quinta-feira, 17 de outubro de 2013

O Show da minha vida.

“I can´t fucking hear you”, gritava uma voz pra lá de conhecida em um de seus célebres jargões por trás da cortina preta que havia se fechado no palco. A massa foi ao delírio, evidentemente. “Olé olé olé olé, come on”, prosseguia a voz. Pensei que fosse algo pré-gravado – talvez fosse - mas quando as cortinas se abriram lá estava ele, the “fucking Prince of darkness”, de microfone em punho, escudado por seus comparsas de crime, todos de preto, prontos para nos entregar o show de nossas vidas. Uma avalanche nos empurra para ainda mais perto do palco e, caso restasse alguma dúvida, a ficha teria caído: nós estávamos num show do Black Sabbath! Do Sabbath mesmo, com Tony Iommi, Ozzy Osbourne e Geezer Butler. Juntos e ao vivo pela primeira vez em turnê na América do Sul.

Faltou mencionar a sirene, que soava anunciando “War pigs”. “Generals gathering in their masseeeessss”, puta que pariu, começou! “Just like witches at Black masses” – caralho, primeira palhetada esporrenta do Deus do metal ali na minha frente! E o som estava perfeito, cristalino e alto, muito alto. Era verdade mesmo, eu estava num show do Black Sabbath, minha banda de rock favorita de todos os tempos, amém. E na frente de Tony Iommi, o cara que inventou essa porra, esse tal de Heavy Metal. Tô cansado pra caralho, mal consigo me segurar em pé, mas foda-se, vai ser foda!

Foi, claro. Já dava pra perceber que seria pelo primeiro grande momento da noite, quando um Ozzy Osbourne eufórico não se contém e dá um abraço apertado, quase um mata-leão, em Tony, arrancando do circunspecto mestre dos riffs um sorriso de satisfação. Quase que dava pra ler seus pensamentos: “veja isso, Tony, somos nós aqui, juntos novamente diante de uma multidão, desta vez in the fucking Rio de Janeiro, Wondefull city, full of encantos mil”. “Possacrer, Ozzy, de fuder”. O mesmo se repetiu no outro extremo com Geezer, e depois com um aceno para o baterista, Tommy Clufetos, que substituía Bill Ward. E mandou muito bem, como veremos a seguir ...

Uma coisa que notei logo de cara foi que Ozzy, apesar de manter todos os seus trejeitos amalucados e sua perfomance ensandecida, se comportava de forma um pouco mais contida, como que para ressaltar que ali ele era um membro de uma banda, não estava em carreira solo. Para deixar isso bem claro para todos, trata de sufocar os insistentes gritos ritmados com seu nome entoados pela platéia apontando sempre para a sua esquerda, onde um Tony Iommi contido porém visivelmente satisfeito, até sorridente, em vários momentos, comandava o espetáculo executando com a mestria de sempre os maiores e melhores riffs de guitarra já escritos. Demorou um pouco, mas o povo entendeu: logo estavam todos gritando por Tony e, eventualmente, Geezer – em seus momentos de maior destaque, como na introdução de NIB. No final da apresentação Ozzy chega a se curvar em reverência diante do guitarrista. Emocionante.

Tony porque Iommi é a base de tudo ali naquela porra de banda. E os solos também. A não ser quando, no meio da apresentação, deixa os holofotes nas mãos – e pés – de Clufetos que, sem exagero, humilha, principalmente quando se dedica a um solo de bateria absolutamente impressionante, capaz de calar qualquer vestígio de dúvidas quanto ao seu mérito para estar ali, substituindo uma lenda viva das baquetas. Fico imaginando o que se passa pela mente de Bill Ward ao ver aquilo. Certamente pensará que o tempo é um canalha, ou algo parecido, já que sua idade, evidentemente, não lhe permitiria tamanha vitalidade. Azar o dele, caso o motivo da falta seja realmente o que foi aventado:  uma simples – ok, nem sempre – disputa financeira. Porque tenho certeza que ninguém sentiria falta do vigor da juventude de Clufetos diante de sua simples presença, igualmente digna de reverência. Enfim, são apenas especulações. A realidade estava lá, diante de nossos olhos e castigando nossos ouvidos. E foi sensacional.

Depois de “Age of reason”, a primeira do disco novo, foi a vez de “Black Sabbath”, a música. Arrepiante. Ainda mais sinistra e arrastada que a versão original, foi executada em tom solene e acompanhada de forma emocionada pela platéia, no que parecia uma gigantesca missa negra em pleno templo da alegria, a praça da apoteose da passarela do samba – àquela altura do campeonato lotada por cerca de 35.000 pessoas. Nessa hora, do meu lado, alguém decide que era o momento de acender uma vela - ou algo parecido – no caso, um sinalizador, que eu carrego por alguns minutos até passá-lo adiante antes que seja tomado pela brigada anti-incêndio. Enquanto isso, do palco, soam gritos de desespero: “OH! NO! PLEASE, GOD, HELP ME” - e tome porrada no pé do ouvido. Impossível não lembrar da primeira vez que ouvi esse verdadeiro hino, sozinho, no escuro, nos anos oitenta, em Itabaiana. Senti medo – foi uma das duas únicas vezes em que uma música me fez sentir medo. A outra foi quando ouvi, também sozinho e no escuro, a composição de György Ligeti usada na cena do portal da trilha sonora de “2001, uma odisséia no espaço”.

O show prossegue com “Behind the wall of sleep” e “NIB”. “End of the beginning”, de “13”, entra na sequencia. O mais incrível é notar que as três músicas do novo disco inseridas no set list não comprometem em nada a qualidade da apresentação em meio a um repertório tão perfeito. Suspeito até que elas possam se tornar também, um dia, clássicos do cancioneiro “sabbático”, a julgar pelo impacto que foi ouvir ao vivo o riff matador que abre a ótima “God is dead”. O futuro dirá.

Enquanto isso Ozzy prossegue fazendo o que pode – e ainda pode muito – para animar a noite. Inclusive piada consigo mesmo, como quando entra no palco com um morcego de plástico na boca, ou quando joga os já tradicionais baldes de água nos que estão encostados na grade. Ou chutando de volta as bolas lançadas pelo público. Ou ainda emitindo um curioso e misterioso som de “cuco” na introdução de algumas músicas – quando a platéia finalmente demonstra notar que é ele que está fazendo aquilo, ele diz: “Dane-se o mundo e enlouqueça, é bom ficar louco”. O velhinho ainda tem muito bom humor e poder de comunicação, demonstrado também ao anunciar “Dirty women” – “I like then”. Gargalhadas gerais. Mas é bom não abusar: num dado momento ele arrisca um de seus clássicos saltos, tão amplamente registrados em fotos antológicas, mas consegue apenas um pulinho desengonçado. Ninguém pareceu notar – porque porra, Tony Iommi estava ali do lado, despejando mais uma saraivada de riffs. Que se foda o que não deu certo.

Antes de “Children of the Grave” Mr. Madman anuncia que eles só têm mais uma música antes do fim, mas que se nós fizéssemos muito, mas muito barulho mesmo, eles voltariam e tocariam "one more song". Dito e feito – voltam para o bis e, para minha surpresa, Tony puxa o riff de nada menos que “Sabbath Bloody Sabbath”! Geezer e Clufetos não se fazem de rogados e o acompanham, mas foi só uma brincadeira: ele logo emenda com “paranoid”, esta sim, programada para o final. Apoteótico, como não poderia deixar de ser, mas com uma misteriosa ausência de Geezer Butler na saudação final. Os caras até demoram um pouco mais a se despedir esperando por ele, que não aparece. Dá pra notar que Ozzy ficou um tanto quanto confuso e preocupado, mas enfim, fim de festa. Hora de tentar ir embora, ao som de “zeitgeist”, a faixa mais lenta do novo disco, tocada nos auto-falantes – que durante toda a espera antes do show só tocava AC/DC.

TENTAR porque a produção cometeu alguns absurdos de desorganização, o maior deles a estreita faixa de portão que TODOS os que estavam na pista vip tiveram que utilizar para se retirar. Felizmente não houve tumulto naquele momento, pois as conseqüências poderiam ter sido catastróficas. Detalhe: isso num evento particular - embora utilizando-se de um espaço público - com ingressos a preços exorbitantes. Outra bola fora, que ninguém pareceu notar, foi a ausência do belíssimo cenário que emoldura os telões do palco nos shows gringos. Aqui foi o tradicional telão preto quadradão mesmo. Que, por sinal, exibiu uma bela sequencia de imagens perfeitamente sincronizadas com o conteúdo das letras das músicas – com direito, inclusive, a uma sinistra imagem do “papa emérito” Bento XVI entre ditadores assassinos. Ousado.

Não tão bom ou ousado, no entanto, quanto o uso do telão feito pelo Megadeth, que abriu a noite com uma apresentação precisa e devastadora. Ou melhor, dos telões: tiveram o requinte de usar 3, um grande, atrás, e dois menores, na frente. A seleção de imagens foi bem melhor que a do Sabbath, com direito, inclusive, a grandes sacadas de humor, como os trechos de comédias Hollywoodianas que citam a banda usados na introdução de algumas músicas.

Esta era a terceira vez que eu veria o Megadeth, o que faz dela a banda “gringa” que eu mais vi ao vivo na vida. É sempre um bom show, claro, mas confesso que me surpreendi. Entraram com todo o gás, já com “Hasngar 18”, do “rust in peace” – que eu considero o segundo melhor disco de thrash metal de todos os tempos. E emendaram com a devastadora “Wake up dead”, faixa de abertura do segundo melhor disco deles, “peace sells... but who´s buying?” – heresia para muitos de meus amigos que preferem sempre o “countdown to extinction”. No meu ranking pessoal ele ocupa um honroso terceiro lugar, e só veio dar as caras no show com “Sweating bullets”, a quinta a ser executada. Fora essa, “apenas” o megahit “Symphony of Destruction”. Pra mim foi de excelente tamanho, já que no recheio tivemos “tornado of souls”, também do rust, numa apresentação que se encerrou com a faixa-título do segundo disco, “peace sells” - com direito à presença ilustre do mascote da banda, Vic Rattlehead, num "momento Eddie", dando um passeio no palco vestido num uniforme militar - e teve “Holy Wars” como bis. Tudo tocado de forma precisa e em alto e bom som, apesar de numa velocidade desenfreada. Como deve ser, aliás, em se tratando de uma das bandas fundadoras do thrash. Melhor impossível.

O show do Megadeth se encerrou com a execução, nos auto-falantes, da versão de Joey Ramone para “What a wondeful World”. Era exatamente o que sentíamos todos naquele momento, prestes a ver pela primeira vez ao vivo a banda das nossas vidas.

Unforgettable.

a.

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segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Lênin, por H. G. Wells

O britânico H.G.Wells (1866-1946) já tinha publicado seus famosos romances A Guerra dos MundosA Ilha do Dr. Moreau e O Homem Invisível quando foi à Rússia, em outubro de 1920, e se encontrou com Vladimir Ilitch Lenin (1870-1924), o líder da revolução ocorrida no país três anos antes. Wells nunca foi marxista nem acreditava na chegada do socialismo ao poder pela via revolucionária. Sim, era socialista, mas um socialista utópico.

No entanto, ganha visível simpatia e admiração intelectual por Lenin nesse encontro que um amigo em comum, o também escritor Máximo Gorki (1868-1936), tornou possível. Wells chega ressabiado, cheio de críticas ao que viu no país até ali e cético com o futuro da União Soviética, mas nada foi capaz de causar tensão entre os dois: o papo flui de maneira agradável até o fim. Era a segunda vez que Wells visitava a Rússia. Ainda iria lá mais uma vez em 1934, quando entrevistou Stalin, a quem também admirou, mas achou “rígido demais”.
A entrevista foi publicada no The Sunday Express (edição de domingo do Daily Express), entre vários artigos que Wells escreveu sobre a viagem. No ano seguinte, saiu em livro, com o título Russia In the Shadows (Rússia nas Sombras). A conversa com Lenin, que traduzi e transcrevo aqui quase na totalidade, ocupa o penúltimo capítulo do livro. A edição original pode ser encontrada online, em inglês. É uma narrativa fascinante, rica em descrições e muito saborosa, que nada deixa a desejar ao “new journalism” que surgiria apenas 40 anos depois. Espero que desfrutem.
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O Sonhador no Kremlin

Por H.G.Wells

Meu principal propósito ao ir de Petersburgo a Moscou era encontrar e conversar com Lenin. Eu estava muito curioso para vê-lo e estava disposto a ser hostil com ele. Encontrei uma personalidade totalmente diferente de tudo que eu esperava encontrar.

Lenin não é um escritor; seus trabalhos publicados não o retratam. Os pequenos panfletos e ensaios que circulam em Moscou com o seu nome, cheios de falsas ideias sobre a psicologia do trabalho no Ocidente e defensores obstinados da proposição impossível que é a profetizada revolução marxista que aconteceu na Rússia, mostram muito pouco da real mentalidade do Lenin que eu encontrei. De vez em quando há alguns momentos de inspirado brilhantismo, mas em geral estas publicações não mais que abordam as ideias e as frases do marxismo doutrinário. Pode ser que isso seja necessário. Talvez seja essa a única linguagem que o comunismo entenda; uma ruptura em um novo dialeto seria inquietante e desmoralizante. O comunismo de esquerda é a espinha dorsal da Rússia hoje; infelizmente é uma espinha dorsal sem partes flexíveis, uma espinha dorsal que não pode ser dobrada a não ser com extrema dificuldade e que deve ser dobrada mediante adulação e deferência.
Em Seattle!
Sob o brilhante sol de outubro, entre as folhas amarelas esvoaçantes, Moscou nos impressionou como sendo ao mesmo tempo mais relaxada e mais animada que Petersburgo. Há muito mais movimento de gente, mais comércio e um comparável número de droshkys (carruagens). Os mercados estão abertos. Não há a mesma ruína geral de ruas e casas. Há, isso é certo, muitos rastros dos desesperados enfrentamentos de rua dos princípios de 1918. Um dos domos da absurda catedral de São Basílio, exatamente do lado de fora do portão do Kremlin, estava amassado por um morteiro e ainda necessita conserto. Os bondes que encontramos não carregavam passageiros; estavam sendo usados para transportar comida e combustível. Neste aspecto Petersburgo parece melhor preparada do que Moscou.

