
porte pra shows gigantes, são os grandes festivais que já acontecem a um
bom tempo como o Abril Pro Rock e o Palco do Rock. Isso sem contar algo
importante: no primeiro táxi que peguei por lá, vim conversando com o
motorista que disse que sabia que o festival ia acontecer tranquilo,
porque outros shows bem grandes, como aqueles de forró e outros estilos
que ENCHEM ESTÁDIOS, acontecem com grande freqûencia por lá e não dão
errado. Faz sentido, de certa forma. Então, só me leva a crer que se
houve alguma falha, com certeza não foi da cidade. E senti isso no
depoimento de cada nordestino para mim lá no camping do M.O.A. Muitos
estavam preocupados sobre o que esses que sempre falaram que não
rolariam no nordeste iriam falar agora, e, pela Tv Maloik, peguei
depoimentos de pessoas que enfatizaram bastante isso, dizendo que o
Nordeste podia ter muitos problemas, mas que aquela bagunça toda
envolvia muita gente de outros lugares e não tinha nada a ver com a
região! E sobre isso não há dúvida mesmo: a galera ali é sedenta por
shows de qualidade e a cena ali é fortíssima e muito unida. Então por
favor, parem com tantos comentários preconceituosos pela internet, isso é
desanimador e só demonstra ignorância de gente que não faz idéia do que
a cena no nordeste é. Eles têm muitos problemas por lá sim, que
PRECISAM ser sanados a tempo de coisas de âmbito maior, como a Copa do
Mundo e as Olimpíadas, por exemplo. mas, para que ocorra um festival, as
coisas parecem estar dentro dos parâmetros sim.
Primeiro dia de
festival já começa com muita incerteza. Eu e a equipe do Whiplash
preparadas para ir a campo, mas não tínhamos nem certeza se o festival
iria acontecer. Isso porque boatos,
juntamente a relatos de amigos nos campings, alimentavam notícias como a
presença de vigilância sanitária e bombeiros no local querendo vetar a
realização do evento (por problemas básicos, fortemente relacionados ao
camping, como falta de postos de alimentação, quedas de luz, condições
precárias de higiene e segurança, etc).
Sem dúvidas, nos primeiros
momentos, o que mais estava causando problemas era o camping. Muita
coisa que estava sendo apontada como errada e que poderiaa chegar a
levar ao cancelamento do evento, vinha de lá.
Daí, óbvio a
indignação. Seja lá quem foi o responsável por esse quesito (chega de
apontar que foi esse ou aquele), porque não pensou nesses problemas
estruturais antes? Não havia uma equipe que pudesse agir para resolver
com antecedência tudo que pudesse causar problemas em relação àquilo?
Então,
no ápice do pensamento, eis que me deparo com uma amiga me mostrando um
trecho supostamente escrito pelo Júnior, da Lamparina, no dia 06 de
março no grupo do M.O.A. no Facebook, dizendo o seguinte:
"Acho
que não devia, mas vou ser sincero com relação a política de camping! Na
boa, estamos pagando tanta coisa...Aí uma meia dúzia de pessoas
reclamam que não podem entrar com seu leite ninho, nescau e biscoito
piraquê, tenha santa paciência, banger toma cerveja e come churrasco, eu
pelo menos, estou sedento para rasgar uma picanha na churrascaria mad
butcher!!!!!"
Bem, depois dessa, não tenho nem o que comentar.
Desejaria que isso fosse um mero boato. Mas, lembram-se do que eu disse
sobre sonhar sem o pé no chão? Poisé, se preocupar com picanha enquanto
pode sofrer uma intimação da vigilância sanitária, não é lá muito sábio.
Se tudo no camping tivesse rolado tranquilamente, eu até acharia
engraçada essa afirmação, mas dadas as condições, fica difícil até
pensar que isso é sério, não? E a Lamparina não deve levar toda a culpa,
todos os envolvidos que concordaram e aceitaram essa condição de deixar
fatos fundamentais por último, devem ser creditadas também.
