sábado, 7 de abril de 2012

Não me abandone jamais ...

Me chamo Kathy H. Tenho trinta e um anos e sou cuidadora há mais de onze. Tempo demais, eu sei, mas eles querem que eu fique mais oito meses, até o fim do ano. O que dará quase exatos doze anos de serviço. Sei que o fato de ser cuidadora há tanto tempo não significa necessariamente que meu trabalho seja considerado fantástico. Houve alguns ótimos cuidadores que receberam ordem de parar depois de dois ou três anos apenas. E eu conheço pelo menos um que ficou os catorze anos completos, apesar de ter sido um desperdício total de espaço. Portanto, minha intenção aqui não é me vangloriar. Mas não resta a menor dúvida de que eles estão satisfeitos comigo e de modo geral não tenho do que me queixar. Meus doadores sempre foram muito melhores do que eu esperava. Todos se recuperaram com uma rapidez impressionante e quase nenhum chegou a ser classificado como 'agitado', nem mesmo antes da quarta doação. Muito bem, talvez eu esteja me vangloriando um pouco agora, admito. É que significa um bocado para mim poder dar conta direito do trabalho, sobretudo essa parte dos doadores continuarem 'calmos'. Desenvolvi uma espécie de instinto em relação a eles. Sei quando devo permanecer por perto oferecendo consolo e quando é melhor deixá-los em paz; quando escutar o que têm para falar e quando tão-somente encolher ombros e dizer-lhes que não se entreguem ao desânimo.
De todo modo, não estou reivindicando nada de muito grandioso para mim. Conheço cuidadores que trabalham tão bem quanto eu e que não recebem nem a metade dos créditos. Se você for um deles, entendo o motivo de possíveis ressentimentos — em relação a meu conjugado, meu carro e, acima de tudo, ao fato de eu mesma escolher os que vão ficar sob meus cuidados. Sem falar que sou de Hailsham — o que por si só muitas vezes é suficiente para deixar as pessoas de mau humor. Elas dizem, a Kathy H.? Ela escolhe o pessoal a dedo, e sempre da turma dela: gente de Hailsham ou de algum outro estabelecimento igualmente privilegiado. Não é à toa que ela tem uma ficha excelente. Nem sei quantas vezes já escutei isso, e posso imaginar que você ouviu muitas mais, de modo que talvez haja um fundo de verdade aí. Mas não fui a primeira a poder escolher, e duvido que seja a última. De qualquer forma, já fiz minha parte, cuidando de doadores trazidos de tudo quanto foi lugar. Até eu terminar meu serviço, não se esqueça, terei completado doze anos, e só nos últimos seis é que eles me deixaram escolher.
E por que não me deixariam? Cuidadores não são máquinas. Nós tentamos fazer o melhor possível para cada um dos doadores, mas no fim o serviço é exaustivo. Paciência e energia têm limite, e isso vale para todo mundo. De modo que quando surge a oportunidade de escolher, claro que você vai optar por pessoas semelhantes a você. Isso é natural. Eu não teria tido a menor condição de continuar fazendo o que faço durante tanto tempo se porventura deixasse de nutrir sentimentos pelos meus doadores em cada uma das etapas percorridas. Além do mais, se eu não tivesse obtido permissão de escolher, não poderia ter me reaproximado de Ruth e Tommy depois de tantos anos, não é mesmo?
Nos dias que correm, claro, há cada vez menos doadores conhecidos, o que significa que na prática não tenho escolhido tanto assim. E, como eu sempre digo, quanto menos ligação existe com o doador, mais difícil fica fazer o serviço; portanto, mesmo que eu sinta falta de ser cuidadora, acho correto dar finalmente por encerradas minhas atividades no final do ano.
Ruth, por falar nisso, foi apenas a terceira ou quarta doadora que pude escolher. Já havia uma cuidadora designada para ela, na época, e lembro-me que foi preciso uma certa dose de coragem de minha parte. Mas no fim dei um jeito, e assim que a vi de novo, naquele centro de recuperação de Dover, nossas diferenças — ainda que não tivessem exatamente sumido do mapa — não me pareceram nem de longe tão importantes quanto tudo o mais: o fato de termos crescido juntas em Hailsham, o sabermos e nos lembrarmos de coisas que ninguém mais sabia ou das quais ninguém mais se lembrava. Foi dessa época em diante, imagino, que comecei a buscar nos doadores pessoas conhecidas no passado e, sempre que possível, de Hailsham.
Houve épocas, no decorrer desses anos todos, em que tentei esquecer Hailsham e me convencer de que não seria bom ficar olhando tanto para trás. Porém num determinado momento simplesmente parei de resistir. E isso teve a ver com um doador em particular, de quem tomei conta certa feita, no meu terceiro ano como cuidadora; com a reação dele quando comentei que era de Hailsham. Ele tinha acabado de sair da terceira doação, que não dera muito certo, e já devia saber que não iria se safar. Embora mal conseguisse respirar, me olhou e disse: 'Hailsham. Aposto como era um lugar lindo'. Na manhã seguinte, batendo um papinho na tentativa de distraí-lo daquilo tudo, perguntei de onde ele era; o doador mencionou algum lugar em Dorset e sua expressão, por baixo da pele manchada, passou a um tipo bem diferente de esgar. Foi então que caí em mim e percebi a vontade imensa que ele tinha de não se lembrar de nada. Tudo o que ele queria era que eu falasse de Hailsham.