As dez mil cruzes de Moscou ainda brilham à luz da tarde. Sobre um pináculo visível do Kremlin as águias imperiais estendem suas asas; o governo bolchevique tem estado muito ocupado ou muito indiferente para tirá-las dali. As igrejas estão abertas, as imagens de santos são uma indústria florescente, e os mendigos todavia cortejam a caridade nas portas. O famoso santuário milagroso da Madona Ibérica, do lado de fora da Porta do Salvador, estava particularmente cheio. Havia muitas mulheres do campo, incapazes de entrar na pequena capela, beijando as pedras do lado de fora.
Do lado oposto, em um painel de gesso colocado em frente a uma casa, está aquela agora célebre inscrição colocada por um dos primeiros governos revolucionários em Moscou: “A religião é o ópio do povo”. O efeito que a inscrição produz é enormemente reduzido pelo fato de que o povo na Rússia não pode ler.
Os arranjos prévios a meu encontro com Lenin foram tediosos e irritantes, mas no fim lá estava eu a caminho do Kremlin na companhia do Sr. Rothstein, uma velha figura dos círculos comunistas londrinos, e um camarada americano com uma câmera enorme que era também, suspeitei, um oficial do ministério das relações exteriores russo.
O Kremlin como eu lembrava em 1914 era um lugar muito aberto, tanto quanto o Castelo de Windsor, com peregrinos e turistas em grupos e casais passeando através dele. Mas agora é fechado e difícil de entrar. Houve uma grande confusão com passes e autorizações antes de que pudéssemos passar ainda pelos portões externos. E nós fomos checados e inspecionados em quatro ou cinco salas de guardas e sentinelas antes de sermos recebidos. Isto pode ser necessário para a segurança pessoal de Lenin, mas o coloca fora de alcance da Rússia e, mais grave talvez, se há de fato uma ditadura, isso põe a Rússia fora de seu alcance. Se as coisas são filtradas até ele, devem ser filtradas abaixo, e então podem vir muitas mudanças no processo.
Encontramos finalmente Lenin, uma pequena figura em uma grande mesa, numa sala bem iluminada com magnífica vista. Achei sua escrivaninha um tanto bagunçada. Sentei-me a um canto da mesa, e o homenzinho –seu pé mal tocava o chão quando ele se sentou na ponta da cadeira– virou-se para conversar comigo, colocando os braços ao redor e sobre uma pilha de papéis. Ele falava um inglês excelente, mas, pensei, era característico da atual condição das relações russas que o sr. Rothstein se metesse ocasionalmente na conversa, fazendo observações e oferecendo ajuda. Enquanto isso o americano começou a trabalhar com sua câmera, e, discreta mais persistentemente, tirava fotos. A conversa, entretanto, estava muito interessante para que isso pudesse ser um incômodo. Esquecemos os cliques bastante rápido.
Eu tinha vindo com a expectativa de discutir com um marxista doutrinário. Não encontrei nada parecido. Tinha ouvido falar que Lenin gostava de dar lições às pessoas; ele certamente não o fez nesta ocasião. Muito se falou de sua risada nas descrições, uma risada que poderia ser prazerosa a princípio e cínica ao final. Esta risada não apareceu. Sua testa me lembrou a de alguém –não pude lembrar quem, até que em uma outra tarde eu vi Sr. Arthur Balfour (ex-primeiro-ministro britânico) sentado e falando sob uma luz fraca. É exatamente a mesma abóbada, o crânio ligeiramente unilateral. Lenin tem uma agradável, mutável, face amorenada, com um vívido sorriso e o hábito (talvez por alguma dificuldade em enxergar) de apertar um olho quando pausa a conversação; ele não se parece muito com as fotografias que você conhece dele porque é uma dessas pessoas cuja mudança de expressão é mais importante que os rasgos; ele gesticulava um pouco com suas mãos sobre os papéis amontoados enquanto falava, e falava rapidamente, muito perspicaz sobre a sua matéria, sem nenhuma pose ou pretensão ou reserva, como um bom homem de ciências falaria.
Nossa conversa esteve alinhavada e unida por dois –como diria? –temas. Um, de mim para ele: “O que você acha que está fazendo da Rússia? Que tipo de Estado está tentando criar?” O outro, dele para mim: “Por que a revolução socialista não começa na Inglaterra? Por que vocês não trabalham pela revolução? Por que vocês não estão destruindo o capitalismo e estabelecendo o Estado Comunista?” Estes temas se entrelaçavam, afetavam um ao outro, iluminavam-se. O segundo trouxe de volta o primeiro: “Mas o que vocês estão fazendo da revolução socialista? Está sendo um sucesso?” E este de volta para o segundo: “Para ser um sucesso o mundo ocidental deve participar. Por que não o faz?”
Antes de 1918 todo o mundo marxista pensava na revolução socialista como um fim. Os trabalhadores do mundo tinham que se unir, derrotar o capitalismo e serem felizes no final. Mas em 1918 os comunistas, para sua própria surpresa, se encontravam no comando da Rússia e desafiados a produzir seu milênio. Eles tinham, na continuidade das condições de guerra, no bloqueio, etcétera, uma pretensa desculpa para o atraso na produção de uma nova e melhor ordem social, mas é claro que começam a se dar conta do tremendo despreparo que implicam os métodos marxistas de pensamento. Em uma centena de pontos –já apontei o dedo em um ou dois deles –eles não sabem o que fazer. Mas o comunista comum simplesmente perde o controle se você se arrisca a duvidar que tudo está sendo feito, sob o novo regime, precisamente da melhor e mais inteligente maneira. Ele é como uma dona de casa irritadiça que quer que você reconheça que tudo está em perfeita ordem no meio de uma ação de despejo. É como uma dessas agora esquecidas “suffragettes” (mulheres que lutaram pelo voto feminino) que costumavam nos prometer o paraíso na Terra tão logo escapássemos da tirania das “leis feitas por homens”. Lenin, por outro lado, cuja franqueza muitas vezes deixa seus discípulos sem fôlego, recentemente desnudou a última pretensão de que a revolução russa seja algo mais do que a inauguração de uma época de experimentação sem limites. “Aqueles que estão engajados na formidável tarefa de vencer o capitalismo”, ele escreveu, “devem estar preparados para tentar método após método até achar aquele cujas respostas atendam melhor a seu objetivo”.
Iniciamos nossa conversa com uma discussão sobre o futuro das grandes cidades sob o comunismo. Eu queria ver até onde Lenin estava acompanhando a morte das cidades na Rússia. A desolação de Petersburgo me trouxe a compreensão de algo que eu nunca tinha me dado conta antes: que toda a forma e a existência de uma cidade são determinadas pelo comércio e pelo mercado, e que a abolição deles torna nove entre dez edifícios, em uma cidade comum, direta ou indiretamente sem significado ou sem uso. “As cidades ficarão muito menores”, ele admitiu. “Elas serão diferentes. Sim, bastante diferentes”. O que, eu sugeri, implicaria em um enorme desafio. Isto significaria riscar todas as cidades existentes e substituí-las. As igrejas e os grandes edifícios de Petersburgo se tornariam então como os de Novgorod o Grande (cidade russa) ou como os templos de Paestum (Grécia). A maioria das cidades se dissolveria. Ele concordou, bastante alegremente. Acho que o confortou achar alguém que entendesse a necessária consequência do coletivismo, o que até mesmo muitos de sua própria gente não conseguiam. A Rússia tem que ser reconstruída inteiramente, tem que se tornar uma nova coisa…
E a indústria também tem que ser reconstruída inteiramente?
Eu me dei conta do que já está acontecendo na Rússia? Da eletrificação da Rússia?
Lenin, que, como um bom marxista ortodoxo, rejeita todos os “utópicos”, sucumbiu afinal a uma utopia, à utopia dos eletricistas. Ele aposta suas fichas em um esquema de desenvolvimento de grandes estações de energia na Rússia para atender todas as províncias com luz, transporte e energia industrial. Dois distritos experimentais já foram eletrificados, ele disse. Alguém pode imaginar um projeto mais corajoso em uma terra enorme e plana, de florestas e camponeses ignorantes, sem energia hidráulica, e com o comércio e a indústria em seu último suspiro? Projetos de eletrificação parecidos estão em desenvolvimento na Holanda e estão sendo discutidos na Inglaterra e, nestes centros densamente povoados e industrialmente desenvolvidos, pode-se concebê-los como exitosos, econômicos e totalmente benéficos. Mas sua aplicação na Rússia representa um ganho ainda maior sobre a imaginação construtiva. Eu não consigo imaginar nada disso acontecendo nesta bola de cristal turva da Rússia, mas este pequeno homem no Kremlin pode; ele vê as decadentes ferrovias substituídas por um novo transporte elétrico, vê novas estradas se estendendo sobre o país, vê um novo e feliz comunismo industrial recomeçando. Enquanto conversávamos ele quase me persuadiu a compartilhar de sua visão.
“E você fará tudo isso com os camponeses fixados em sua terra?”
Mas não somente as cidades serão reconstruídas; toda a agricultura também será.
“Mesmo agora,” disse Lenin, “toda a produção agrícola da Rússia não vem dos camponeses. Nós temos agricultura em larga escala em alguns lugares. O governo já controla grandes propriedades com trabalhadores no lugar de camponeses, onde as condições são favoráveis. Isso pode ser ampliado, primeiro para outra província, e então para outra. Os camponeses em outras províncias, egoístas e ignorantes, não saberão o que está acontecendo até chegar sua vez…”
Pode ser difícil derrotar o campesinato russo em massa; mas por partes não há dificuldade. À menção dos camponeses a cabeça de Lenin chegou perto da minha; seu jeito de falar se tornou confidencial. Como se todos os camponeses pudessem ouvi-lo.
Não é apenas a organização material da sociedade que você tem de construir, argumentei, mas a mentalidade de todo o povo. Os russos são, por hábito e tradição, negociantes e individualistas; suas almas devem ser remodeladas para este novo mundo ser conquistado. Lenin me perguntou o que eu tinha visto do trabalho educativo que está sendo feito. Elogiei algumas das coisas que vi. Ele assentiu e sorriu com prazer. Tem uma confiança ilimitada em seu trabalho.
“Mas são apenas esboços e começos”, eu disse.
“Em dez anos volte e veja o que nós fizemos na Rússia”, ele respondeu.
Em Lenin eu me dei conta de que o comunismo podia ser, a despeito de Marx, enormemente criativo. Após estes fanáticos chatos da guerra de classes que encontrei entre os comunistas, homens previsíveis tão estéreis quanto o sílex, após numerosas experiências com o orgulho treinado e vazio do devoto homem marxista, este impressionante homenzinho, com sua franca admissão da imensidade e complicação do projeto do comunismo e sua singela concentração sobre a concretização dele, foi muito revigorante. Ele pelo menos tem a visão de um mundo transformado a planejar e construir de novo.
Ele queria mais das minhas impressões sobre a Rússia. Eu lhe disse que achei que em muitos lugares, e mais particularmente na Comuna de Petersburgo, o comunismo estava se impondo muito forte e rapidamente, e destruindo antes de estar pronto para reconstruir. Eles destruíram o comércio antes que estivessem prontos para o racionamento; a organização cooperativa foi  destroçada em vez de ser utilizada, e coisas assim. Isso nos trouxe à nossa diferença essencial, à diferença entre o coletivista evolucionário e o marxista, à pergunta se a revolução é, afinal, necessária, se é necessário destruir um sistema econômico completamente antes que um novo possa começar. Eu acredito que através de uma intensa campanha educativa o sistema capitalista existente pode ser civilizadoem um sistema coletivista mundial; Lenin, por outro lado, se prendeu anos atrás aos dogmas marxistas da inevitável guerra de classes, à derrota da ordem capitalista como prelúdio para a reconstrução, à ditadura do proletariado e coisas do gênero. Ele tinha que argumentar, portanto, que o capitalismo moderno é incuravelmente predatório, perdulário e impossível de reeducar, e que até que ele seja destruído irá continuar a explorar a humanidade estupidamente e sem rumo, que lutará e se prevenirá contra qualquer administração de recursos naturais que seja para o bem geral, e que, porque é essencialmente uma disputa, inevitavelmente fará guerras.
Eu era, admito, um osso duro de roer. De repente, ele sacou o novo livro de Chiozza Money, The Triumph of Nationalisation, que tinha evidentemente lido com muito cuidado. “Veja, se você começa a ter um bom trabalho de organização coletiva com interesse público, os capitalistas destroem de novo. Eles aniquilaram seus estaleiros nacionais; eles não irão deixar vocês trabalharem seu carvão economicamente”. Ele deu um tapinha sobre o livro. “Está tudo aqui”.
E contra o meu argumento de que as guerras vieram do imperialismo nacionalista e não da organizacão capitalista da sociedade ele saiu-se com esta: “Mas o que você pensa do novo imperialismo republicano que vem até nós da América?”
Aqui o Sr. Rothstein interveio em russo com uma objeção a que Lenin não deu importância.
E a despeito da súplica do Sr. Rothstein por reserva diplomática, Lenin continuou a explicar os projetos com os quais pelo menos um americano procurava deslumbrar a imaginação de Moscou. A assistência econômica para a Rússia e o reconhecimento do governo bolchevique. Uma aliança defensiva contra a intervenção japonesa na Sibéria. Uma estação naval na costa da Ásia, e arrendamentos a longo prazo, por 50 ou 60 anos, dos recursos naturais do Kamchatka e possivelmente de outras largas regiões na Rússia asiática. Bem, eu acho que isso seria para a paz? Não seria nada mais que o começo de um novo conflito mundial? O que achariam os imperialistas britânicos deste tipo de coisa?
Sempre, ele insistiu, o capitalismo compete e disputa. É a antítese da ação coletiva. Não pode evoluir para a unidade social ou mundial.
Mas alguma potência industrial poderia vir e ajudar a Rússia, eu disse. Ela não pode se reconstruir agora sem essa ajuda…
Nossos múltiplos argumentos findaram inconclusivamente. Nos despedimos de forma amistosa, e eu e meu colega fomos colocados para fora do Kremlin barreira após barreira, da mesma maneira como entramos.
por Cynara Menezes
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Stalin, por H. G. Wells

Entrevista lendária e histórica realizada pelo escritor, gênio e visionário H.G.Wells(1866-1946) com Josef Stálin. Era 1934 e Wells estava em visita à União Soviética. A entrevista aconteceu no dia 23 de julho e durou das 16h às 18:50h. A conversa foi anotada por Konstantin Oumansky - Comissariado do Exterior da URSS.

— Wells: Fico-lhe muito grato, senhor Stálin, por ter aceitado ver-me. Estive recentemente nos Estados Unidos. Mantive longa conversa com o Presidente Roosevelt e procurei saber quais eram suas idéias principais. Agora venho perguntar ao senhor o que está fazendo para mudar o mundo...

— Stálin: Na verdade, não muita coisa...

— Wells: Vagueio pelo mundo e como um homem comum, observo o que se passa em volta de mim.

— Stálin: Os homens públicos importantes, como o senhor, não são "homens comuns". Evidentemente, só a história pode determinar quão importante foi este ou aquele homem público. Em todo o caso, o senhor não vê o mundo como um "homem comum".

— Wells: Não pretendi ser modesto. Quis dizer que procuro ver o mundo com os olhos do homem comum, e não como um político de partido ou um estadista. A minha visita aos Estados Unidos me causou forte impressão. O velho mundo financeiro está desabando, e a vida econômica do país está sendo reorganizada sobre novas linhas. Lênin disse que era "preciso aprender a fazer negócios" aprendendo com os capitalistas. Hoje, os capitalistas tem de aprender com os senhores, devem captar o espírito do socialismo. Parece-me que nos Estados Unidos se está levando a cabo profunda reorganização - a criação de uma economia planificada, isto é, socialista.

O senhor e Roosevelt partiram de dois pontos de vista diferentes. Porém, não há uma relação de idéias, uma espécie de parentesco de idéias, entre Washington e Moscou?

Em Washington, impressionaram-me as mesmas coisas que se passam aqui: ampliação do aparelho de direção, criação de uma série de novos organismos reguladores do Estado, organização de um serviço público universal. Como os senhores, necessitam de habilidade na direção.

— Stálin: Os Estados Unidos buscam propósito diverso do que buscamos na U.R.S.S. O propósito que perseguem os norte-americanos surgiu das dificuldades econômicas, da crise econômica. Os norte-americanos pretendem desembaraçar-se das crises à base da atividade capitalista privada sem mudar a base econômica. Estão tratando de reduzir ao mínimo a ruína, as perdas causadas pelo sistema econômico existente. Aqui, entretanto, como o senhor sabe, foram criadas, em lugar do velho sistema econômico destruído, bases inteiramente diferentes; uma nova base econômica.

Embora os americanos citados pelo senhor atinjam parcialmente o seu propósito, quer dizer, reduzam ao mínimo tais dificuldades, não destruirão as raízes da anarquia que é inerente ao sistema capitalista.

Estão preservando o sistema econômico que deve conduzir inevitavelmente - e não pode senão conduzir - à anarquia na produção. De modo que, na melhor das hipóteses, o que atingirem será, não a reorganização da sociedade, não a abolição do velho sistema social que engendra a anarquia e as crises, mas a limitação de algumas de suas características negativas, certa restrição aos seus excessos. Subjetivamente, talvez os norte-americanos pensem que estão reorganizando a sociedade; objetivamente, entretanto, estão preservando as bases atuais dela. É por isso, objetivamente, que daí não resultará nenhuma reorganização da sociedade.

Nem haverá absolutamente economia planificada. Que é economia planificada? Quais são alguns dos seus atributos? A economia planificada cuida de abolir o desemprego. Suponhamos que seja possível, enquanto se preserva o sistema capitalista, reduzir o desemprego até certo mínimo. Porém, nenhum capitalista aceitará jamais a abolição total do desemprego, a abolição do exército de reserva dos desempregados, cuja razão de ser é fazer pressão no mercado do trabalho para garantir a oferta de trabalho barato. Aí tem o senhor uma das fendas da "economia planificada" da sociedade burguesa. E ainda mais, a economia planificada pressupõe aumento da produção naqueles ramos da indústria que produzem as mercadorias de que o povo mais necessita. Mas o senhor sabe que a expansão da produção, sob o capitalismo, se dá por motivos inteiramente diferentes; sabe que o capital flui para aqueles ramos da economia onde é mais alta a taxa de lucro. O senhor jamais conseguirá que um capitalista aceite uma taxa de lucro menor para satisfazer as necessidades do povo. Por isso, sem se desembaraçar dos capitalistas, sem se abolir o princípio da propriedade privada sobre os meios de produção, é impossível criar-se uma economia planificada.

— Wells: Estou de acordo com muita coisa que o senhor disse, porém gostaria de insistir sobre o fato de que se um país adota o princípio da economia planificada, se os governantes, de modo gradual, passo a passo, começam conseqüentemente a aplicar esse princípio, a oligarquia financeira será por fim abolida e se estabelecerá o socialismo, no sentido anglo-saxão da palavra. O efeito das idéias do New Deal de Roosevelt é muito poderoso, e elas são, na minha opinião, idéias socialistas. Parece-me que, em vez de se por em tensão o antagonismo entre os dois mundos, deveríamos, nas circunstâncias atuais, esforçarmo-nos por estabelecer uma linguagem comum para todas as forças construtivas.

— Stálin: Ao falar da impossibilidade de realizar os princípios da economia planificada enquanto se conserva a base econômica do sistema capitalista, não desejo, de forma alguma, diminuir as destacadas qualidades pessoais de Roosevelt, sua iniciativa, sua coragem e determinação. Indubitavelmente, Roosevelt se projeta como uma das figuras mais fortes entre todos os capitães do mundo capitalista contemporâneo. Por isso gostaria, ainda uma vez, de repisar que a minha convicção de que a economia planificada é impossível sob as condições do capitalismo, não significa que tenha dúvidas sobre a qualidade pessoal, o talento e a coragem do Presidente Roosevelt. Mas quando as circunstâncias são desfavoráveis, nem o capitão de maior talento pode atingir a meta a que o senhor se referiu.