Enfim…
Antes de chegar na parte boa (SIM, houve uma parte MUITO boa!), a outra
má notícia que pegou a todos de surpresa. A banda Anthrax, para espanto de todos, acabou cancelando repentinamente sua apresentação, mesmo já estando na cidade, pronta para o show.
A partir daí, começaram a rolar os MALDITOS boatos novamente, de que o Anthrax,
e váááárias outras bandas teriam cancelado suas apresentações por conta
de cachê, segundo o que estava rolando na internet. Muita informação
mal apurada, e a gente quase enfartando de pânico lá em São Luís. Daí
entramos em mais um tópico polêmico, e eu vou falar AS MINHAS
impressões, interpretem como quiserem. Aliás, coloco isso à mesa para
debatermos. Não sou dona da verdade, mas conversei com bastante, MUITA
gente antes de redigir isso aqui para tirar minhas conclusões.
Até onde eu sei e apurei, o Anthrax
cancelou a apresentação por quebras no contrato em relação a backlines.
Eles haviam pedido alguns equipamentos que não estavam por lá, como por
exemplo, a bateria Tama da qual Charlie é endorsee e, logicamente,
havia exigido e não estava lá. Devemos contestar então a atitude do Anthrax?
Vi muitas coisas por aí que me dividiram a opinião. É claro que seria
ótimo se eles tivessem tocado em respeito a nós, que estávamos lá, e
muitos criticaram essa falta de consideração, ficando frustrados, como
eu. Mas, entendo também o lado da banda. Charlie deveria fazer o quê?
Arriscar seu contrato com a Tama, usando outra marca, sendo que tudo já
estava esclarecido desde que a banda foi fechada no cast (uma vez que o
backline é algo básico que as bandas sempre pedem para poderem realizar
uma boa apresentação de acordo com suas necessidades)? Em minha opinião,
existem exigências e exigências. Aquelas coisas do tipo "vinte opções
diferentes de almoço" ou "100 toalhas brancas por integrante", acho sem
sentido algum, mas quando envolve equipamentos, o lance é outro.
De
qualquer maneira, mais uma lição foi tirada dessa triste situação.
Aqui, estamos infelizmente acostumados, e quem tem banda pode confirmar,
a parte das vezes, na última hora, produtores dizerem que está faltando
algo no backline, e, por entender a situaçao difícil e guerreira desses
realizadores de show e também para não decepcionar o público, os grupos
acabam aceitando. Mas, com os gringos, aprendemos que nem sempre será
assim. Talvez esse fato tenha vindo para abrirmos os olhos e tentarmos
melhorar essas falhas. A cena só terá a ganhar com mais shows de
qualidade.
Enfim, finalmente nos deslocando ao local do evento,
quando chegamos por lá, tive a primeira e mais grata surpresa de todas. O
festival estava ali, rolando, e o que me deixou mais feliz, LOTADO de
gente e com uma puta estrutura de palco, som e iluminação. Aquela vibe
de festival estava perfeita até então, fiquei com o coração cheio de
esperança. Através das fotos, vocês devem ter percebido do que estou
falando, certo? Se os detalhes que citei ali em cima sobre infra
estrutura tivessem sido sanados, eu diria que seria uma área digna de um
festival legal e de grande porte. Área bem ampla, com muito espaço para
camping (POR QUÊ tinham que fazer num estábulo, sendo que ia dar margem
pra críticas? Tinha tudo para dar certo!), dois palcos enormes,
iluminação classe A, enfim… Na vdd, maior do que aquela alegria que me
bateu aquela hora, é a tristeza agoniada agora que tenho que se tudo
tivesse sido feito com mais esmero, tinha TUDO, mas TUDO para dar certo,
funcionar, e fazer história no país.
E falo isso tão com a boca
cheia que, apesar do atraso até o início da primeira banda, tudo acabou
rolando quase que perfeitamente e de acordo com o cronograma.
Para quem gosta do estilo, Almah e Shaman
fizeram bons shows. Quanto aos das bandas internacionais, ocorreram sem
maiores problemas e atenderam às expectativas dos headbangers.