Portanto, durante os cinco ou seis dias que se seguiram, contei-lhe tudo o que ele quis saber, enquanto, do leito, ele me ouvia fascinado, com um leve sorriso nos lábios. Falei dos nossos guardiões, das caixas com as coleções que eram guardadas debaixo da cama, do futebol, das partidas de rounders, do caminho estreito que contornava todos os cantos e recantos externos do casarão, do lago com os marrecos, da comida, da vista que tínhamos das janelas da Sala de Arte pela manhã, com os campos cobertos de bruma. Às vezes ele me fazia repetir vezes sem conta a mesma coisa; algo que eu mencionara no dia anterior voltava a ser alvo de perguntas, como se ele nunca tivesse escutado uma única palavra sobre o assunto. 'Vocês tinham um pavilhão de esportes?' 'Quem era seu guardião predileto?' De início, pensei que fosse apenas efeito dos remédios, mas depois me dei conta de que ele estava bem lúcido. Mais do que ouvir falar de Hailsham, ele queria se lembrar de Hailsham como se Hailsham tivesse pertencido a sua própria infância. Sabia que estava perto de concluir, de modo que me fazia descrever as coisas de forma que elas penetrassem de fato em sua lembrança. A intenção dele, talvez— durante as noites insones devido aos remédios, à dor e à exaustão —, era tornar indistintos os contornos que separavam as minhas memórias das suas. Só então compreendi, compreendi de fato, quanta sorte tivéramos — Tommy, Ruth, eu, na verdade todos nós.
Ainda hoje, dirigindo pelas estradas do interior, vejo coisas que me fazem lembrar de Hailsham. Às vezes, passando por um trecho sob neblina ou descendo a encosta de algum vale, ao divisar parte de um casarão ao longe, e até mesmo quando vislumbro o desenho formado por um grupo de choupos plantados no alto de um morro, logo me ocorre pensar: 'Talvez seja ali! Achei o lugar! Aquilo é Hailsham, só pode ser!'. Depois percebo que é impossível e sigo adiante, com os pensamentos vagando por outras paragens. Em especial, há os pavilhões. Vejo-os por todo o interior, sempre erguidos ao lado de um campo de esportes — pequenas construções pré-fabricadas, pintadas de branco, com uma fileira de janelas numa altura absurda, bem lá em cima, enfiadas quase debaixo dos beirais. Acho que eles devem ter construído um monte desses pavilhões nos anos 50 e 60, época em que muito provavelmente também construíram o nosso. Toda vez que passo perto de um, olho comprido para ele durante o tempo que for possível, e qualquer dia ainda vou causar um acidente por causa disso, mas não consigo evitar. Não faz muito tempo, eu rodava por um trecho deserto de Worcestershire e vi um, ao lado de um campo de críquete, tão parecido com o nosso em Hailsham que cheguei até a fazer o retorno e voltar para dar uma segunda olhada.
Adorávamos nosso pavilhão de esportes, talvez porque nos trouxesse à mente aquelas deliciosas casinhas que apareciam em tudo quanto era livro ilustrado, quando éramos crianças. Lembro-me de nós, ainda nos anos Júnior, implorando aos guardiões para que dessem a aula seguinte lá, e não na sala habitual. Mais tarde, quando cursávamos o Sênior 2 — quando tínhamos doze para treze anos —, o pavilhão se tornou nosso esconderijo predileto, nosso e dos nossos amigos mais íntimos, quando queríamos fugir de tudo e de todos em Hailsham.
O pavilhão era suficientemente grande para abrigar dois grupos distintos sem que um incomodasse o outro — no verão, um terceiro grupo podia ficar na varanda. Mas o ideal é que você e seus amigos ficassem com o lugar só para si, de modo que era muito freqüente haver discussões e empurra-empurra. Os guardiões viviam nos dizendo para agirmos com civilidade a respeito, mas na prática era preciso contar com personalidades fortes no grupo para ter alguma chance de conseguir exclusividade no pavilhão durante um recreio ou um período livre. Eu própria não era do tipo franzino, mas desconfio que foi de fato graças a Ruth que conseguimos nos reunir lá com a freqüência com que nos reuníamos.
Em geral não fazíamos mais que nos aboletar nas cadeiras e nos bancos — éramos cinco, seis quando Jenny B. ia junto — e bisbilhotar sobre a vida alheia. Havia um tipo de papo que só tinha possibilidade de acontecer quando estávamos escondidas lá no pavilhão; só então podíamos conversar sobre alguma coisa que estivesse nos preocupando, assim como também podíamos acabar às gargalhadas ou num arranca-rabo danado. Na maior parte das vezes, era uma forma de descontrair um pouco, ao lado das amigas do peito.
Nessa determinada tarde à qual me refiro agora, estávamos em pé sobre banquinhos e bancos, amontoadas em volta das janelas altíssimas. Isso nos dava uma visão muito boa do Campo de Esportes Norte, onde cerca de doze meninos, do nosso ano e do Sênior 3, se preparavam para jogar futebol. O tempo estava claro, mas devia ter chovido pouco antes, porque me lembro da luz do sol cintilando na superfície da relva enlameada.
Alguém comentou que não devíamos espiar daquela maneira assim tão óbvia, mas nós mal recuamos da janela. E então Ruth falou: 'Ele não desconfia de nada. Olha só para ele. Ele de fato não desconfia de nada'.



Kazuo Ishiguro

( ...) 

Nenhum comentário:

Postar um comentário