Para começar, teoricamente não está excluída a possibilidade de se caminhar gradualmente, passo a passo, sob as condições do capitalismo, até a meta pelo senhor chamada socialismo no sentido anglo-saxão da palavra. Mas que "socialismo" será esse? Na melhor das hipóteses, será um freio aos representantes mais obstinados do lucro capitalista, certo reforçamento do princípio regulador na economia nacional. Tudo isso está muito bem. Porém, assim que Roosevelt, ou qualquer outro capitão do mundo contemporâneo burguês, comece a empreender algo de sério contra os fundamentos do capitalismo, sofrerá inevitavelmente séria derrota. Os bancos, as indústrias, as grandes empresas, as grandes fazendas, não estão nas mãos de Roosevelt. São todas propriedades privadas. As estradas de ferro, a marinha mercante, tudo isso pertence a proprietários privados. E, finalmente, o exército dos trabalhadores especializados os engenheiros, os técnicos, não estão tampouco sob o mando de Roosevelt, mas dos proprietários privados; todos trabalham para eles. Não devemos esquecer as funções do Estado, no mundo burguês. O Estado é uma instituição que organiza a defesa do país, organiza a manutenção da "ordem": é um aparelho para cobrar impostos. O Estado capitalista não se ocupa muito com a economia no sentido estrito da palavra; a economia não está nas mãos do Estado. Ao contrário, o estado é que está nas mãos da economia capitalista. Por isso, receio que, apesar de toda a sua energia e capacidade, Roosevelt não alcance a meta a que o senhor se refere,se essa é, em realidade, a sua meta. Talvez, no curso de várias gerações, seja possível aproximar-se um pouco dessa meta, porém pessoalmente considero que nem mesmo isso seja provável.

— Wells: Talvez eu creia mais fortemente que o senhor na interpretação econômica da política. As invenções e a ciência moderna puseram em movimento enormes forças dirigidas para a organização melhor, para o melhor funcionamento da comunidade, isto é, para o socialismo. A organização e a regulamentação da ação individual tornaram-se necessidades mecânicas, independentemente das teorias sociais.

Se principiássemos pelo controle estatal dos bancos e continuássemos com o controle dos transportes, das indústrias pesadas, da indústria em geral, do comércio etc., tal controle universal equivaleria à propriedade do Estado sobre todos os ramos da economia nacional. Este será o processo da socialização. Socialismo e individualismo não se opõem como o preto ao branco. Há muitos estados de permeio entre eles. Há o individualismo que roça no bandoleirismo, e há o espírito de disciplina e de organização que são equivalentes ao socialismo. A introdução da economia planificada depende, em grau considerável, dos organizadores da economia, dos técnicos, os quais, passo a passo, podem ser convertidos aos princípios socialistas de organização. E isso é da maior importância, porque a organização precede o socialismo. Sem organização, a idéia socialista não passa de mera idéia.

— Stálin: Não há, nem deve haver, contraste irreconciliável entre o indivíduo e a coletividade, entre os interesses individuais e os interesses da coletividade. Não deve haver tal contraste, porque o coletivismo, o socialismo, não nega e sim combina os interesses individuais com os interesses da coletividade.

O socialismo não pode se esquecer dos interesses individuais. Somente a sociedade socialista pode satisfazer completamente esses interesses pessoais. Ainda mais: só a sociedade socialista pode salvaguardar firmemente os interesses do indivíduo. Neste sentido, não há contraste irreconciliável entre "individualismo" e socialismo. Porém, podemos negar o contraste entre as classes, entre a classe dos proprietários, a classe dos capitalistas, e a classe dos trabalhadores, a classe dos proletários? De um lado, temos a classe dos proprietários, que é dona dos bancos, das fábricas, das minas, do transporte, das plantações nas colônias. Tais pessoas não vêem senão seus próprios interesses, sua ambição pelos lucros. Não se submetem à vontade da coletividade; esforçam-se, isso sim, por subordinar cada coletividade à sua vontade. De outro lado, temos a classe dos pobres, a classe explorada, a que não possui nem fábricas, nem usinas, nem bancos, a que é obrigada a vender sua força de trabalho aos capitalistas e que carece de oportunidades para satisfazer as suas necessidades mais elementares. Como se podem conciliar interesses tão opostos? Pelo que sei, Roosevelt não teve êxito em encontrar a senda da conciliação entre esses interesses. E é impossível, como já o demonstrou a experiência. Afinal, o senhor conhece a situação dos Estados Unidos melhor do que eu, que nunca estive lá e observo os assuntos norte-americanos sobretudo através do que se escreve sobre esse assunto. Porém tenho alguma experiência de luta pelo socialismo e esta experiência me diz que, se Roosevelt tentar satisfazer os interesses da classe proletária, à custa da classe capitalista, esta porá outro Presidente no lugar dele. Os capitalistas dirão: os Presidentes passam, porém nós permaneceremos; se esse ou aquele Presidente não defende os nossos interesses, encontraremos um outro. Pode o Presidente opor-se à vontade da classe capitalista?

— Wells: Oponho-me a essa classificação simplista da Humanidade em pobres e ricos. Evidentemente há uma categoria de pessoas que visa o lucro. Mas não são essas pessoas olhadas como obstáculos, tanto no Ocidente como aqui? Não há no Ocidente muita gente para quem o lucro não é um fim em si, gente que possui certa quantidade de recursos e que deseja inverter e obter lucros com as suas inversões, porém que não faz disso o seu objetivo principal? Para essa gente as inversões são uma inconveniência necessária. Não há grandes núcleos de engenheiros capazes e estudiosos, organizadores da economia, cujas atividades são estimuladas por alguma coisa mais que o lucro? Na minha opinião, há uma classe numerosa de pessoas capazes que admitem ser o sistema atual não-satisfatório e que estão destinadas a um grande papel na futura sociedade socialista. Durante os últimos anos tenho pensado muito na necessidade, tenho-me dedicado muito à tarefa de levar a cabo a propaganda em favor do socialismo e do cosmopolitismo entre amplos círculos de engenheiros, aviadores, elementos técnicos militares etc. É inútil aproximar-se desses círculos com a propaganda direta da luta de classes. Essas pessoas compreendem a situação em que se encontra o mundo, que se transforma num pântano sangrento, mas para tais pessoas o antagonismo primitivo da luta de classes é algo sem sentido.

— Stálin: O senhor se opõe à classificação simplista das pessoas em ricos e pobres. E claro que há as camadas médias, há a intelectualidade técnica a que o senhor se referiu e, entre elas, há pessoas muito boas e honradas. Entre elas há também pessoas desonestas e perversas, toda espécie de gente. Porém, antes de mais nada, a Humanidade está dividida em ricos e pobres, entre proprietários e explorados; e abstrair-se dessa divisão fundamental e do antagonismo entre pobres e ricos significa abstrair-se do fato fundamental. Não nego a existência de camadas intermediárias, que podem ficar do lado de uma ou de outra dessas duas classes em conflito, ou podem tomar posição neutra ou semineutra nessa luta. Todavia, repito, abstrair-se dessa divisão fundamental da sociedade e da luta fundamental entre as duas classes principais significa ignorar os fatos. Esta luta continua e continuará. O resultado dela será determinado pela classe proletária, a classe dos trabalhadores.

— Wells: Porém, não há muitas pessoas que, não sendo pobres, trabalham produtivamente?

— Stálin: Para começar, há pequenos proprietários de terras, artesãos, pequenos comerciantes, mas não são esses os que decidem da sorte de um país, e sim as massas trabalhadoras que produzem todas as coisas requeridas pela sociedade.

— Wells: Contudo há muitas classes diferentes de capitalistas. Há capitalistas que só pensam nos lucros; mas há também os que estão preparados para fazer sacrifícios. Tomemos o velho Morgan por exemplo: só pensou nos lucros; foi um parasita da sociedade. Acumulou riquezas simplesmente. Agora tomemos Rockfeller. É um organizador brilhante, tendo dado o exemplo de como organizar a produção de petróleo, exemplo esse digno de ser imitado. Ou tomemos Ford. É claro que Ford é egoísta: Porém, não é um organizador apaixonado da produção racionalizada, de quem os senhores tomaram lições?

Desejaria insistir no fato de que recentemente se deu importante mudança de opinião a respeito da U.R.S.S. nos países de língua inglesa. A razão da mudança está ligada, antes de mais nada, à posição do Japão e à situação da Alemanha. Mas há outras razões que não decorrem somente da política internacional. Há uma razão mais profunda: refiro-me ao reconhecimento, por muita gente, do fato de que o sistema baseado no lucro privado está desmoronando. Sob estas circunstâncias, parece-me que não devemos pôr em primeiro plano o antagonismo entre os dois mundos, e sim devemos nos esforçar para combinar todos os movimentos construtivos, todas as forças construtivas, na medida do possível. Parece-me que estou mais à esquerda do que o senhor, pois considero que o mundo está mais próximo do fim do velho sistema.

— Stálin: Quando falo dos capitalistas que se esforçam somente em obter lucros, somente em tornarem-se ricos, não quero dizer que sejam os últimos dos homens, incapazes de mais nada. Muitos deles, inegavelmente, possuem grande talento de organização que nem penso negar. Nós, o povo soviético, temos aprendido muito com os capitalistas. E Morgan, a quem o senhor descreveu de maneira tão desfavorável, foi sem dúvida um bom organizador, capaz. Porém, se o senhor se refere a pessoas que estejam preparadas para reconstruir o mundo, não poderá, para começar, encontrá-las nas fileiras daqueles que servem fielmente a causa dos lucros. Eles e nós estamos em campos opostos. O senhor mencionou Ford. Certamente que ele é um eficiente organizador da produção. Mas conhece o senhor a atitude dele para com a classe operária? Sabe o senhor quantos operários ele põe na rua? O capitalista está preso aos lucros, e força alguma no mundo poderá separá-lo deles. O capitalismo será liquidado, não pelos "organizadores" da produção, não pela intelectualidade técnica, e sim pela classe operária, uma vez que aquelas camadas não desempenham um papel independente. O engenheiro, o organizador da produção, não trabalha como gostaria, mas como lhe ordenam, no sentido de servir aos interesses dos patrões. Há exceções, é claro; há pessoas nessa camada média que se libertaram do ópio capitalista. A intelectualidade técnica pode, sob certas condições, fazer "milagres" e beneficiar altamente a Humanidade. Porém, pode também fazer-lhe muito mal. Nós, o povo soviético, temos experiência, e não pouca, sobre a intelectualidade técnica. Depois da Revolução de Outubro, certa parte da intelectualidade técnica se recusou a participar do trabalho de construir uma nova sociedade. Opuseram-se a esse trabalho de construção e o sabotaram. Fizemos o possível para atrair a intelectualidade técnica a este trabalho de construção; experimentamos vários caminhos. Não se passou pouco tempo para que a nossa intelectualidade técnica acedesse em apoiar o novo sistema.

Hoje, a melhor parte da intelectualidade técnica está nas primeiras fileiras dos construtores da sociedade socialista. Com esta experiência, estamos longe de subestimar o lado bom e o lado mau da intelectualidade técnica, e sabemos que uma parte pode causar o mal e a outra pode realizar "milagres". Contudo, as coisas seriam diferentes se fosse possível, de um só golpe, arrancar espiritualmente a intelectualidade técnica do mundo capitalista. Mas isso é utopia. Haverá muitos técnicos que se atreveriam a se desprender do mundo burguês e pôr-se a trabalhar para reconstruir a sociedade? Pensa o senhor que há muita gente dessa classe, digamos na Inglaterra ou na França? Não, há poucos que se desprenderiam voluntariamente dos seus patrões e começariam a reconstruir o mundo.

Além disso, podemos perder de vista o fato de que, para transformar o mundo, é necessário ter-se o poder político? Parece-me, Senhor Wells, que o senhor subestima enormemente a questão do poder político, que fica excluída da sua concepção. Que podem fazer os que, ainda que com as melhores intenções do mundo, não estão em condições de traçar o problema da tomada do poder e não têm esse poder em suas mãos? Quando muito, poderão ajudar à classe que toma o poder, porém não podem mudar o mundo. Isso só o pode fazer uma grande classe que tome o lugar da classe capitalista e venha a ser senhor soberano, como esta o era. Tal classe é a classe operária. Certamente o apoio da intelectualidade técnica deve ser aceito, e essa intelectualidade, por sua vez, deve receber ajuda, mas não se pense que ela representa papel histórico independente. A transformação do mundo é processo complicado e doloroso. Para esta grande tarefa precisa-se de uma grande classe. Para viagens longas, grandes barcos.

— Wells: Sim, mas para uma longa viagem é preciso um capitão e um navegador.

— Stálin: E certo, porém o que se requer em primeiro lugar, para uma viagem longa, é um grande barco. Que é um navegante sem um grande barco? Um homem ocioso.

— Wells: O grande barco é a Humanidade, não uma classe.

— Stálin: O senhor parte da presunção de que todos os homens são bons. Eu, entretanto, não posso esquecer que há muitos homens perversos. Não creio na bondade da burguesia.

— Wells: Recordo-me da situação da intelectualidade técnica há várias décadas. Naquele tempo, era numericamente pequena, porém havia muito a fazer, e cada engenheiro, técnico ou intelectual, encontrava a sua oportunidade. Por isso era a classe menos revolucionária. Agora, entretanto, há excedente de intelectuais técnicos e a mentalidade deles mudou profundamente. Os técnicos, que antigamente não faziam caso da linguagem revolucionária, estão agora muito interessados nela. Assisti recentemente a um banquete da Royal Society (Sociedade Real), a nossa maior sociedade científica inglesa.

O discurso do Presidente foi um discurso a favor da planificação social e da gestão científica. Há trinta anos atrás, não se poderia ter escutado algo semelhante. Hoje o homem que preside a Royal Society mantém pontos de vista revolucionários e insiste na reorganização científica da sociedade humana. As mentalidades mudam. A vossa propaganda de luta de classes não leva em conta estes fatos.

— Stálin: Sim, eu sei disso, e isso se explica pelo fato de a sociedade capitalista se achar agora num beco sem saída. Os capitalistas estão procurando. porém não podem encontrar uma saída deste impasse que seja compatível com a dignidade da sua classe, com os interesses da sua classe.

Poderiam, até certo ponto. sair da crise arrastando-se nas quatro patas porém não encontrarão uma porta que lhes permita sair de cabeça erguida. uma porta que não altere fundamentalmente os interesses do capitalismo. Amplos círculos da intelectualidade técnica bem que se dão conta disso. Grande parte dela está começando a compreender a vinculação dos seus interesses aos interesses da classe capaz de sair desse impasse.

— Wells: Senhor Stálin, melhor do que ninguém o senhor sabe algo sobre as revoluções, no lado prático. As massas levantam-se? Não é uma verdade estabelecida que todas as revoluções são feitas pelas minorias?

— Stálin: Para levar-se a cabo uma revolução é necessário uma minoria revolucionária dirigente, porém a mais inteligente, apaixonada e enérgica minoria seria impotente se não contasse com o apoio. pelo menos passivo, de milhões.

— Wells: Pelo menos passivo? Talvez subconsciente?

— Stálin: Digamos semi-instintivo e semi-consciente, mas sem o apoio de milhões de homens a minoria mais capaz será impotente.

— Wells: Tenho observado a propaganda comunista no Ocidente, e parece-me que, nas condições atuais, tal propaganda soa muito fora de moda, por ser uma propaganda insurrecional. A propaganda a favor da derrubada violenta do sistema social soava bem quando dirigida contra as tiranias. Mas, nas atuais condições, quando o sistema se desmorona de todas as maneiras seria preciso dar mais destaque à eficiência, à competência, à produtividade, do que à insurreição. Parece-me que.o tom insurrecional é antiquado. Do ponto de vista das pessoas de mentalidade construtiva a propaganda comunista no Ocidente é um obstáculo.

— Stálin: Para começar, o velho sistema se desmorona, está em decadência. Isso é certo, Porém também é certo que novos esforços se fazem, por outros métodos, por todos os meios, para proteger, para salvar este sistema agonizante. O senhor tira conclusão errônea de premissa certa, O senhor estabelece, corretamente, que o velho mundo se afunda. Mas o senhor está enganado pensando que se afunda por si mesmo. Não. A substituição de um sistema social por outro é processo revolucionário complexo e de longo fôlego. Não é simplesmente um processo espontâneo, e sim uma luta, um processo relacionado com o choque entre as classes. O capitalismo está em decadência, porém não deve ser comparado simplesmente com uma árvore que haja apodrecido tanto que virá ao chão com seu próprio peso. Não, a revolução, a substituição de um sistema social por outro, foi sempre uma luta, luta cruel e dolorosa, luta de vida e de morte. E cada vez que os representantes do novo mundo chegam ao poder têm de se defender contra as tentativas do velho mundo de restaurar pela força a ordem antiga; os representantes do novo mundo têm sempre de estar alerta, de estar preparados para repelir os ataques do velho mundo contra o sistema novo.