O
Exciter teve alguns problemas no som, mas rolou tranquilamente. O
Orphaned Land, apesar de não me agradar nem um pouco e para falar a
verdade, até me irritar com sua sonoridade por alguns momentos, fizeram
um bom show. Se sentiram visivelmente bem recebidos e pareciam muito
excitados em tocar aqui pela primeira vez. O público retribuiu com
muitos aplausos e cabeças bangueando. O Anvil, ícone do Heavy Metal
mundial, também se apresentou bem, porém sofrendo com consecutivas
falhas nos microfone do vocalista e guitarrista Lips. O Destruction
também só veio a confirmar que NUNCA decepciona ao vivo. Desfilou
clássicos do início ao fim em o show mais energético até então. Até
então, eu disse! Pois logo na sequência, entrariam os americanos do Exodus,
dando uma lição de como se faz um show de thrash metal da maneira mais
agressiva e de tirar o fôlego. Até mesmo o vocalista Rob Dukes fazia
questão de frisar isso, quando disse: "Vocês querem uma música lenta
para poderem descansar? Me desculpa, mas não temos músicas lentas!"!
EXCELENTE apresentação, com direito a prêmio Fernanda Lira de melhor
show da noite, tendo como concorrente à altura somente o Destruction.
Na sequência, veio o morno show do Megadeth.
Talvez tenhamos criado tanta expectativa e medo de ele não tocar no
festival por alguma frescurite, que na hora em que terminaram o show, a
maioria esperava muito mais. Set curto, poucos clássicos (conseguem
acreditar que não tocaram Sweating Bullets?), pausas contínuas e
frequentes de Mustaine para reclamar nos bastidores sobre alguns
problemas, e visíveis complicações vindas da mesa de som: microfonia,
volume oscilante e falhas mais estranhas, como por exemplo, naquela
pausa no meio da Holy wars, onde entra um quase dedilhado com a guitarra
limpa, O SOM NÃO APARECEU.
Mas, enfim, eu estava feliz demais. O
saldo havia sido extremamente positivo. Uma coisa que me demonstrou
muita consideração com o público e pelo menos uma sombra de organização,
foi a agilidade na troca de palcos. Tenho certeza de que assim que um
show temrinava em um palco, o outro já havia sido montado para a próxima
banda, que não tardava mais que 10 minutos para entrar. A não ser antes
do show do Symphony X,
se não me engano, que houve uma pausa de 40 minutos, mas programados,
provavelmente para dar uma pausa para os bangers poderem ir ao banheiro
ou comer (essa pausa já havia sido avisada, pelo menos para quem era da
imprensa).
Tenho certeza que se houvesse alguém que não soubesse o
que tinha se passado no camping nem dos problemas nos bastidores e
visse o show, não teria do que reclamar.
O clima parecia ser de
felicidade, eu pelo menos voltei para o hotel com a alma lavada. Mas
sentia-se um certo clima de tensão no ar. Será que os problemas de
camping já haviam sido resolvidos ou pelo menos haveria segurança para
quem ficasse lá até que as falhas fossem consertadas?
Será que mais bandas vão cancelar?
Mas, eu, pelo menos, fui dormir otimista novamente!
Acordei
tarde no dia seguinte, engolindo a comida rapidamente e botando a roupa
de qualquer jeito, achando que já estava atrasada para o festival.
Quando ligo a TV, reportagem ao vivo de um canal maranhense no local.
Todo meu otimismo foi ladeira abaixo. Tudo estava pior do que no dia
anterior. Tudo o que tinha me dado um sorriso de orelha a orelha na
noite anterior, havia desmoronado, e o festival já tinha sido notícia no
Jornal da Globo, Jornal Nacional, e já era capa dos principais jornais
de São Luís.
Além do cancelamento do Rock and Roll All Stars, uma
série de outros fatores havia vindo à tona. Novamente, o camping era o
problema e, por algum motivo ainda desconhecido, um dos palcos havia
sido parcialmente desmontado. Passamos o dia inteiro precisando de
informações sobre o início dos shows e também da confirmação ou não dos boatos
que estavam rolando. Felizmente, empresários da Lamparina deram as
caras, e falaram com o público, num ato que achei muito digno. Porém só
avisaram que ocorreriam atrasos, deixando muitas dúvidas nas cabeças dos
bangers. Tanto que, fiquei sabendo de DEZENAS de pessoas que cancelaram
sua vinda ao festival exatamente por não saberem se ele rolaria ou não.