Sim, o senhor tem razão quando diz que o velho sistema social desmorona, porém não desmorona por si mesmo. Veja o fascismo, por exemplo. O fascismo é uma força reacionária que tenta preservar, por meio da violência, o velho mundo. Que farão os senhores com os fascistas? Discutirão com eles? Tratarão de convencê-los? Isso não teria, absolutamente, nenhum efeito. Os comunistas não idealizam, em absoluto, os métodos violentos, não querem, porém, ser apanhados de surpresa; não podem esperar que o velho regime se retire da cena, espontaneamente; vêem que o velho sistema se defende violentamente, e, por isso, dizem à classe operária: Preparem-se para responder com violência à violência; façam todo o possível para impedir que a ordem agonizante os esmague, não permitam que lhes algemem as mãos, estas mesmas mãos que demolirão o sistema velho. Como o senhor vê, os comunistas consideram a substituição de um sistema social por outro, não simplesmente como processo pacífico e espontâneo, e sim como processo complicado, longo e violento. Os comunistas não podem ignorar os fatos.

— Wells: Contudo, observe o que se está passando no mundo capitalista. Não é um simples colapso; é o estouro da violência reacionária que está degenerando em gangsterismo. E parece-me que, quando se chega ao conflito com a violência reacionária e não inteligente, podem os socialistas apelar para a lei e, em vez de considerar a polícia um inimigo, devem apoiá-la na luta contra os reacionários. Penso ser inútil trabalhar simplesmente com os rígidos métodos da insurreição do velho socialismo.

— Stálin: Os comunistas se baseiam na rica experiência histórica, a qual ensina que as classes caducas não abandonam voluntariamente o cenário histórico. Lembre-se da história da Inglaterra no século XVII. Não eram numerosos os que diziam que o velho sistema social estava apodrecido? Entretanto não foi necessário um Cromwell para esmagá-lo pela força?

— Wells: Cromwell agiu baseado na Constituição e em nome da ordem constitucional.

— Stálin: Em nome da Constituição recorreu à violência, decapitou o Rei, dissolveu o Parlamento, prendeu uns e decapitou outros!

Tome também o exemplo da nossa história. Não foi evidente, durante muito tempo, que o regime tzarista estava decaindo, que estava desmoronando? Mas, quanto sangue se teve de derramar para abatê-lo!

E a Revolução de Outubro? Eram pouco numerosas as pessoas que sabiam que nós, os bolcheviques, éramos os únicos a apontar o caminho certo? Não estava claro que o capitalismo russo achava-se em decadência? Contudo, o senhor sabe quão grande foi a resistência, quanto sangue se teve de derramar para defender a Revolução de Outubro de todos os seus inimigos internos e externos?

Ou tome a França do fim do século XVIII. Muito antes de 1789, era evidente a podridão do Poder Real, do feudalismo. Porém não se pôde evitar uma rebelião popular, um choque de classes. Por quê? Por que as classes que devem abandonar o cenário da história são as últimas a se convencerem de que seu papel terminou. É impossível convencê-las disso. Pensam que as fendas do decadente edifício da ordem antiga podem ser remendadas, que o vacilante edifício da ordem antiga pode ser restaurado e salvo. É por isso que as classes agonizantes tomam as armas e recorrem a todos os meios para salvar sua existência de classe dominante.

— Wells: Mas havia bastante advogados à frente da grande Revolução francesa.

— Stálin: Nega o senhor o papel da intelectualidade nos movimento revolucionários? Foi a grande Revolução francesa uma revolução de advogados, e não uma revolução popular, que alcançou a vitória levantando grandes massas do povo contra o feudalismo convertendo-s em chefes do Terceiro Estado? E por acaso atuaram os advogados existentes entre os líderes da grande Revolução francesa de acordo com as leis da ordem antiga? Não instituíram uma legalidade nova, a legalidade revolucionária burguesa?

A rica experiência da história ensina que até hoje nenhuma classe cedeu voluntariamente o lugar a outra. Não há tal precedente na história mundial. Os comunistas assimilaram essa experiência histórica. Os comunistas aplaudiriam a retirada voluntária da burguesia.

Mas tal processo é improvável, eis o que ensina a experiência. Por isso é que os comunistas querem estar preparados para o pior e concitam a classe operária a ser vigilante, a estar preparada para o combate. Quem deseja um capitão que se descuide da vigilância do seu exército, um capitão que não compreenda que o inimigo não se renderá, que deve ser esmagado? Tal capitão enganaria, trairia a classe operária. Por isso penso que o que ao senhor parece antiquado é, de fato, método revolucionário oportuno para a classe operária.

— Wells: Não nego que se tenha de empregar a força, porém penso que as formas de luta devem adaptar-se o mais estreitamente possível às oportunidades que oferecem as leis existentes, que devem ser defendidas dos ataques dos reacionários. Não há necessidade de desorganizar-se o velho sistema porque ele está se desorganizando, e bastante. Assim, parece-me que a rebelião contra a ordem, contra a lei, é coisa antiquada, fora de moda. Incidentalmente, exagerei de propósito, para apresentar mais claramente a verdade.

Posso formular o meu ponto de vista da seguinte maneira: primeiro, sou pela ordem; segundo, ataco o sistema atual naquilo em que não possa garantir a ordem; terceiro, penso que a propaganda das idéias da luta de classes é capaz de isolar do socialismo as pessoas instruídas de que ele necessita.

— Stálin: Para atingir um grande objetivo, um objetivo social importante, é necessário uma força principal, um baluarte, uma classe revolucionária. Depois, é necessário organizar-se a ajuda de uma força auxiliar para essa força principal; nesse caso, a força auxiliar é o Partido, ao qual pertencem as melhores forças da intelectualidade. Agora, o senhor fala de "círculos instruídos". Porém, que pessoas instruídas tem o senhor em mente? Não havia muitos homens instruídos ao lado da ordem antiga na Inglaterra do século XVII, na França em fins do século XVIII e na Rússia à época da Revolução de Outubro? A ordem antiga tinha a seu serviço muita gente de instrução elevada que defendeu tal estado de coisas, que se opôs à ordem nova. A educação é arma cujo efeito é determinado pelas mãos que a esgrimem. Está claro que o proletariado, o socialismo, necessita de gente altamente instruída, pois é evidente que não são os simplórios que poderão ajudar o proletariado a lutar pelo socialismo, a construir a nova sociedade. Eu não subestimo o papel da intelectualidade, ao contrário, reforço-o. A questão, entretanto, é sobre que espécie de intelectualidade estamos discutindo, porque há diversos tipos de intelectuais.

— Wells: Não pode haver revolução sem mudança radical no sistema de instrução pública. Basta assinalar dois exemplos: o da República alemã, que deixou intacto o velho sistema educacional e, por isso, nunca chegou a ser uma República; e o Partido Trabalhista britânico, a quem falta coragem para insistir na mudança radical do sistema de educação.

— Stálin: Essa é uma observação acertada. Permita-me agora rebater os seus três pontos de vista.

Primeiro: O principal para a revolução é a existência de um apoio social. Esse apoio é a classe operária.

Segundo: É indispensável uma força auxiliar a que os comunistas chamam Partido. Nele se incluem os trabalhadores intelectuais e os elementos da intelectualidade técnica que estão estreitamente vinculados à classe operária. A intelectualidade somente pode ser forte se se une à classe operária. Se se opõe a ela, anula-se.

Terceiro: E preciso o poder político como alavanca, para se conseguir as mudanças. O novo poder político cria uma legalidade nova, uma nova ordem, que é a ordem revolucionária. Eu não sou por qualquer ordem. Sou pela ordem que corresponda aos interesses da classe operária. Entretanto, se algumas leis do antigo regime podem ser utilizadas em benefício da luta pela ordem nova, tais leis devem também ser empregadas. Não posso opor-me à sua tese de que é preciso atacar o sistema existente quando ele não assegurar a ordem necessária ao povo.

E, finalmente, o senhor se equivoca ao pensar que os comunistas têm sede de violência. Ficariam muito satisfeitos suprimindo os métodos violentos se a classe dominante consentisse em ceder o lugar à classe operária. Porém, a experiência da história fala contra tal suposição.

— Wells: Há na história da Inglaterra, entretanto, o caso de uma classe que entregou voluntariamente o poder a outra classe. No período de 1830 a 1870, a aristocracia - cuja influência era ainda considerável no fim do século XVIII - cedeu o poder voluntariamente, sem luta séria, à burguesia, que serve como apoio sentimental à monarquia. Conseqüentemente, esta transferência do poder conduziu ao estabelecimento do domínio da oligarquia financeira.

— Stálin: Porém, o senhor passou, imperceptivelmente, do problema da revolução ao problema das reformas. Não é a mesma coisa. Não crê que o movimento cartista representou o grande papel nas reformas da Inglaterra no século XIX?

— Wells: Os cartistas pouco fizeram e desapareceram sem deixar rastro.

— Stálin: Não concordo com o senhor; os cartistas e o movimento grevista por eles organizado representaram grande papel; obrigaram as classes dominantes a fazer uma série de concessões no domínio do sistema eleitoral, na esfera da liquidação do que se chamava os "burgos podres", na realização de certos pontos da "Carta". O cartismo representou papel histórico não pouco importante e incitou uma parte da classe dominante a fazer certas concessões, certas reformas, para evitar grandes choques. Em geral, deve-se dizer que de todas as classes dominantes, as classes dominantes da Inglaterra, a aristocracia e a burguesia, demonstraram ser mais inteligentes, mais flexíveis do ponto de vista de seus interesses de classe, do ponto de vista da manutenção do poder. Tome como exemplo, digamos, da história moderna, a greve geral da Inglaterra em 1926. A primeira coisa que qualquer outra burguesia teria feito para enfrentar a situação, quando o Conselho Geral dos Sindicatos chamou à greve, seria a de encarcerarem os dirigentes dos sindicatos. A burguesia britânica tal não fez e agiu habilmente, segundo seus próprios interesses. Não posso conceber que a burguesia dos Estados Unidos, da Alemanha ou da França empregue estratégia tão flexível. Para manter predomínio, as classes dominantes da Grã-Bretanha não se têm negado nunca a fazer pequenas concessões, reformas. Mas seria erro pensar-se que estas reformas representam a revolução.

— Wells: O senhor tem uma opinião mais elevada das classes dominantes do meu país do que eu mesmo. Porém, há grande diferença entre uma pequena revolução e uma grande reforma? Não é uma reforma uma pequena revolução?

— Stálin: Obedecendo à pressão de baixo, à pressão das massas, pode a burguesia conceder, algumas vezes, certas reformas parciais, enquanto permanecem inalteráveis as bases do sistema social-econômico existente. Agindo dessa maneira, calcula que tais concessões são necessárias para preservar o seu predomínio de classe. Esta, a essência da reforma. A revolução, entretanto, significa a transferência de poder de uma classe para a outra. Por isso é impossível descrever qualquer reforma como uma revolução. Por isso é que não podemos contar com mudanças nos sistemas sociais que se operem como transição imperceptível de um sistema para o outro por meio de reformas, por concessões da classe dominante.

— Wells: Fico-lhe grato por essa conversa que muito significou para mim. Ao dar-me esta explicação, o senhor se recordou, provavelmente, de como explicava os fundamentos do socialismo, nos círculos ilegais, antes da Revolução. Atualmente, há no mundo apenas duas pessoas cuja opinião, cada palavra, é ouvida por milhões: o senhor e Roosevelt.

Outros poderão pregar tudo que lhes agrade; o que disserem nunca será escrito ou escutado. Ainda não pude apreciar que os senhores fizeram no país; cheguei ontem. Porém já vi os rostos felizes de homens e mulheres saudáveis, e sei que algo de considerável está- se fazendo aqui. O contraste com 1920 é assombroso.

— Stálin: Muito mais teríamos feito nós, bolcheviques, se fôssemos mais capazes.

— Wells: Não, se em geral os seres humanos fossem mais inteligentes. Seria uma grande coisa inventar um plano qüinqüenal para a reconstrução do cérebro humano que, evidentemente, carece de muitas coisas necessárias para uma ordem social perfeita. (Risos)

— Stálin: O senhor não vai ficar para assistir ao Congresso da União de Escritores Soviéticos?

— Wells: Infelizmente, não. Tenho vários compromissos e só poderei demorar uma semana na União Soviética. Vim vê-lo, e estou muito satisfeito com a nossa entrevista. Porém, tenho intenção de falar com os escritores soviéticos, para ver se consigo que se filiem ao P.E.N. Club. Esta é uma organização internacional de escritores fundada por Galsworthy. Depois da morte dele, o sucedi como presidente. A organização ainda é débil, mas tem seções em numerosos países e, o que é mais importante, as intervenções dos seus membros são amplamente comentadas na imprensa. Essa organização defende o direito da livre expressão de todas as opiniões, nelas compreendidas as de oposição. Espero poder discutir este ponto com Gorki. Não sei se uma tão ampla liberdade pode ser permitida aqui.

— Stálin: Nós, os bolcheviques, chamamos a isso "auto-crítica". É amplamente usada na U.R.S.S. Se há algo que eu possa fazer para ajudá-lo, fa-lo-ei com muito prazer.

— Wells: Muito agradecido.

— Stálin: Agradeço pela entrevista.

AQUI, a versão em inglês.

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segunda-feira, 24 de junho de 2013

Noam Chomsky, uma entrevista

(9/12/1996) Anos 60, tempo de paz, amor e uma revolução de costumes. Como contraste, o confronto entre Estados Unidos e União Soviética na Baía dos Porcos em Cuba, a Guerra do Vietnã. E é nesse cenário que, no início da década, sai do anonimato o lingüista Noam Chomsky e, com ele, a teoria de uma gramática universal, já presente no código genético, que ordena a fala do ser humano, relegando a língua a uma mera questão cultural. A idéia provoca um rebuliço na comunidade científica. A polêmica incentiva Noam Chomsky a expor sua visão política, suas críticas contra a Guerra do Vietnã chamam a atenção. Começava aí, um caminho sem volta contra qualquer modelo de poder, do comunismo ao liberalismo totalitário norte-americano. Outro alvo de ataque é a mídia de massa. Chomsky trata as grandes redes de comunicação como veículos manipuladores a serviço de quem ele considera os verdadeiros donos de governos e nações, os grandes conglomerados multinacionais.

Decifrar a história por trás da mídia é um dos passatempos favoritos desse anarquista confesso. Em Repensando Camelot, um de seus mais de 50 livros, o filósofo estarrece os leitores com uma interpretação reveladora, arranca a máscara pacifista do ex-presidente John Kennedy e apresenta JFK como um dos mentores da invasão de Cuba e articulador da guerra contra o Vietnã e dos golpes no Chile e no Brasil. Chomsky é filho de judeus; o interesse pela lingüística herdou do pai, um erudito em hebraico. Aos 32 anos, Chomsky se tornou catedrático do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, um dos mais prestigiados centros de pesquisas do mundo. Hoje, aos 68 anos, é considerado um dos maiores intelectuais de esquerda e um crítico ferrenho das atuais políticas interna e externa dos Estados Unidos. Mesmo de origem judaica, é uma voz dissonante ao atacar a política israelense e se posicionar em favor de um estado palestino. A perspectiva de Chomsky para a virada do século é um balde de água fria nos apóstolos da globalização. Para ele, a eliminação das culturas regionais e a interferência de instrumentos de poder, como o FMI [Fundo Monetário Internacional], o Banco Mundial e o Nafta [Tratado Norte-Americano de Livre Comércio], funcionarão como geradores de pobreza, aumentando os problemas de distribuição de renda em favor das elites. 

Matinas Suzuki: Para entrevistar o pensador Noam Chomsky, nós convidamos Alberto Dines, do Laboratório de Estudos Avançados de Jornalismo da Unicamp; o Ibsen Costa Manso, que é secretário assistente do Jornal da Tarde; o jornalista Sérgio Augusto, dos jornais O Globo e O Estado de S. Paulo; Daniel Piza, editor de cultura da Gazeta Mercantil; Breno Altman, diretor de redação da revista Atenção; o Emir Sader, que é cientista político, e o Ibsen Spartacus, diretor editorial da Nova Cultural. Boa noite, professor Noam Chomsky. Eu gostaria de começar este programa do início, ou seja, o senhor ficou conhecido no início como um estudioso dos fenômenos da linguagem, e a partir de um certo momento, passou também a fazer uma intervenção política. A partir de quando o senhor sentiu necessidade de interferir na questão política?
Noam Chomsky: Bem, meu primeiro artigo político escrevi quando eu tinha 10 anos, no jornal da escola, depois da queda de Barcelona. Estava muito interessado na guerra civil espanhola e envolvido, àquela altura, com grupos de esquerda, preocupados com a difusão do fascismo na Europa, seja lá como um garoto de 10 anos possa entender isso. E as coisas não mudaram muito desde então. Então, não é primeiro lingüística e depois política. Foi muito antes de saber que existia algo chamado lingüística ou o estudo da língua.
Emir Sader: Professor Chomsky, terminada a chamada Guerra Fria e os conflitos entre Estados Unidos e União Soviética, segundo o professor Samuel Huntington, a dinâmica dos conflitos contemporâneos se daria no nível das civilizações, no nível das culturas [e não no plano ideológico ou econômico]; na verdade, a cultura ocidental contra o resto das culturas. É um artigo famoso, seguiu a trajetória do [Francis] Fukuyama, primeiro artigo da Foreign Affairs [revista científica norte-americana sobre relações internacionais], depois um livro [O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial, livro originalmente publicado em 1996 – no Brasil saiu em 1997– em que expande a tese defendida anos antes]; segundo [Henry] Kissinger [ex-secretário de Estado e ex-conselheiro de Segurança Nacional dos EUA], é o livro mais importante, desde o começo da Guerra Fria. Queria saber que opinião o senhor tem a respeito dessa concepção?
Noam Chomsky: Não tenho muita consideração pela maior parte do trabalho de intelectuais respeitados, admito. Eles têm uma função a cumprir, que é fazer as coisas parecerem complicadas e apresentar uma imagem do mundo que sirva a seus interessas de poder, e o fim da história foi declarado, pelo menos meia dúzia de vezes, nos últimos 130 anos, sempre da forma errada. Acho que a Guerra Fria foi seriamente mal interpretada. Do meu ponto de vista, foi uma fase do conflito Norte-Sul, um eufemismo para a conquista européia do mundo. A Europa Oriental era o Terceiro Mundo original desde o século XV, até quando começou a andar em direção à independência em 1917. E evocou a mesma reação que o extremo oposto, Granada, que começou a estabelecer cooperativas de pesca. A escala é radicalmente diferente, mas é a estrutura básica que está dentro desse molde e as coisas continuam. O que o professor Huntington chama de conflito de civilizações tem ocorrido há séculos e ocorre do mesmo modo de hoje. A idéia dele de que os Estados Unidos são os líderes do Ocidente se confrontados com a civilização islâmica, não faz sentido. Um dos mais próximos aliados dos EUA é talvez o país mais fundamentalista islâmico do mundo, a Arábia Saudita, e isso pode mudar amanhã se houver uma revolução na Arábia Saudita. A dinâmica e os processos são iguais aos de antes. Na verdade, chama a atenção, no caso dos Estados Unidos que, desde 1970, todas as intervenções americanas, principalmente desde 1945, foram justificadas como ligadas ao perigo soviético. Mas o que aconteceu antes da Guerra Fria, que na verdade começou em 1917, bem antes de [Thomas] Woodrow Wilson [1856-1924) presidente dos Estados Unidos pelo Partido Democrata por duas vezes seguidas, ficando no cargo de 1912 a 1921] invadir o Haiti e a República Dominicana. Isso não foi para defender-se da União Soviética, mas sim para se defender dos hunos [um dos povos bárbaros mais violentos e ávidos por guerras e pilhagens, eram nômades e provenientes da região da Mongólia, na Ásia]. Antes disso, foi para defender-se de outros. Considerando o desenvolvimento da marinha americana, há 110 anos, foi para defender-se do Chile. Navios de guerra americanos estavam nas costas do Chile. Logo depois da queda do Muro de Berlim, o que aconteceu? Poucas semanas depois, os Estados Unidos invadiram o Panamá. Foi algo tão convencional, que nem chega a nota de rodapé na história. A única diferença entre essa e outras intervenções, por muitos anos, foi a falta de pretextos. Não podia ser para defender-se da União Soviética. Então era contra os narcotraficantes hispânicos. Da próxima vez, será outra coisa. Olhando os conflitos que existem pelo mundo, a maioria já existe há muito tempo. Os únicos novos ocorrem dentro do império soviético desmoronado. Chechênia [Em 1991, a Chechênia declarou independência da Rússia, mas o ex-presidente russo Boris Yeltsin se opôs e, em 1994, enviou tropas à região, para restaurar a autoridade de Moscou. Em 1996, as forças russas foram derrotados pelas tropas chechenas, mas, apesar disso, a Rússia não reconheceu sua independência], isso é novo, mas é o resultado da queda de qualquer sistema imperial. Quando o império português desmoronou, havia, de fato, grandes conflitos ocorrendo no sistema colonial português: Angola, Moçambique, Timor, no sudeste asiático. Quando os sistemas britânico e francês desmoronaram, houve grandes massacres, chacinas e conflitos. Alguns ainda continuam. Os da África Central, no momento, são resíduos do imperialismo belga, alemão e francês. Há sempre coisas novas acontecendo, mas a dinâmica fundamental não muda substancialmente, na verdade, por muito tempo.
Alberto Dines: Professor Chomsky, aproveitando a sua biografia, já que estamos no início do programa, o senhor foi educado numa família de forte tradição cultural, pelo menos judaica, uma família, inclusive, progressista, onde as notícias da guerra de Espanha chegavam, entravam dentro de casa. Como é que o senhor vê dois problemas ligados a sua formação? Um: no próximo ano, nós vamos ter o 1º século de existência do sionismo [movimento religioso e político, originado no século 19, que pregava o restabelecimento, na Palestina, de um Estado judaico] político. Qual o futuro que vê para o Estado de Israel? E qual o futuro que vê para o judaísmo na diáspora: religião, cultura apenas, uma idéia moral e ética? Eu queria que o senhor elaborasse um pouco sobre essas duas questões.
Noam Chomsky: Meus pais foram da primeira geração de imigrantes da Europa Oriental e, profundamente envolvidos na comunidade judaica, viviam num gueto cultural. Ao mesmo tempo, eram liberais do new deal [depois da grave crise finaneceira pela qual passaram os Estados Unidos em 1929, o então presidente Roosevelt, inspirado nas idéias do economista inglês John Maynard Keynes, lançou um conjunto de medidas econômicas pelas quais o Estado aumentava sua participação na economia, criando uma demanda que, para ser atendida, mobilizava setores da economia paralisados pela crise], de [Franklin Delano] Roosevelt [(1882-1945) presidente dos Estados Unidos entre 1933 e 1945]. Essa era a política basicamente. Outras partes da família, com as quais eu era ligado desde cedo, eram da classe trabalhadora, na maioria desempregados. Era o final dos anos 30, havia uma cultura intelectual rica e animada na época, uma cultura muito elevada, debates sobre psicanálise, [Karl] Marx [(1818-1883), teórico do socialismo e revolucionário alemão, autor, entre outras obras, de O capital, sua obra-prima e referência para as gerações posteriores de sociólogos e economistas] e Quarteto de cordas de Budapeste e assim por diante. Muitos quase não tinham educação, mas uma rica tradição cultural da qual eu fazia parte. É uma mistura de envolvimento judeu muito forte a minha vida toda. Na época, eu era o que se chamava de sionista [que defende o direito do povo judeu à autodeterminação e à criação de um Estado judaico]. Na verdade a maior parte do meu ativismo na adolescência foi sionista, mas em oposição a um Estado judeu, pois isso fazia parte do movimento sionista na época. Havia muitas ilusões sobre isso. O primeiro compromisso dos sionistas com um Estado judeu foi em 1942 nos Estados Unidos. Antes disso, incluía fortes tendências binacionalistas, mesmo incluindo a liderança de David Ben-Gurion e outros. Eu fazia parte da ala socialista radical, que era ligada à cooperação dos trabalhadores árabe-judeus. Talvez tenha sido uma ilusão ou foi real – pode-se debater isso–, mas o compromisso era esse e eu fiquei. Vivi em um kibutz por algum tempo, em Israel, e podia ter ficado lá, mas voltei. Mas, quanto ao futuro do sionismo, ele mudou. Em 1948 o sionismo político se tornou o sionismo de modo que as tendências anti-Estado foram absorvidas pelo Estado e, daquela época em diante, é apenas um outro Estado no sistema internacional comportando-se como qualquer outro Estado. Principalmente depois de 1967, com as conquistas, tornou-se um apêndice dos Estados Unidos. Então agora é o 51º estado, o que não é muito preciso, porque recebe muito mais subsídios federais do que qualquer outro dos 50 estados originais. Assim sendo é um posto avançado do poder dos EUA e dentro de um arranjo complicado, Israel tornou-se parte do... Os Estados Unidos tomaram da Inglaterra a dominação do Oriente Médio em 1945, como assumiram o domínio da América do Sul. Parte do sistema constitui um tipo de gendarmes [guardas] locais ou, como o secretário da Defesa os chamou, de “policial local de ronda”. A sede da polícia fica em Washington, Israel é uma delas. Faz parte de um imenso sistema que se estende do Pacífico até os Açores que visa o Oriente Médio, controlando o petróleo, o sistema do petróleo.
Alberto Dines: O futuro do judaísmo?
Noam Chomsky: O futuro? O futuro das pessoas está em suas próprias mãos. Não dá para prever coisas como o curso da civilização. Mesmo Israel está rigorosamente dividido de muitos modos. Quase metade da população é de países árabes, metade da Europa. Há uma divisão nítida de linhas religiosas, quase uma guerra civil. Lendo a imprensa israelense, como faço regularmente, pode-se ler na imprensa principal, avisos sobre perigos de um golpe militar com elementos religiosos nos meios oficiais. Muitos estão preocupados com isso. As últimas eleições mostraram uma nítida divisão cultural e é difícil prever o que virá. Nas diásporas, por exemplo, nos EUA, que conheço melhor, há um nível alto de assimilação, mas, ao mesmo tempo, há uma volta a algo como uma versão ficcionalizada dos séculos XVII e XVIII na Europa Oriental que está influenciando centenas de milhares de pessoas. Os negócios humanos são complicados, eu não tentaria prever [risos].
Breno Altman: Professor Chomsky, as opiniões sobre globalização e nova ordem majoritariamente têm se dividido em dois tipos: os eufóricos, que vibram com esse novo modelo de desenvolvimento dos países, e os conformados, que criticam esse modelo, mas o consideram inevitável. Na sua opinião, o senhor, que é um dos grandes críticos da globalização, há alternativa para os povos fora desse caminho? Há possibilidade de um outro modelo de organização da sociedade em resposta à globalização? Como no passado, por exemplo, houve modelos de uma sociedade não-capitalista, algum modelo alternativo à globalização e à nova ordem mundial?
Noam Chomsky: Primeiro, a globalização em si não é boa nem má, depende de que forma de globalização se trata. Se for do tipo que une as pessoas ao redor do mundo, é maravilhosa, sou a favor. O tipo de globalização que transfere o poder para as mãos do que a imprensa mercantil chama de governo “de fato” do mundo, das instituições financeiras internacionais que representam corporações transnacionais e seus afiliados locais, isso é ruim, é prejudicial para todas as pessoas do mundo. A questão é: que forma assume a globalização? Incidentalmente, quanto à inevitabilidade da globalização, deve-se cuidar de distinguir doutrina de realidade, medir fluxos de negócios, investimentos etc. O nível de globalização no mundo não é tão dramaticamente diferente do que foi no passado. Há diferenças, mas não dramáticas, nem em escala, e a maioria das interações é interna para os países ricamente desenvolvidos. Então, a maior parte, 75%, dentro da Europa, Japão e Estados Unidos. E a forma que toma depende do que as pessoas fazem com isso. Pode-se ter uma forma muito construtiva de globalização, na qual existam intercâmbios culturais e econômicos, ligações vitais se desenvolvendo entre as pessoas ou pode-se ter um tipo que transformará o mundo em uma espécie de Brasil. O Brasil é um caso extremo com dois países radicalmente diferentes, um pequeno e rico que faz parte da elite internacional e outro país enorme que é como a África Central. O mundo poderia se transformar nisso. Com efeito, está acontecendo nos Estados Unidos e na Inglaterra e em menores extensões em outras partes nesse momento. Mas esses são assuntos que estão sob controle, não há nada de inevitável neles. Não são leis da natureza. São decisões em instituições humanas que podem ser mudadas como todas as outras. Que tipo de mundo poderá ser? De maior liberdade e justiça. Tenho meu próprio ponto de vista de como deveria ser, penso como um anarquista à moda antiga, como era aos 10 anos.  Acho que a ordem mundial deve ser baseada em associação mútua e voluntária onde quer que as pessoas estejam juntas, ou seja, controle do trabalhador no local de trabalho, controle da comunidade, associações voluntárias, arranjos federais entre atravessar fronteiras facilmente, não há nada de especial nelas. Acho que é totalmente viável um mundo assim, mas isso significa eliminar concentrações de poder. E, no momento, o poder está concentrado, a democracia está declinando e isso é algo contra o qual devemos lutar, pois não é inevitável. E não é uma lei da história. Olhando a história, houve de tudo: houve vitórias da liberdade, houve expansões de democracia, houve contrações.  Estamos num período de contração, mas isso mudará, como mudou antes.
Matinas Suzuki: Professor Chomsky, mas o que o senhor pensa do marxismo? O marxismo ainda tem alguma contribuição a dar para essas novas transformações que o senhor está afirmando?
Noam Chomsky: Acho complicado o conceito de marxismo. Na física, por exemplo, não existe “einsteinismo”, porque [Albert] Einstein [físico alemão (1879-1955) que alterou as perspectivas teóricas e práticas de sua disciplina, formulando a partir do trabalho de outros pesquisadores a teoria da relatividade e explicando o efeito foto-elétrico, pelo qual recebeu o prêmio Nobel de física de 1921] não é um deus que se adore, mas um ser humano que tinha coisas importantes a dizer e, como qualquer ser humano, cometeu erros [por exemplo, entre  1927 e 1930 Einstein tentou mostrar que a teoria quântica era incorreta e lançou uma série de paradoxos, que Niels Bohr resolveu, mostrando que os experimentos propostos não violavam o princípio da incerteza. Depois disso, Einstein teve de aceitar que a mecânica quântica era ao menos consistente]. Você aprende o que ele disse e desconsidera seus erros. O conceito de marxismo, na minha opinião, pertence à história da religião organizada. É um tipo de adoração de um indivíduo que não faz sentido. Quanto ao próprio Marx e outros da mesma tradição, aprende-se o que tem valor e descarta-se o que é errado. Depois é só observar. Quanto ao socialismo, por exemplo, Marx não tinha quase nada a dizer. Não sou um grande especialista em Marx, mas pelo que eu entendo – e li bastante – há apenas algumas menções de Marx ao socialismo. Ele é um teórico do capitalismo, era um teórico basicamente do capitalismo do século XIX. É perfeitamente natural. Ele desenvolveu uma espécie de modelo abstrato do sistema capitalista e suas propriedades, do qual temos muito a aprender. Uma pessoa pode ler e aprender disso tanto quanto aprendemos de outros, mas presumir que isso ofereça uma doutrina para hoje não faz sentido. Não consigo imaginar que Marx acreditasse nisso. Ele também escreveu coisas importantes sobre assuntos contemporâneos, como os ingleses na Índia. Certamente vale a pena ler, mas, se estivéssemos repetindo isso ainda agora, a civilização estaria morta. Tínhamos que aprender algo nos últimos 100 anos. Existem, sim, contribuições, como há no resto de nossa tradição cultural. Aprender deles o que é importante e descartar o que não é útil...
Ibsem Spartacus: Professor, eu queria saber como o senhor avalia a possibilidade de fortalecimento político internacional de países como China, Índia e Brasil, se o crescimento econômico, que tem sido registrado nesses países, poderia, de alguma forma, ameaçar a nova ordem mundial?