Isso é grave, deveria ter havido, novamente, algum pronunciamento
oficial.
Nossa equipe se deslocou até o hotel onde algumas bandas
estavam hospedadas e começamos a sondar respostas. Mas, o clima era de
suspense, ninguém sabia qual banda começaria, qual banda cancelaria, e o
pior, se o festival iria rolar. Essa dúvida permaneceu até quase sete
da noite, quando a banda Ácido subiu ao palco.
Boatos sobre o cancelamento do Blind Guardian e Grave Digger eram fortíssimos, mas ainda sem nada concreto para acalmar, ou revoltar o público.
Mas,
seguimos para o festival e o clima por lá foi negativamente
surpreendente, INFELIZMENTE. Digo infelizmente porque eu, assim como
vários outros headbangers, torcemos, acreditamos e queríamos mais que
TUDO que esse festival rolasse. Eu acreditei e apoiei até o último
momento. E fiquei muito triste quando cheguei por lá.
Logo após
ingressarmos, infelizmente constatamos que muitas pessoas estavam
entrando sem ingresso, credencial ou qualquer outro tipo de passe.
Triste para os bangers que pagaram, mas o meu medo era maior quanto à
segurança. Bandido é esperto. Numa dessas, pra entrarem de graça por lá e
tocarem o terror, é um passo.
Como estava também com uma câmera
de vídeo para gravar algumas imagens para o programa de TV do qual sou
repórter, o Maloik, muita gente vinha me pedir por informações e ajuda, e
eu sinceramente não sabia o que responder. muitos deles, inclusive,
vinham PEDINDO para dar entrevista, como fosse sua última maneira de
desabafar. Muitos me falaram sobre segurança, e, em determinado ponto da
noite, enquanto a banda Dark Avenger tocava, eu fui averiguar e
realmente havia pouquíssima segurança. Pasmem colegas de imprensa, entre
a grade de público e o palco, não havia alguma pessoa da equipe lá em
dado momento. E, o mais lindo de tudo, foi ver que os bangers, educados e
politizados que somos apesar de toda a bagunça que a mídia fala sobre
nós, nem sequer invadiram a área. Somente fotógrafos estavam lá. A área
de camarote, sim, havia sido tomada por varias pessoas do público. pois
não havia segurança. Depois de algum tempo, a segurança se normalizou
novamente, fazendo presença por vários pontos do festival. Mas até isso
aocntecer, pude sentir um clima de medo e insegurança.
Mas o pior
dos climas que eu senti, estava por vir. Alguns fãs tinham me relatado
sobre uma certa sensação de abandono, que se sentiam abandonados, à
mercê de qualquer coisa que a produção decidisse e sem poder para fazer
nada. Quando ingressei no camarim, isso se confirmou. Ele, que estava
hiper movimentado e equipado no dia anteiror, havia sido quase
totalmente retirado, sobrando apenas geladeiras e um camarim em pé.
Quase ninguém da produção rondava, as pessoas andavam de um lado por
outro sedentas por informação… Foi realmente muito triste. Conversei com
uma pessoa muito importante lá no camarim que me explicou muitas coisas
sobre o que estava acontecendo, coisas estas que já foram esclarecidas
nas notas que ambas as produtoras divulgaram nos últimos dias. O palco, o
camarim, aquela hora sem seguranças, tudo ocorreu por falta de
pagamento, o que é MUITO triste. Tudo isso deveria ter sido acertado
antecipadamente, não é mesmo? E isso me entristeceu, porque, pensem
comigo, se tudo isso tivesse sido pensado e fechado previamente, o
festival continuaria rolando tão lindamente quanto aconteceu na sexta
feira. Isso me cortou o coração.