Noam Chomsky: Primeiramente, acho que devemos ter cuidado quando nos referimos a um país como a Índia, a China ou o Brasil, por exemplo. Devemos reconhecer que existe um grande nível de abstração. O Brasil não é uma entidade de ordem internacional, nem a Índia. Na Índia há um setor em desenvolvimento e um grande setor que... ou está estagnado ou provavelmente declinando. Estive lá há pouco tempo e vi os dois lados. Ao se falar de crescimento na Índia, de novo, cuidado. Quando as reformas neoliberais foram instituídas na Índia, houve, como sempre, um grande declínio e colapso. Isso é comum. Depois uma recuperação do colapso. O Wall Street Journal [jornal publicado na cidade de Nova Iorque] fala do crescimento maravilhoso, mas partem do período de recuperação. Voltem 10 anos e verão que, nesse período, o crescimento foi menor do que foi antes, mas é altamente concentrado e também multinacional. A Índia se abriu para penetrações estrangeiras, principalmente de empresas americanas. E foi interessante a forma como o fizeram. Primeiro, tomaram conta da indústria de propaganda. Vê-se a propaganda de bens estrangeiros, com o propósito de podar a indústria doméstica e tornar as pessoas dependentes de produtos estrangeiros. Há setores da sociedade indiana que se beneficiam com isso, vivendo muito melhor do que antes. Há outros setores que estão sofrendo. O mesmo ocorre na China. Ela está bem nitidamente dividida. Partes da China estão se desenvolvendo e outras estão devastadas. Tanto que estudiosos chineses temem a possibilidade de voltar para as guerras camponesas do passado. Observando coisas como a taxa de mortalidade, vê-se que o sistema de saúde em geral melhorou, se desenvolveu muito. Por volta de 1979, começou a se estabilizar e, nas mais recentes estatísticas, está em pleno declínio, isso paralelamente ao grande crescimento. E os yuppies [derivação da sigla YUP, expressão inglesa que significa "young urban professional", ou seja, jovem profissional urbano, e descreve um conjunto de atributos e traços de comportamento de jovens profissionais entre 20 e 40 anos, que vieram a constituir um estereótipo que se acredita ser comum nos EUA. Os yuppies, em geral, têm pouco tempo de formados em universidades, trabalham em suas profissões de formação e seguem as últimas tendências da moda] que aparecem na CNN [sigla de Cable News Network, rede de televisão norte-americana pertencente ao grupo Time Warner especializada na transmissão de notícias vinte e quatro horas por dia]... são duas Chinas diferentes. Como isso vai afetar a nova ordem mundial? Depende de qual será ela. Se a ordem mundial for dirigida por elites transnacionais em seu próprio interesse, com a maioria da população marginalizada, vai estar tudo bem. Se for uma ordem mundial baseada em democracia popular, liberdade e justiça, vai romper as estruturas que estão em desenvolvimento na China e na Índia, como vai romper as estruturas que ocorrem no Brasil.
Ibsem Spartacus: Mas essas elites locais não poderão vir a se associar de uma maneira a intercambiarem produtos, serviços e de protegerem seus mercados, porque são grandes mercados e podem vir a interessar uns aos outros, a algum desses países entre si. Isso não pode ser uma proteção contra o que seria essa elite internacional, basicamente que seria o Norte?
Noam Chomsky: A mesma estrutura. O que é o Nafta, o Acordo de Livre Comércio da América do Norte? É um acordo altamente protecionista, instituído pelos EUA e elites associadas no México e Canadá, dirigido contra as populações de seus próprios países, os três, e também contra Europa e Japão. Quanto aos tratados do Nafta, cerca de 10% deles consistem em exigências quanto à origem, o que quer dizer que alta porcentagem de produção da área norte-americana deva ser exportada. É só uma arma protecionista contra Europa e Japão. Os EUA gostariam de incorporar parte da América do Sul dentro de um bloco protecionista de comércio. A Ásia Oriental tem interesse em fazer a mesma coisa, a Europa está fazendo a mesma coisa. Por outro lado, eles não estão só em guerra. As ligações entre as empresas internacionais na Europa, Japão, nos EUA como também em áreas da Ásia Oriental e no Brasil, são elos muito fortes, são transnacionais. Então, há muitas coisas complicadas acontecendo ao mesmo tempo, mas a maior tendência agora é em direção à transferência de poder para tiranias particulares e longe dos temores públicos. Isso é perigoso. Está acontecendo em certos países, em níveis diferentes, está acontecendo internacionalmente e acho que será muito prejudicial para valores que devemos partilhar, como a democracia por exemplo...
Ibsen Costa Manso: Professor, eu queria voltar um pouco ao passado, na linha do que o professor Sader estava dizendo. Após a Guerra Fria, houve uma mudança na política externa americana no sentido de não mais temer o inimigo interno. E, por outro lado, criou-se, principalmente nos militares – e o Brasil foi usado como uma espécie de laboratório na questão da segurança nacional–... ou seja, a volta para dentro do país. O senhor teve acesso a documentos secretos no governo americano que contam um pouco desse nosso período aqui no Brasil. Como é que o senhor analisa esse período, que informações o senhor tem sobre isso?
Noam Chomsky: Há muitos documentos. Os EUA são uma sociedade bem aberta e uma das coisas boas nela é que se tem bom acesso aos planos secretos. Talvez uns 30 anos atrás, mas às vezes até bem recentemente. Não acho que a política externa dos EUA tenha mudado muito depois da Guerra Fria. Vejamos, por exemplo, o Oriente Médio, Cuba, Panamá, é tudo igual, nada muda muito. Algumas mudanças, mas a política não foi guiada por medo da União Soviética. Isso foi um pretexto. Vê-se claramente pelo fato de que as políticas continuam sob diferentes pretextos. No caso de Cuba, por 30 anos, o pretexto foi o perigo da União Soviética depois da Guerra Fria, o que aconteceu? As políticas endurecem. Agora, de repente, os Estados Unidos amam a democracia. Logo será outro pretexto. Acho que a política não mudou. Com relação ao Brasil, conhecemos bem a ficha. No final dos anos 50, a administração [Dwight David] Eisenhower [(1890-1969) presidente dos Estados Unidos entre 1953 e 1961 e comandante supremo das forças aliadas durante a Segunda Guerra Mundial] começou a propor o fortalecimento militar da América Latina e uma troca da missão militar, determinada, em grande parte, pelos EUA. Propunha uma mudança que não pôde ser instituída na época, o Congresso não a aceitou. Mas foi aceita, no governo Kennedy, em 1962. A administração Kennedy mudou a missão militar da América Latina para defesa hemisférica, que é algo da Segunda Guerra, que era chamado de segurança interna, que é um termo técnico que significa guerra contra as suas próprias populações. E o golpe militar brasileiro, logo depois, foi um dos primeiros exemplos disso, muito bem recebido nos Estados Unidos, mesmo publicamente. Não é preciso ler documentos secretos para isso. Foi bem-vindo publicamente pelo pessoal de Kennedy  – ele já tinha sido assassinado – por Lincoln Gordon [(1913) foi embaixador dos Estados Unidos no Brasil entre 1961 e 1966], Robert McNamara [secretário de Defesa dos Estados Unidos de 1961 a 1968, durante a Guerra do Vietnã, e presidente do Banco Mundial de 1968 a 1981], como uma grande vitória pela liberdade no século XX e assim por diante. O Brasil é um país grande e isso teve um efeito-dominó, espalhou-se pelo hemisfério até a América Central. Nos anos 80, houve ondas enormes de repressão, únicas na história deste continente sangrento. E foi devastador. Acabou com muitas organizações populares e estabeleceu a base para as políticas que estão sendo seguidas agora. Pode-se encontrar a origem disso na mudança da missão militar. Os militares brasileiros eram chamados de uma ilha de sanidade no Brasil e sua tomada de posse foi muito bem recebida. E o Brasil se tornou o que a imprensa comercial chamou de “a menina dos olhos latino-americana da comunidade comercial”. Sabemos o suficiente para mencionar o que aconteceu com a população, mas o setor se beneficiou e continuou assim até os anos 80. Uma grande taxa de crescimento, uma divisão em dois países, tudo isso muito bem-vindo nos círculos internacional e financeiro e pode-se achar a origem disso. Não temos as fichas dos anos recentes, mas temos as fichas dos anos 60 e são claras. As mais importantes são as feitas por volta de 1965, que estão disponíveis há alguns anos. São discussões entre os intelectuais de Kennedy. McNamara era secretário da Defesa, [McGeorge] Bundy era conselheiro de Segurança Nacional e eles discutiam que o desenvolvimento do Brasil, dois anos depois do golpe, era um grande sucesso. E discutiam que, dentro do que eles chamavam de contexto cultural latino-americano, era necessário que os militares derrubassem o governo civil quando, na opinião deles, esse governo civil não estivesse agindo no interesse da nação. E o interesse da nação é descrito em termos explícitos que parecem vindos de algo malicioso. Referem-se claramente à luta revolucionária pelo poder nas classes conflitantes da América Central e à necessidade de melhorar os investimentos etc. As discussões internas eram muito francas. E a tomada de posse militar contribuiu para isso e era bem recebida. Pouco tempo depois, há o apoio aberto dos EUA para a derrubada do governo Allende [(1970-1973), o presidente do Chile, Salvador Allende, foi deposto por um golpe de Estado comandado pelo general Augusto Pinochet, que instaurou a ditadura no país] e depois as atrocidades na América Central etc. E nada disso tinha a ver com os russos. Quantos russos havia no Brasil em 1964? Na verdade, os russos estavam apoiando os generais argentinos. Estavam entre os principais parceiros comerciais deles. Claro que, para a população americana, sempre se falava em ameaça russa. É assim que se controla as pessoas: você as assusta. Mas, nos Estados Unidos, na realidade, isso é uma piada. Não havia ameaça russa no hemisfério ocidental. Os russos ameaçavam o hemisfério ocidental, tanto quanto os EUA ameaçavam a Europa Oriental.
Sérgio Augusto: Professor Chomsky, em 1967 o senhor publicou um ensaio polêmico, chamado "O poder americano e os novos mandarins", em que o senhor apontava a responsabilidade dos intelectuais americanos que trabalhavam atrás da política externa americana. O senhor acha que nesses últimos 30 anos intelectuais americanos ficaram mais ou menos responsáveis?
Noam Chomsky: Falar de intelectuais é como falar de países, deve-se distinguir. Há aqueles que são chamados de intelectuais responsáveis, os que servem ao poder, e há aqueles que são os dissidentes, que estão fora do sistema de poder e não o servem. Há intelectuais de todos os tipos desde que existe a história registrada. Volte à Bíblia e achará a mesma distinção. Entre aqueles dos anos recentes é difícil dizer. Houve uma grande mudança nos EUA desde os anos 60. Houve uma mudança cultural de grande escala. Os anos 60 levaram a uma mudança na sociedade em geral... à libertação da sociedade. Ela é muito mais aberta do que era há 40 anos. Há mais preocupação por questões de opressão racial, os direitos da mulher se tornaram uma preocupação, questões ambientais, solidariedade com o terceiro mundo. Isso tudo mudou, afetando todo o país. O ativismo era maior nos anos 80 que nos 60 e mais profundamente enraizado na sociedade americana e, entre as pessoas envolvidas, estão os intelectuais. O que isso significa? São pessoas que têm o privilégio de devotar esforço substancial ao trabalho da mente. E, para alguns, isso significa trabalhar com pessoas que estão lutando por uma vida melhor, liberdade ou direitos humanos. Para outros é servir ao poder, sempre foi assim, mas a sociedade está diferente de muitos outros modos, está muito mais saudável. 
Daniel Piza: Senhor Chomsky, o senhor tem dito, em várias entrevistas, que acha que a democracia está sofrendo uma ofensiva no mundo inteiro hoje e que o neoliberalismo seria essa ameaça à democracia. O senhor não diria também que o que a gente poderia chamar de capitalismo de consumo foi justamente o que levou as pessoas do Leste Europeu, por exemplo, a lutarem por regimes democráticos e pelo fim do socialismo?
Noam Chomsky: Primeiro, nunca houve nada nem remotamente parecido com o socialismo da Europa Oriental. Lá os países se chamavam de socialistas e democráticos, eram democracias populares. O Ocidente ridicularizava a alegação de serem democracias, mas adorava a alegação de serem socialistas, porque é uma forma de difamar o socialismo. Mas, de fato, eram tão socialistas quanto democratas. Não acho que o fator motivador na Europa Oriental fosse um desejo de consumo. Na verdade, os níveis de consumo se reduziram muito na Europa Oriental desde o fim da Guerra Fria. A busca por liberdade, sim. Lutavam por liberdade e democracia, mas o que mais conseguiram, na maior parte, foi uma volta ao Terceiro Mundo. E, quanto à primeira parte do seu comentário... Sim, acho que o que se chama de neoliberalismo é um ataque aberto, não-secreto à democracia. O objetivo é minimizar o Estado e, ao minimizá-lo, se maximiza uma outra coisa. O que se está se maximizando? A tirania particular. O Estado é a arena em que o público tem o papel, pelo menos, a princípio, de determinar a política e o setor privado não tem regras. Quanto mais a arena pública é minimizada e o poder particular é maximizado, menos democracia se tem. Acho o Estado uma instituição ilegítima, que deveria ser desfeita, mas não enquanto o poder particular subsistir. Isso é pior, pois é um sistema que não presta contas ao público e o impulso principal do neoliberalismo é restringir a arena onde o povo possa fazer diferença.
Entrevistador: E o que o senhor propõe?
Noam Chomsky: Minha sugestão é expandir a arena pública – e do modo clássico. Principalmente, como disse antes, os trabalhadores devem ter o controle dos locais de trabalho, não os tiranos particulares. As pessoas devem ter o controle de sua comunidade e devem interagir umas com as outras, isso aumenta a esfera pública. Se a pesada concentração de poder particular for eliminada, daí eu acho que se vai em direção ao desmantelamento do sistema de Estado inteiro, o que é adequado. Mas se deve enfrentar o mundo em que se está. Esses movimentos neoliberais não visam estabelecer um sistema de mercado, uma empresa privada: estão fora do sistema de mercado. Se olharmos o mercado mundial, é como nos Estados Unidos: cerca de metade do comércio americano não é comércio, e sim apenas transações internas de uma empresa, administradas por uma mão bem visível. Isso acaba de acontecer do outro lado da fronteira. A metade das exportações americanas para o México nem entra na economia mexicana. Peças estão sendo montadas nos Estados Unidos e transportadas para o México, para uma outra filial da mesma Ford, como exportação, e voltam para os EUA como importação. Isso não é comércio, é mercantilismo e compreende grande parte do comércio mundial, um mercantilismo corporativo no qual o mercado funciona apenas à margem, principalmente para controlar as pessoas. Aqueles que administram a economia mundial se protegeram muito contra a disciplina do mercado. Há bons estudos de bons economistas a respeito de empresas transnacionais. Há um grande estudo de dois economistas ingleses sobre as 100 maiores empresas transnacionais. Todas se beneficiaram das políticas intervencionistas de seu próprio governo e 20 delas foram salvas de um completo colapso pela ajuda do governo. Acima disso, a própria empresa está fora do sistema de mercado. Suas transações internas são centralmente dirigidas. Então o sistema neoliberal é um ataque, na minha opinião, ao mesmo tempo, ao mercado e à democracia.
Emir Sader: Professor Chomsky, o senhor disse que, apesar de tudo que o senhor mencionou anteriormente – a opinião pública mais informada, a maior solidariedade–, há uma deterioração da democracia nos Estados Unidos. Como é possível ver todos esses elementos de avanço e, no entanto, haver uma deterioração democrática?
Noam Chomsky: Bem, o mundo é complicado. Há uma clara luta de classes. Os que controlam a sociedade e a administram temem naturalmente a democracia e usam as medidas que podem para restringi-la. Uma medida é restringir a arena pública, outra é a propaganda maciça. Os Estados Unidos têm uma grande indústria de relações públicas, que, na maior parte deste século, seus próprios líderes chamam de controle da opinião pública, com o princípio de que a opinião pública pode ser arregimentada, assim como o exército faz com os soldados. A razão é que eles dizem uns aos outros: “O risco do industrialismo crescente é o poder político crescente das massas. Isso tem que ser contido.” Não pode ser à força nos Estados Unidos, pois é uma sociedade livre, então a controlam pela propaganda, estreitando a arena pública por meio de tratados como o Nafta, que anulam as decisões da arena pública. Por outro lado, há forças populares lutando para ampliar a democracia, o conflito de sempre, que acontece há séculos, como agora, vai e volta. Nos anos 50, por exemplo, também declararam o fim da história, o fim da ideologia. Dizem que está tudo sob controle, todos são consumidores passivos, ninguém mais pensa e, poucos anos depois, o país está em tumulto. Aconteceu várias vezes no passado e creio que está acontecendo agora. Por exemplo, o movimento trabalhista, que foi severamente atacado – na verdade, um ataque criminoso nos anos 80–, agora está revivendo. Reconhece-se que uma guerra de classes unilateral levará à destruição. E não sabemos aonde estamos indo.
Alberto Dines: Professor Chomsky, a diminuição, o enfraquecimento do Estado significaria, nas suas palavras e nas de todos nós, o fortalecimento da sociedade, o revigoramento da arena pública, o senhor tem usado essa expressão. E, nessa arena pública, a mídia tem um papel fundamental e o senhor tem sido o mais vigoroso crítico da mídia internacional, da mídia privada. Eu gostaria de que o senhor também elaborasse um pouco sobre a questão: essa manipulação da mídia, esses descaminhos da mídia devem ser apenas atribuídos ao grande capital, ao grande capital nacional e internacional, interesses políticos ou é a própria instituição que está precisando ser revitalizada como serviço público, como espírito público. Qual a sua opinião a respeito desse processo todo?