E e pergunto mais ainda: se os
pagamentos de algumas coisas não haviam sido efetuados, se as bandas
nacionais quase todas foram deixadas em segundo plano, se as condic'ões
do camping não foram analisadas, o que rolou em todos esses meses que
antecederam o festival?
Acho que essa pergunta expressa grande
parcela da indignação de todos os metalheads que estavam por lá e
sofreram as consequência dessa possível falta de panejamento e visão.
A
partir dessas constatações, pude entender perfeitamente o por quê das
banda sque tocariam naquela noite terem cancelado, Não foi cachê, não
foi backline, mas sim o acúmulo de todas essas condições. Em minha
opinião, elas estão na razão delas.
Com tudo isso, eu cheguei à
conclusão bem particular (esse foi o MEU sentimento) que, com tudo isso
que me foi esclarecido, seria muito difícil o festival 'sobreviver' até o
dia seguinte. Para isso aocntecer, teriam que tirar dinheiro de algum
lugar, derrubar liminares de órgãos como a vigilância sanitária que
ovamente passaria pelo camping, e tudo o mais. Tenho certeza de que eles
da produção lutaram até o último minuto para fazer o festival acontecer
até seu fim, mas eram muitas coisas que precisariam ser resolvidas num
pouquíssimo intervalo de tempo, já que não foram solucionadas com meses
de antecedência.
Isso me causou muita tristeza, porque logo na
sequência fui ver o MARAVILHOSO e EMOCIONANTE show do Korzus, com um nó
do tamanho do planeta na garganta.
Tristeza porque todos ali
estavam de coração aberto para curtir metal, para demonstrar sua paixão
pela música e o quanto ela representa para cada um deles, afinal, quem
vive, sabe que metal está longe de ser um estilo de música, mas, sim, um
estilo de vida! Tristeza de ver que mesmo sabendo que aquele poderia
ser o último show do festival, eles estavam ali, curtindo cada segundo
como se nada tivesse acontecido, prontos para gritar e apoiar quem
pisasse ali no palco. Tristeza de ver que o sonho de 10 mil pessoas que
mal pudiam ver a hora de conferir um festival à altura de sua devoção
para o metal, ir por água abaixo.
Muitos choravam, ouvi até gente
querendo fazer uma vaquinha coletiva para conseguir dinheiro para pagar o
que faltava, e muitos abraçavam os colegas do lado, dizendo que pelo
menos a união de quem estava no camping fez valer à pena.
O show
do Korzus veio para que todos se sentissem representados. No palco, o
Pompeu disse palavras que todos ali gostariam de falar. Confirmou que
somos todos guerreiros, que nem mesmo um desastre como aquele nos faria
desistir do metal, porque nós, da cena nacional, somos fortes e
apaixonados demais para deixar que isso aocntecesse.
Impossível
segurar as lágrimas durante o hino nacional cantado em côro, por pessoas
que, com aqule gesto, queriam mostrar que acreditam, apesar de tudo, no
metal no Brasil, e isso é lindo e muito verdadeiro.
Após o show do Korzus, uns ainda alimentavam a esperança de que mais bandas tocassem, mesmo com o palco já sendo desmontado.
Devido
a compromissos em São Paulo com a minha banda, tive de retornar, mas
com aquela preocupação com todos os amigos e irmãos do metal que ficaram
ali com suas passagens marcadas para domingo ou segunda, com suas
barracas à mercê de todo perigo no camping e tudo o mais. Chegando em
casa, vi que o que eu previa, havia acontecido: o festival não
sobrevivera.
Para falar a verdade nem estou ligando muito para o
que a bosta da mídia não especializada está pensando de nós depois
disso, afinal, eles nUNCA se interessam em compartilhar nada das
milhares de coisas boas que acontecem todo dia em cada canto do país
relacionado ao metal, mas quando alguma desgraça acontece, são os
primeiros a nos denegrir, afinal, para eles, metal é e sempre será
bagunça, não é?
Mas ligo muito para o que a cena perdeu com a
queda de um fest dessas proporções, ainda não acredito que o sonho de
termos o maior festival do país para nossa alegria (sem piadas, por
favor) se esvaiu tão rapidamente, por problemas, digamos eminentes.
Enfim,
em minha opinião, ficar culpando este ou aquele, ou tentar achar quem é
mais culpado que quem, é chover no molhado e não vai levar a lugar
nenhum. Devemos ler os relatos, analisar as notas oficiais e tirar
nossas próprias conclusões. Quanto aos produtores, tenho plena certeza
de que sabem de todos os problemas que ocorreram e que deverão arcar com
as consequências, ninguém tentou dar golpe, e muito menos vão fugir de
suas repsonsabilidades legais quanto ao ocorrido.
Resta aos headbangers que se sentiram lesados, seguirem os procedimentos corretos para que reinvidiquem seus direitos.
E
espero que com o meu texto, possamos refletir sobre tudo o que houve e
torçamos para que os problemas apontados sejam sanados e prevenidos em
uma próxima vez. E essa próxima vez, VAI acontecer. Afinal, headbanger é
headbanger! E é claro, o rock não pode parar!
Por Fernanda Lira
quarta-feira, 25 de abril de 2012
sábado, 7 de abril de 2012
Não me abandone jamais ...
Me chamo Kathy H. Tenho trinta e um anos e sou cuidadora há
mais de onze. Tempo demais, eu sei, mas eles querem que eu fique mais oito
meses, até o fim do ano. O que dará quase exatos doze anos de serviço. Sei que
o fato de ser cuidadora há tanto tempo não significa necessariamente que meu
trabalho seja considerado fantástico. Houve alguns ótimos cuidadores que
receberam ordem de parar depois de dois ou três anos apenas. E eu conheço pelo
menos um que ficou os catorze anos completos, apesar de ter sido um desperdício
total de espaço. Portanto, minha intenção aqui não é me vangloriar. Mas não
resta a menor dúvida de que eles estão satisfeitos comigo e de modo geral não
tenho do que me queixar. Meus doadores sempre foram muito melhores do que eu
esperava. Todos se recuperaram com uma rapidez impressionante e quase nenhum
chegou a ser classificado como 'agitado', nem mesmo antes da quarta doação.
Muito bem, talvez eu esteja me vangloriando um pouco agora, admito. É que
significa um bocado para mim poder dar conta direito do trabalho, sobretudo
essa parte dos doadores continuarem 'calmos'. Desenvolvi uma espécie de
instinto em relação a eles. Sei quando devo permanecer por perto oferecendo
consolo e quando é melhor deixá-los em paz; quando escutar o que têm para falar
e quando tão-somente encolher ombros e dizer-lhes que não se entreguem ao
desânimo.
De todo modo, não estou reivindicando nada de muito
grandioso para mim. Conheço cuidadores que trabalham tão bem quanto eu e que
não recebem nem a metade dos créditos. Se você for um deles, entendo o motivo
de possíveis ressentimentos — em relação a meu conjugado, meu carro e, acima de
tudo, ao fato de eu mesma escolher os que vão ficar sob meus cuidados. Sem
falar que sou de Hailsham — o que por si só muitas vezes é suficiente para
deixar as pessoas de mau humor. Elas dizem, a Kathy H.? Ela escolhe o pessoal a
dedo, e sempre da turma dela: gente de Hailsham ou de algum outro
estabelecimento igualmente privilegiado. Não é à toa que ela tem uma ficha
excelente. Nem sei quantas vezes já escutei isso, e posso imaginar que você
ouviu muitas mais, de modo que talvez haja um fundo de verdade aí. Mas não fui
a primeira a poder escolher, e duvido que seja a última. De qualquer forma, já
fiz minha parte, cuidando de doadores trazidos de tudo quanto foi lugar. Até eu
terminar meu serviço, não se esqueça, terei completado doze anos, e só nos
últimos seis é que eles me deixaram escolher.