Noam Chomsky: Para ser bem claro, acho que agora a arena pública está encolhendo e eu gostaria de vê-la se desenvolvendo. Então a minimização do Estado está encolhendo a arena pública devido à ampliação do poder privado. Quanto à mídia, as maiores mídias do mundo, nos EUA ou no Brasil, são empresas privadas e elas simplesmente fazem parte do sistema empresarial. Elas estão ligadas às grandes empresas, ligadas a outras maiores. Nos EUA os grandes canais de TV fazem parte de megaempresas, ligadas intimamente ao poder estatal. Os indivíduos que estão nos níveis mais altos de direção movem-se muito facilmente da suíte executiva para a administração estatal e a direção editorial e seus interesses são mais ou menos os mesmos. Eles apresentam uma imagem do mundo que reflete seus interesses. Eles têm certos objetivos que não são totalmente determinados pela estrutura da instituição, querem proteger o nexo do poder estatal privado que representam. Isso exige métodos diferentes para platéias diferentes. Para grande parte da platéia, significa marginalizá-la. Para a mídia e seus dirigentes, creio que o ideal social que eles desejam alcançar é o de uma sociedade em que a unidade social consista em uma pessoa e um aparelho de TV, sem outras associações, pois outras interações de seres humanos seriam perigosas, podem levar à participação democrática. Quanto mais perto se chegar do ideal de uma sociedade baseada em uma pessoa e uma TV, quanto mais se fizer isso, mais se estará livre para uma democracia política formal, sem a preocupação de que signifique algo, porque assim as pessoas se tornarão consumidoras passivas, trabalhadores obedientes, separados uns dos outros e a sociedade civil entrará em colapso. Para a elite educada, ela terá uma função diferente, será basicamente a doutrinação, a fim de garantir que se tenha pensamentos corretos. São eles que tomam decisões, tomam decisões certas para os que estão no poder. Dentro dessa estrutura, pode-se explicar muito do que a mídia faz.
Alberto Dines: Mas e o papel do jornalista?
Noam Chomsky: Eu diria que tenho muitos amigos na mídia, muitos deles em altos cargos. Muitos são bem mais cínicos que eu sobre a mídia, como resultado de suas próprias experiências. E vêem seu papel no trabalho como uma tentativa de trabalhar nas estruturas institucionais para fazerem o que puderem. E há muita coisa que podem fazer. Não são ditaduras militares, não serão torturados e mortos se disserem a coisa errada. Podem perder o emprego, mas esse é um problema pequeno. E as pessoas tentam pressionar suas aberturas até o limite, tantas vezes, fazendo coisas muito importantes. Outros estão subordinados ao sistema. Há muitos jornalistas bem conhecidos, em posições privilegiadas, que se consideram livres e lhe dirão “ninguém me diz o que escrever”. E é verdade, porque são tão confiáveis, que ninguém precisa lhes dizer o que escrever. Eles já internalizaram tão bem os valores, que nem podem ter outros pensamentos. Ótimo, são totalmente livres. Outros, que são independentes, são menos livres e estão sempre lutando contra os limites impostos por sistemas poderosos. Para os jornalistas independentes, o objetivo é igual ao de qualquer outro ser humano decente. Tentam fazer o que podem pelas pessoas, informam-se, trabalham juntos, cuidam dos direitos humanos e dos valores que têm.
Matinas Suzuki: Professor Chomsky, a propósito dessa questão, o senhor está recebendo um grande destaque na mídia brasileira. Como é que o senhor está se sentindo a esse respeito?
Noam Chomsky: Perfeitamente feliz de falar com qualquer um [risos], seja para um público de rede nacional de TV ou para favelados, o que também já fiz. Na minha experiência pessoal, não é muito surpreendente: tenho mais abertura fora do que dentro dos EUA. Em parte, porque meus pontos de vista são muito mais ameaçadores dentro do que fora dos EUA. Assim que cruzo a fronteira, falo para redes nacionais de TV, mas não lá dentro. Na verdade, na TV comercial dos EUA há muito mais liberdade do que na TV pública. É interessante, ainda, que a TV pública tenha a fama de ser mais liberal, no sentido norte-americano da palavra: mais progressista. Mas quer dizer que são mais doutrinárias, são comissárias culturais, entendem melhor os limites da discussão e se vêem no extremo dissidente. Pode-se chegar a esse ponto e não além. Na verdade, a TV pública tem isso por escrito, não permitindo que eu apareça nos principais programas de debate. É incomum tornar públicas tais declarações, mas é compreensível. No meu ponto de vista, esse artigo que se refere à responsabilidade dos intelectuais foi, antes de tudo, uma crítica à extremidade progressista do espectro chamado de liberal nos Estados Unidos. Não falei muito sobre a ala direita. Acho que eles são os reais comissários intelectuais, são eles os que estabelecem os limites. Agem com um certo tipo de dissidência, mas aquela que pressupõe as doutrinas do poder, assim ajudando a instilá-las melhor. E os mais espertos entendem isso e não querem ter nada a ver com algo que vá para o lado crítico. É assim que funcionam as instituições. Nada surpreendente.
Breno Altman: A crítica que o senhor tem feito à mídia é essencialmente uma crítica ao poder das corporações privadas. Como é que o senhor imagina um processo de controle social ou de democratização da mídia? Em outros termos, o senhor tem falado de controle social, sobre as corporações privadas nos outros terrenos da economia. Como o senhor imagina em relação à mídia esse processo de controle social da democratização?
Noam Chomsky: A mídia deve envolver a participação popular. Na verdade, o modelo existe. Eu vi coisas interessantes, no Rio há uns dias, quando fui aos subúrbios, em Nova Iguaçu, e assisti à TV popular. Eles provêm equipamentos e apoio técnico para grupos populares que fazem sua própria TV. Escrevem os roteiros, apresentam os programas, atuam. E as pessoas se reúnem na praça pública e assistem, discutem etc. E isso é um tipo de mídia popular. Nos Estados Unidos, há um bom número de rádios apoiadas pelas comunidades, quer dizer, rádios pequenas, mas que se estendem pelas cidades médias e são sustentadas pelo público; não têm propaganda e integram a comunidade, você pode notar a diferença. Eu viajo muito, dando palestras. Você pode sentir a diferença entre uma comunidade que tem rádio e uma que não tem. Há uma integração. As pessoas sabem uma das outras, sabem o que ocorre, participam. E isso dá um certo ânimo e vitalidade, visão para a comunidade, o que não é possível quando as pessoas estão separadas umas das outras. Essa é a mídia democrática. No momento, existe em pequena escala, mas não devemos esquecer que, há pouco tempo, existia em larga escala, mesmo nos Estados Unidos, uma sociedade altamente doutrinada, com um sistema poderoso de propaganda, uma sociedade muito livre, mas dirigida pelos negócios. Mesmo nos Estados Unidos, nos anos 50, existiam cerca de 800 jornais trabalhistas independentes, que alcançavam cerca de 30 milhões de pessoas por semana. Se voltarmos ao início do século, a mídia popular, ligada a comunidades étnicas ou jornais de trabalhadores, tinha a escala da imprensa comercial. Na Inglaterra, continuaram até os anos 60. Os grandes jornais da Inglaterra... o Daily Herald tinha mais assinantes – era socialdemocrata – tinha mais assinantes, nos anos 60, do que o Times, o [The] Guardian e os outros principais jornais juntos. Eles foram dominados pela concentração de recursos e os tablóides, na Inglaterra, a mídia de massa tinha orientação trabalhista. Muita bobagem, mas tinham orientação trabalhista. Davam um quadro do mundo muito diferente do que aquele que é orientado pelos interesses e preocupações das pessoas comuns. E era um país diferente na época. E quando isso acabou, não pela força, mas devido à pressão da concentração de recursos, de capital, o enfoque do país mudou. Houve mudanças visíveis. Um histórico do thatcherismo. Isso não está longe no passado, não estamos falando de uma utopia inimaginável, mas de coisas que existem, em parte existiram em larga escala e podem ser criadas de novo. As novas oportunidades das telecomunicações oferecem meios para criá-las, meios usados, muitas vezes, eficientemente. Vejam o último prêmio Nobel da paz, que acaba de ser anunciado: José Ramos Horta, que esteve aqui, o ganhou. Essa questão do Timor tem sido uma grande questão de direitos humanos por 20 anos, mas só chegou à arena pública há 3 anos – apesar dos esforços, nos quais também estive envolvido – em grande medida devido à internet. Ela oferece meios de conseguir informações que escapam à mídia empresarial, a qual organiza as pessoas. Nos Estados Unidos, houve tanta pressão no Congresso, que foram impostas restrições aos militares. A administração Clinton não observou as restrições, fugiu delas, mas, ainda assim, elas são importantes e o público percebe quando isso acontece nos EUA. Isso é a nova tecnologia. E a mídia democrática pode ser reconstruída e, como qualquer outro sistema de tirania particular, como ditadura militar ou totalitarismo ou empresas privadas, pode se eliminada. Não são leis da natureza, mas sim instituições humanas.
Sérgio Augusto: Professor Chomsky, que opinião o senhor tem sobre a internet?
Noam Chomsky: A tecnologia, em si, é totalmente neutra. Ela não liga se for usada para controlar ou para libertar as pessoas. Pode-se dizer o mesmo sobre a tecnologia impressa, o rádio, a TV ou a internet. Ela se torna o que as pessoas fizerem dela. A internet, como todas as partes dinâmicas da economia moderna, foi criada pelo público e à custa dele e devia ser propriedade de quem a construiu, os contribuintes. A última decisão do Congresso dos Estados Unidos entregou esse sistema criado pelo público a megaempresas privadas. Foi o que aconteceu com o rádio em 1930, quando o espectro livre foi entregue a empresas particulares. Aconteceu com a TV em 1950. Há um esforço agora, já aprovado por lei, para comercializar o sistema de telecomunicações, que foi criado às expensas do público, que foi quem pagou pelos satélites, pelos computadores e desenvolveu a tecnologia. Se isso vai dar certo ou não, não sabemos. Há muita resistência, há muito esforço popular para manter a internet como um sistema de acesso livre ao público e para que os segmentos populares possam usar para seus próprios interesses e propósitos. As empresas foram muito claras quanto ao que elas gostariam de que fosse. Queriam que fosse um serviço de compras caseiras, outra técnica de marginalização, isolamento e controle, mas não precisam ter sucesso como tiveram com o rádio, a TV ou com a imprensa, portanto a internet será o que as pessoas fizerem dela. Ela tem muitos aspectos positivos e negativos também. A comunicação pela internet estabelece contatos entre pessoas que, de outro modo, estariam isoladas, mas também isola as pessoas. Somos seres humanos, não marcianos, e há uma grande diferença entre contato cara-a-cara e ficar batendo teclas. Há efeitos psicológicos que me deixam cético. Como toda tecnologia, a internet tem muitas facetas.
Ibsen Costa Manso: Eu pessoalmente gosto muito da internet, porque é o único meio da gente conseguir contatá-lo, não é, professor? A gente conseguiu uma entrevista no Jornal da Tarde e trocamos e-mails e tal. Realmente o senhor que anda pelo mundo todo, só via internet mesmo. Eu queria voltar um pouco na questão do papel dos intelectuais. Alguns críticos da sua obra dizem que elas não atingem aqueles oprimidos que o senhor próprio defende. O senhor também é um crítico dos intelectuais e dos papéis dos intelectuais, sociólogos, principalmente sociólogos franceses, vou citar aqui o Alain Touraine [(1925), sociólogo francês, cujo trabalho é baseado na "sociologia de ação", seu principal ponto de interesse tem sido o estudo dos movimentos sociais, pois acredita que a sociedade molda o seu futuro através de mecanismos estruturais e das suas próprias lutas sociais; tornou-se conhecido por ter sido o pai da expressão "sociedade pós-industrial". Foi entrevistado pelo Roda Viva em 2002], que é amigo pessoal do presidente Fernando Henrique Cardoso. Também criticou quando os intelectuais chegam ao poder. E principalmente alguns teóricos dizem que os intelectuais têm alguma dificuldade em se contrapor ao establishment [grupo sociopolítico que exerce sua autoridade, controle ou influência, defendendo seus privilégios], porque eles fazem parte, na prática, do establishment. Saem das classes mais privilegiadas e, portanto, eles têm dificuldades, ficam com as mãos atadas na hora em que chegam ao poder, de contrariar esse establishment. Qual o senhor acha que deve ser o papel do intelectual e como o intelectual no poder pode agir?
Noam Chomsky: O intelectual no poder deve agir para eliminar seu próprio poder. Isso é difícil e não acontece muito. Mas as pessoas, às vezes, me perguntam o que faria se eu fosse eleito presidente. Digo que, primeiro, estabeleceria um tribunal de crimes de trabalho, para me julgar pelos crimes de trabalho que eu cometesse. A seguir, me livraria do meu poder e o poria nas mãos do público. Isso não costuma ser feito. As críticas de Alain Touraine são corretas e antigas. E a primeira expressão que conheço data de meados do século XIX, quando [Mikhail Alexandrovich] Bakunin [(1814-1876) anarquista russo] previu que a nova classe que surgia, que ele chamou de “inteligência científica”, os intelectuais modernos, iria em duas direções [no texto "Sobre a Associação Internacional de Trabalhadores e Marx", publicado em 1872, Bakhunin pode ter sido o primeiro a prever que os intelectuais e administradores passariam a integrar o aparato do Estado – que sempre teria sido patrimônio de uma classe privilegiada–, formando a "classe burocrática"]. Alguns, ele disse, tentariam usar as lutas populares, dos trabalhadores para obter o poder para si mesmos e se tornariam a burocracia vermelha, que criaria o regime totalitário mais brutal de que se tem notícias. Outros reconheceriam que o poder está em outro lugar, no que hoje chamamos de instituições de capital do Estado e se tornariam os administradores daqueles que detêm mesmo o poder. Bateriam no povo com a vara do povo nas democracias de Estado. Foi uma boa previsão. Depois, há outro grupo de intelectuais que nem gostam de ser chamados de intelectuais. São apenas pessoas que pensam e trabalham com organizações populares, que lutam contra o poder e tentam desintegrá-lo, que se interessam por direitos, democracia, justiça social e em fazer algo. Esse é um outro grupo de intelectuais. Eles não precisam ter uma educação superior. Conheci pessoas que trabalham com as mãos e fazem um trabalho intelectual muito mais criativo do que muitas pessoas de universidade. Se é intelectual ou não, isso não tem a ver com sua posição. Como disse antes, na minha infância um dos círculos mais intelectualizados de que participei era de trabalhadores. Alguns nunca tiveram uma educação primária, mas tinham uma vida intelectual muito ativa, como muitos outros. Nós, que usamos paletó e gravata, fazemos parte das classes ricas. Temos privilégios e, quanto mais privilégio, mais responsabilidade. E como você exercita as responsabilidades? É uma escolha pessoal.
Ibsen Spartacus: Professor, voltando um pouco nessas duas últimas questões, talvez misturando-as, na instituição à qual o senhor é ligado, o MIT [Instituto Tecnológico de Massachusetts], há um laboratório de mídia que reúne a nata dos pensadores da chamada “revolução digital”. Esses pensadores acreditam e defendem que novas mídias e novas tecnologias podem alavancar processos democráticos. A internet seria o grande espaço para que esses processos democráticos surgissem e crescessem. Mas me parece que esses processos estariam restritos a quem pode pagar pelo menos 2 mil dólares para ter um bom computador. Como é que o senhor avalia essa corrente de pensamento?
Noam Chomsky: O laboratório de mídia da MIT não é diferente de nenhum outro sistema de telecomunicações. Em geral, há pessoas envolvidas genuinamente empenhadas em torná-los acessíveis e disponíveis ao público como um método para democratizar a mídia, aumentar o fluxo de informação, permitir que as pessoas se expressem, se comuniquem entre elas, etc. E outros estão empenhados em transformá-los num modo de controle e domínio. Em um microcosmos se tem um conflito que se estende por toda a sociedade. Agora, a internet ainda é um fenômeno de elite. A maior parte da população mundial nem tem telefone. O número dos que usam a internet é muito limitado e geralmente fazem parte de instituições ricas. Tentar fazer isso sozinho é muito caro. Em princípio, ela pode ser democratizada. A tecnologia está lá, mas a Lei de Telecomunicações de 1995 é um grande instrumento legal projetado para evitar a democratização da internet, passando seu controle das instituições públicas para mega empresas particulares. É interessante que, nos EUA, isso não foi tratado como uma questão pública, mas como uma questão de negócios. Você lê sobre a Lei das Telecomunicações na imprensa mercantil. É um assunto público, mas a estrutura de pensamento tem que ser comercializada. É a única opção. A idéia de que fique no controle do público nem é opção. Então, não se escreve a respeito nas primeiras páginas, mas nas páginas de negócios e a única questão é como ela deve ser comercializada. Essas são algumas das formas como a propaganda age, como as entidades doutrinárias formatam opções e pensamentos de modo que os maiores problemas nem sejam visíveis para as pessoas. Poucas sabem que isso aconteceu ou que haveria outras oportunidades. Quanto à mídia, há os que sabem e os que são a favor.
Emir Sader: Professor, o presidente Clinton finalmente anunciou, no seu segundo mandato, que virá à América Latina. Ele não cruzou a fronteira nem para assinar o Nafta, nem para ver as conseqüências do Nafta. Qual o senhor acha que é a pauta que ele trará para o Brasil? O que os Estados Unidos, o governo americano pensa do Brasil? E qual o senhor acha que deveria ser a pauta do governo brasileiro soberano, que defendesse os interesses do país, a discutir com o governo norte-americano hoje em dia?
Noam Chomsky: Se o presidente Clinton vier ao Brasil será porque tem bons campos de golfe e um comitê de boas vindas [risos] que queira discutir com ele a melhor forma de estabelecer o controle e a subordinação da economia brasileira a empresas transnacionais. Ele viria por isso. Pode dizer palavras bonitas, mas é o representante das comunidades comerciais. Não é um direitista extremo, mas um republicano moderado, do tipo de Eisenhower. Virtualmente ele não se diferencia de seu adversário nas últimas eleições. O que os brasileiros devem fazer? Não será o governo que o fará, nem precisa dizer. O que os brasileiros devem fazer é superar o escândalo da sociedade brasileira, que data de muito tempo atrás e faz parte de um escândalo latino-americano, numa forma mais exagerada do que achamos no mundo todo. O Estado se subordina aos ricos, que têm responsabilidades sociais muito limitadas. O país é radicalmente dividido. Não estou dizendo nada que não se saiba. A maior parte da população está fora do setor moderno. Isso é um escândalo. O Brasil é um país rico, tem muitos recursos e tem sido chamado de “o Colosso do Sul”, que deveria ser uma contrapartie ao “Colosso do Norte”. Se não é assim, são problemas internos do Brasil, claro que apoiados por fatores externos, como o apoio americano ao golpe militar, mas as raízes fundamentais estão aqui e, se não forem resolvidas internamente, vão piorar cada vez mais. Obviamente as respostas não virão dos donos das empresas nem dos líderes do governo nem do presidente Clinton: virão de pessoas de dentro do Brasil que lutam para superar essa situação horrível. O fato de o Brasil, depois de 20 anos de uma das mais altas taxas de nascimento do mundo, de 1970 a 1990, maior que a do Chile... O fato de que, depois disso, ficou no relatório de desenvolvimento da ONU, ao lado da Albânia, deveria escandalizar os brasileiros, incluindo o que representa. E representa um desastre para a população, o que é dramático, pois aqui não é a África Central. Os recursos materiais estão aí, os recursos humanos também. Faz com que o fracasso seja mais dramático ao se notar o potencial do que seria num país que sofre de limitações.
Breno Altman: Professor, qual é a sua opinião sobre o sociólogo Fernando Henrique Cardoso?
Noam Chomsky: Li seu trabalho, quando ele era sociólogo e achei interessante e esclarecedor. Foi há muitos anos, mas agora ele tem um papel institucional diferente. Dentro da estrutura do sistema de poder, ou não se sente livre para desafiar ou não quer desafiar. Pergunte a ele, não sei, mas o sistema de poder é muito feio. Tomemos um exemplo. As políticas do Brasil são constrangidas pelo pagamento da dívida. O povo não deveria tolerar isso. Em relação à dívida e em todos os aspectos, a política brasileira é restringida por esse limite. Quanto a isso, há duas opções: pagar ou não pagar. Acho razoável não pagar, tem sido paga mil vezes. Se decidirem pagar, suponham que eu tenha emprestado dinheiro e o tenha gasto jogando. A responsabilidade é sua? Não, eu devo pagar. A dívida do Brasil, se for paga, deveria ser paga por quem tomou emprestado. Os que moram na favela do Rio não pediram nada emprestado, não ganharam nada com isso. O dinheiro foi dado para os ricos, que o mandaram para fora e enriqueceram. Eles que paguem, os generais que paguem, não é um problema do povo do Brasil. Se o governo não é capaz de enfrentar a questão ou, para ser mais exato, se a população não o obrigar a fazê-lo, o Brasil tem muito poucas opções e quem assumir o cargo de presidente também.
Daniel Piza: Qual seria exatamente, dentro desse ponto de vista, uma política adequada em relação às multinacionais? O que o presidente Fernando Henrique deveria fazer em relação às multinacionais? Aumentar o protecionismo de que maneira?
Noam Chomsky: As escolhas não estão nas mãos do presidente, e sim nas mãos do povo. Como pessoa, ele não pode fazer muito. Quanto às empresas multinacionais ou em geral, a atitude deve ser a mesma que se toma em relação a outras formas de tirania. É interessante estudar a história das empresas. Há bons estudos acadêmicos sobre o crescimento das empresas. É interessante, vale a pena estudar. As empresas modernas – falo dos EUA, mas não é muito diferente em outras partes –, nos EUA, elas foram criadas por tribunais e advogados, não por legislação. Lendo liberais clássicos, como Thomas Jefferson [(1743-1826) terceiro presidente dos Estados Unidos, de 1801 a 1809, e principal autor da Declaração da Independência Americana], eles eram radicalmente contrários a elas. No início da história, eram grupos de interesse público. As pessoas se reuniam para construir uma ponte. A uma certa altura, no início do século XIX, elas começaram a mudar. Jefferson, por exemplo, que era um importante liberal clássico da história americana, em 1820 avisou que o crescimento de instituições financeiras e empresas industriais seria o fim da democracia. Tocqueville [Alexis Henri Charles Clérel ou visconde de Tocqueville (1805-1859) foi um pensador político, historiador e escritor francês. Tornou-se célebre por suas análises da Revolução Francesa] disse o mesmo. Ele é a outra figura do liberalismo clássico. Quando descreveu os EUA em 1830, ele avisou que a aristocracia industrial, que crescia perante nossos olhos – isso foi há 170 anos –, era a mais dura do mundo e, se obtivesse o poder, seria o fim da democracia americana. Durante o século, eles conseguiram o poder – e não por lei, mas principalmente pelos tribunais– e conseguiram os direitos das pessoas, de palavra livre, direitos individuais. No início do século XX, eram enormes instituições dominando a sociedade. Não por desejo popular, muito pelo contrário. Se olharem suas raízes intelectuais, verão que são muito similares ao bolchevismo e ao fascismo. Tem idéias hegelianas que se desenvolveram no final do século XIX quanto aos direitos das grandes instituições sobre os indivíduos. Raízes muito parecidas. Daí os progressistas, muitas vezes, apoiarem as empresas, os mesmos que apoiaram o que se tornou o bolchevismo no começo do século XX. Isso não é incorreto, uma corporação é uma indústria totalitária. As ordens vêm de cima para baixo. Você se insere nela, recebe as ordens de cima e as leva para baixo. No topo, há um setor integrado de proprietários, investidores, bancos, instituições financeiras etc, o mais perto possível do ideal totalitarista que os humanos construíram. Se se está de fora, a única escolha é alugar-se para ele, ou seja, conseguir um emprego ou comprar o que produz. São empresas de mídia. Não são pequenas ilhas no cenário de mercado livre, são enormes tiranias ligadas umas às outras, é com o Estado que controlam em grande parte, integradas através das fronteiras. A atividade deveria ser a mesma usada com outras formas de tirania. O fascismo foi derrubado, o bolchevismo foi derrubado, o corporativismo também pode ser.
Alberto Dines: Professor, o senhor falou agora que o fascismo foi derrubado, mas nós estamos vendo aí no mundo o neofascismo, em todos continentes, surgindo com muita força popular. A França, um caso clássico, que é a pátria do fascismo científico, desde o fim do século passado... o caso Dreyfus. O senhor não vê a possibilidade de esse fascismo popular que está surgindo – a Áustria agora – se juntar às grandes corporações, ou melhor, as grandes corporações perceberem no neofascismo uma oportunidade de ganhar legitimidade popular?
Noam Chomsky: Estou pensando nos movimentos atuais, como o de Le Pen. Os movimentos populares podem tomar formas diferentes. O mesmo grupo social pode lutar por liberdade ou ser a base popular do fascismo. Isso é verdade no caso de Le Pen. [Adolf] Hitler [ditador austro-germânico que deflagrou a Segunda Guerra Mundial, criou o Partido Nacional-Socialista na Alemanha e foi o responsável pelo extermínio de milhões de judeus e de outros grupos minoritários como eslavos, poloneses, ciganos, negros, homossexuais, deficientes físicos e mentais, no que se convencionou chamar de Holocausto] foi o líder mais popular da história da Alemanha. A base popular de Hitler foi, em parte, não só os industriais, mas movimentos sociais que, em outras circunstâncias, poderiam estar lutando. Era o movimento trabalhista mais militante da Europa. Veja nos Estados Unidos: os que hoje estão na chamada milícia de direita são os mesmos que organizavam o CIO [Comitê por uma Internacional Operária, organização que congrega partidos socialistas de 35 países] há 60 anos. Vêm do mesmo setor socioeconômico, têm os mesmos tipos de problemas e estão desaparecendo, o mundo está se desintegrando. E, nos anos 30, eles criaram o movimento dos trabalhadores americanos e obtiveram direitos e liberdade. Nos anos 90 são o movimento direitista, que é muito perigoso, sob controle de líderes fanáticos, muitos deles fanáticos religiosos. Os mesmos grupos populares e é a mesma história de todos os assuntos humanos. Como vão se desenvolver depende do que fizerem e do que os outros farão – outros, como nós, que têm o privilégio de interagir com eles. Sempre foi assim e ainda é assim. Os grupos populares podem ser uma fonte de fascismo perigoso ou de grande libertação.
Ibsen Costa Manso: Professor, o senhor é conhecido, o seu trabalho é muito conhecido, o senhor foi um dos primeiros a denunciar a Guerra do Vietnã, quando isso não havia ocupado o espaço da mídia. O senhor denunciou a questão do Burundi, quando a gente nem sabia onde esse país africano ficava e, atualmente, o senhor está engajado, já há algum tempo, na questão do Timor. Essa semana que nós estivemos juntos aqui, em São Paulo, o senhor, inclusive, esteve com o prêmio Nobel da Paz, o José Ramos Horta, que é seu amigo de duas décadas. Agora a questão é como ajudar... como o Brasil, que tem tantos laços em comum – senão tantos, pelo menos, a língua –, concretamente, como o senhor defende que seja uma campanha a nível mundial para ajudar o Timor? Essa, aliás, é uma outra questão que se coloca para os intelectuais, quer dizer, existe uma análise muito clara, dos problemas mundiais, mas não se apontam por muitas vezes, soluções práticas para combater essas situações. Eu perguntei, inclusive, isso ao professor Ramos Horta: “o senhor acha que é válido que haja um boicote governamental ao comércio bilateral com a Indonésia, por exemplo?” Ele disse: “Não, isso precisa ser uma ação da sociedade e, portanto, os governos vão atrás”. O que o senhor acha desta questão?
Noam Chomsky: Fico feliz em recomendar soluções práticas. É isso que faço nos Estados Unidos o tempo todo, mas não me sinto livre para recomendar ações para vocês. Decidam vocês. Faço isso onde moro. O papel do Brasil nesse assunto poderia ser enorme. Podem ver como seria enorme olhando a história. Ao ponto que pessoas como José puderam fazer algo. Foi porque ele teve o apoio dos governos? Quais? Moçambique, São Tomé, governos desse porte. Ele não teve o apoio do Brasil, do ex-mundo português. O Brasil é muito mais poderoso obviamente. O tipo de apoio de Moçambique, o Brasil poderia tê-lo dado cem vezes. Isso significa criar formas de apoio internacional, ajudar a pôr o assunto na agenda internacional, obter publicidade e participar de pressões econômicas. Ele tem suas idéias quanto ao que deve ser feito, eu tenho as minhas. Eu sinto que os generais indonésios estão prestes a decidir sobre isso, podem ir para qualquer lado. O chanceler, há dois ou três anos, quando a opinião pública crescia, disse que Timor Leste era uma pedra no sapato, “talvez devêssemos nos livrar dela”. Essa é a implicação. “Está nos dando muito trabalho”. O Wall Street Journal, que não é muito progressista, fez um editorial que chamou “Uma pedra no sapato”, dizendo aos generais indonésios: “Não vale a pena, livrem-se disso. Só causa problemas”. Nessa última semana, a Far Eastern Economic Review, o grande jornal sobre a economia asiática, publicou entrevistas com altos executivos. Ainda não a vi. Estava viajando, mas José Ramos me contou. É de segunda mão. Disse-me que estavam recomendando que a Indonésia se livrasse “da pedra”. Pressão faz diferença. Os tipos de pressão vindos do Brasil são diferentes dos que vêm dos Estados Unidos. As pressões dos Estados Unidos são mais importantes, eles são o poder dominante do mundo. Fazemos do nosso jeito. Mas as que vêm do Brasil não são pequenas, sejam ameaças de cooperação econômica, sejam ameaças políticas, demonstrações públicas. Devem decidir de acordo com o contexto brasileiro.
Breno Altman: Senhor Noam Chomsky, eu queria fazer uma pergunta sobre um dos mais longos processos de discriminação imperialista deste século. O povo cubano, com o segundo mandato de Bill Clinton, pode ter esperança de que caia o bloqueio econômico?
Noam Chomsky: Novamente, as decisões estão nas mãos do povo dos Estados Unidos e dos outros países do mundo. Depois da queda da União Soviética, quando não se podia mais fingir que havia uma ameaça soviética, as sanções contra Cuba ficaram mais rigorosas e o esforço para estrangular Cuba cresceu em intensidade. E cresceu de novo no ano passado. No momento, a maior parte do mundo está objetando retoricamente. Há objeções retóricas para romper o boicote americano. Se isso der certo, se outros países começarem a negociar com Cuba, verão exatamente o que aconteceu com o Vietnã. No caso do Vietnã, depois da guerra, os Estados Unidos tentaram estrangular o Vietnã e eles já tinham ganho a guerra. A Indochina estava mais ou menos destruída, mas queriam ter certeza de que não se recuperaria. Era um golpe econômico. Durou até que outros países começassem a desobedecer. A maioria dos países obedecem aos Estados Unidos. É um país poderoso e perigoso. Mas, depois de um tempo, o Japão deixou de ligar e as companhias européias também começaram a negociar com o Vietnã, a instalar escritórios de negócios. Daí, os negociantes americanos começaram a se queixar: estavam sendo excluídos de mercados importantes. E, de repente, num curto período de tempo, a política dos Estados Unidos mudou. Descobriram que a situação dos direitos humanos estava melhorando no Vietnã, portanto, podíamos lidar com isso. Nada tinha mudado, na verdade – exceto que os rivais econômicos estavam agindo –, e os negociantes americanos começaram a se queixar. Isso começa a acontecer com Cuba. Na última visita de [Fidel] Castro [em janeiro de 1959, Fidel assume o poder em Cuba, torna-se primeiro-ministro (1959 a 1976) e presidente do governo e primeiro secretário do Partido Comunista a partir de 1976. Em 1961, declara Cuba um estado socialista. No mesmo ano, os Estados Unidos cortam relações diplomáticas com a ilha e iniciam um embargo econômico ao país, que dura até hoje] a Nova Iorque, ele... O governo não queria nada com ele, a mídia fez grandes ataques a ele, exceto por uma coisa: David Rockefeller [banqueiro e filantropo americano, esteve entre 1961 e 1981 no comando do banco Chase Manhattan, do qual era também o maior acionista. Durante esse período, a instituição se tornou uma das maiores credoras individuais da dívida externa brasileira] fez uma reunião de industriais para conhecê-lo, porque o mundo comercial americano não gosta do fato de que o México comece a se envolver com o ramo de telefones e negocie com a Europa. Cuba e Vietnã não são a mesma coisa. A maioria dos americanos não tinha ouvido falar do Vietnã, mas Cuba tem sido a questão principal de política externa há 170 anos. Aí por 1820, os Estados Unidos estavam empenhados em conquistar Cuba e eu diria que eram pessoas boas como Thomas Jefferson que diziam: “Sim, temos que incorporar Cuba ao império”. Não conseguiram, na época, devido à frota britânica, não à russa, mas à inglesa. No final do século, o poder mudou. Podiam fazer e fizeram. A pretexto de libertar Cuba, os Estados Unidos se uniram à liberação de Cuba e a conquistaram até 1959. Cuba não passava de uma fazenda americana. É uma questão profunda nos Estados Unidos reintegrar, subordinar Cuba de novo ao sistema americano. Acima disso, a elite americana se preocupa não com a falta de democracia em Cuba. Isso não importa. Importam os padrões sociais que foram alcançados. Há padrões altos de saúde e de educação, na verdade, único nas Américas. Quase no nível do Canadá e dos Estados Unidos, o que é notável dadas as circunstâncias. É um país pobre, não só pobre, mas sob o ataque das superpotências do hemisfério e, ainda assim, manteve os padrões e isso é perigoso, porque manda o recado errado. Diz às pessoas: “Olhem, podem fazer algo com suas vidas”. E é algo perigoso pensar assim. Eis as principais razões dos EUA quererem garantir que Cuba não siga um caminho independente, e não será fácil de superar. Mas a questão principal é parecida com a do Vietnã. Se outros países romperem o boicote e houver protestos populares suficientes nos EUA, a política muda.
Matinas Suzuki: Professor Chomsky, infelizmente nosso programa está chegando ao final, eu e o Sérgio Augusto, aqui, temos uma curiosidade, uma pequena curiosidade. O senhor votou nas últimas eleições americanas?
Noam Chomsky: Na verdade, sim. Foi um dia antes de vir à América do Sul. Acho que é uma decisão de importância relativa, mas não sem importância. Os dois partidos políticos são mais ou menos idênticos, mas têm formações diferentes por razões históricas. Os que votam para os democratas tendem a ser os de renda menor, minorias, mulheres etc. Os que votam para os republicanos tendem a ser mais ricos, religiosos, fundamentalistas, racistas, outros setores da população. Em qualquer sistema, seja tirania ou democracia, os governantes terão de responder aos eleitores. Os generais brasileiros tinham que prestar atenção ao que estava acontecendo na sociedade. Quando se tem uma democracia política como no EUA, basicamente com um partido e duas facções, eles jogam migalhas aos eleitores, seguem a política básica, do mesmo modo. Mas fazem algo para os eleitores, coisas diferentes. Não muda o mundo, mas faz diferença, se uma criança de sete anos tem comida para comer. É uma razão para votar, para um ou para o outro. Na verdade, eu divido meu voto. Às vezes voto para os republicanos, outras para os democratas, mas é a minha base de consideração.

Fonte: Memória Roda Viva