E por que não me deixariam? Cuidadores não são máquinas. Nós
tentamos fazer o melhor possível para cada um dos doadores, mas no fim o
serviço é exaustivo. Paciência e energia têm limite, e isso vale para todo
mundo. De modo que quando surge a oportunidade de escolher, claro que você vai
optar por pessoas semelhantes a você. Isso é natural. Eu não teria tido a menor
condição de continuar fazendo o que faço durante tanto tempo se porventura
deixasse de nutrir sentimentos pelos meus doadores em cada uma das etapas
percorridas. Além do mais, se eu não tivesse obtido permissão de escolher, não
poderia ter me reaproximado de Ruth e Tommy depois de tantos anos, não é mesmo?
Nos dias que correm, claro, há cada vez menos doadores
conhecidos, o que significa que na prática não tenho escolhido tanto assim. E,
como eu sempre digo, quanto menos ligação existe com o doador, mais difícil
fica fazer o serviço; portanto, mesmo que eu sinta falta de ser cuidadora, acho
correto dar finalmente por encerradas minhas atividades no final do ano.
Ruth, por falar nisso, foi apenas a terceira ou quarta
doadora que pude escolher. Já havia uma cuidadora designada para ela, na época,
e lembro-me que foi preciso uma certa dose de coragem de minha parte. Mas no
fim dei um jeito, e assim que a vi de novo, naquele centro de recuperação de
Dover, nossas diferenças — ainda que não tivessem exatamente sumido do mapa —
não me pareceram nem de longe tão importantes quanto tudo o mais: o fato de
termos crescido juntas em Hailsham, o sabermos e nos lembrarmos de coisas que
ninguém mais sabia ou das quais ninguém mais se lembrava. Foi dessa época em
diante, imagino, que comecei a buscar nos doadores pessoas conhecidas no
passado e, sempre que possível, de Hailsham.
Houve épocas, no decorrer desses anos todos, em que tentei
esquecer Hailsham e me convencer de que não seria bom ficar olhando tanto para
trás. Porém num determinado momento simplesmente parei de resistir. E isso teve
a ver com um doador em particular, de quem tomei conta certa feita, no meu
terceiro ano como cuidadora; com a reação dele quando comentei que era de
Hailsham. Ele tinha acabado de sair da terceira doação, que não dera muito
certo, e já devia saber que não iria se safar. Embora mal conseguisse respirar,
me olhou e disse: 'Hailsham. Aposto como era um lugar lindo'. Na manhã
seguinte, batendo um papinho na tentativa de distraí-lo daquilo tudo, perguntei
de onde ele era; o doador mencionou algum lugar em Dorset e sua expressão, por
baixo da pele manchada, passou a um tipo bem diferente de esgar. Foi então que
caí em mim e percebi a vontade imensa que ele tinha de não se lembrar de nada.
Tudo o que ele queria era que eu falasse de Hailsham.
Portanto, durante os cinco ou seis dias que se seguiram,
contei-lhe tudo o que ele quis saber, enquanto, do leito, ele me ouvia
fascinado, com um leve sorriso nos lábios. Falei dos nossos guardiões, das
caixas com as coleções que eram guardadas debaixo da cama, do futebol, das
partidas de rounders, do caminho estreito que contornava todos os cantos e
recantos externos do casarão, do lago com os marrecos, da comida, da vista que
tínhamos das janelas da Sala de Arte pela manhã, com os campos cobertos de
bruma. Às vezes ele me fazia repetir vezes sem conta a mesma coisa; algo que eu
mencionara no dia anterior voltava a ser alvo de perguntas, como se ele nunca
tivesse escutado uma única palavra sobre o assunto. 'Vocês tinham um pavilhão
de esportes?' 'Quem era seu guardião predileto?' De início, pensei que fosse
apenas efeito dos remédios, mas depois me dei conta de que ele estava bem
lúcido. Mais do que ouvir falar de Hailsham, ele queria se lembrar de Hailsham
como se Hailsham tivesse pertencido a sua própria infância. Sabia que estava
perto de concluir, de modo que me fazia descrever as coisas de forma que elas
penetrassem de fato em sua lembrança. A intenção dele, talvez— durante as
noites insones devido aos remédios, à dor e à exaustão —, era tornar
indistintos os contornos que separavam as minhas memórias das suas. Só então
compreendi, compreendi de fato, quanta sorte tivéramos — Tommy, Ruth, eu, na
verdade todos nós.
Ainda hoje, dirigindo pelas estradas do interior, vejo
coisas que me fazem lembrar de Hailsham. Às vezes, passando por um trecho sob
neblina ou descendo a encosta de algum vale, ao divisar parte de um casarão ao
longe, e até mesmo quando vislumbro o desenho formado por um grupo de choupos
plantados no alto de um morro, logo me ocorre pensar: 'Talvez seja ali! Achei o
lugar! Aquilo é Hailsham, só pode ser!'. Depois percebo que é impossível e sigo
adiante, com os pensamentos vagando por outras paragens. Em especial, há os
pavilhões. Vejo-os por todo o interior, sempre erguidos ao lado de um campo de
esportes — pequenas construções pré-fabricadas, pintadas de branco, com uma
fileira de janelas numa altura absurda, bem lá em cima, enfiadas quase debaixo
dos beirais. Acho que eles devem ter construído um monte desses pavilhões nos
anos 50 e 60, época em que muito provavelmente também construíram o nosso. Toda
vez que passo perto de um, olho comprido para ele durante o tempo que for
possível, e qualquer dia ainda vou causar um acidente por causa disso, mas não
consigo evitar. Não faz muito tempo, eu rodava por um trecho deserto de
Worcestershire e vi um, ao lado de um campo de críquete, tão parecido com o
nosso em Hailsham que cheguei até a fazer o retorno e voltar para dar uma
segunda olhada.
Adorávamos nosso pavilhão de esportes, talvez porque nos
trouxesse à mente aquelas deliciosas casinhas que apareciam em tudo quanto era
livro ilustrado, quando éramos crianças. Lembro-me de nós, ainda nos anos
Júnior, implorando aos guardiões para que dessem a aula seguinte lá, e não na
sala habitual. Mais tarde, quando cursávamos o Sênior 2 — quando tínhamos doze
para treze anos —, o pavilhão se tornou nosso esconderijo predileto, nosso e
dos nossos amigos mais íntimos, quando queríamos fugir de tudo e de todos em
Hailsham.
O pavilhão era suficientemente grande para abrigar dois
grupos distintos sem que um incomodasse o outro — no verão, um terceiro grupo
podia ficar na varanda. Mas o ideal é que você e seus amigos ficassem com o
lugar só para si, de modo que era muito freqüente haver discussões e
empurra-empurra. Os guardiões viviam nos dizendo para agirmos com civilidade a
respeito, mas na prática era preciso contar com personalidades fortes no grupo
para ter alguma chance de conseguir exclusividade no pavilhão durante um
recreio ou um período livre. Eu própria não era do tipo franzino, mas desconfio
que foi de fato graças a Ruth que conseguimos nos reunir lá com a freqüência
com que nos reuníamos.
Em geral não fazíamos mais que nos aboletar nas cadeiras e
nos bancos — éramos cinco, seis quando Jenny B. ia junto — e bisbilhotar sobre
a vida alheia. Havia um tipo de papo que só tinha possibilidade de acontecer
quando estávamos escondidas lá no pavilhão; só então podíamos conversar sobre
alguma coisa que estivesse nos preocupando, assim como também podíamos acabar
às gargalhadas ou num arranca-rabo danado. Na maior parte das vezes, era uma
forma de descontrair um pouco, ao lado das amigas do peito.
Nessa determinada tarde à qual me refiro agora, estávamos em
pé sobre banquinhos e bancos, amontoadas em volta das janelas altíssimas. Isso
nos dava uma visão muito boa do Campo de Esportes Norte, onde cerca de doze
meninos, do nosso ano e do Sênior 3, se preparavam para jogar futebol. O tempo
estava claro, mas devia ter chovido pouco antes, porque me lembro da luz do sol
cintilando na superfície da relva enlameada.
Alguém comentou que não devíamos espiar daquela maneira
assim tão óbvia, mas nós mal recuamos da janela. E então Ruth falou: 'Ele não
desconfia de nada. Olha só para ele. Ele de fato não desconfia de nada'.
Kazuo Ishiguro
( ...)
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