sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

povo pop no poder

Luiz Inácio Lula da Silva contou com a aprovação de 87% da opinião pública ao sair do Planalto. A popularidade colossal faz dele um dos governantes mais bem-sucedidos da história contemporânea, e o de maior êxito num período democrático: foi eleito, reeleito e passou o cargo a uma sucessora que escolheu à revelia das forças que o sustentavam, além de jejuna nas urnas. O triunfo de Lula se deve à percepção de que, ao longo da sua Presidência, houve aumento real do salário mínimo, dezenas de milhões de brasileiros passaram a comprar o essencial para viver e uma parcela significativa do povo dispôs de bolsas estatais para dirimir a miséria. Noutra esfera da sociedade, a do privilégio, nunca na história deste país os poderosos – do exterior e do interior – ganharam tanto. Em termos econômicos, o governo do petista foi a favor de todos, e conseguiu agradar a quase todos.

Como a vida não é só economia, ainda que ela a determine, há outras maneiras de explicar a popularidade de Lula. Duas imagens de seu governo ajudam a pensar o que aconteceu nos oito anos em que esteve à testa do Estado. Na primeira, em abril de 2009, ele estava numa reunião do G20, em Londres, e o presidente americano aproximou-se para cumprimentá-lo. This is the guy, disse Barack Obama aos que estavam em torno, apontando o brasileiro. I love this guy. The most popular politician on Earth. Because of his good looks. Amo esse cara, o político mais popular do planeta, porque ele é bonitão. Lá estava ele: o líder de uma nação pobre que parecia sair do buraco, o governante que seguira um caminho diverso do receituário neoliberal e dirimira a crise que vergava países poderosos. E lá estava o outro: o dirigente do império capitalista e gerente geral da Pax Americana.

Na segunda imagem, no feriado de Réveillon de 2010, Lula foi flagrado a distância, na praia de uma base naval na Bahia. Entrou duas vezes no mar, tomou uma chuveirada ao ar livre, bebeu uma latinha e, de camiseta, bermudão e sandália de dedo, botou na cabeça a caixa de isopor com as tralhas levadas à praia e foi embora. Lá estava ele: o menino do sertão pernambucano que foi de pau de arara para São Paulo, morou nos fundos de um bar e usava o mesmo banheiro que a freguesia, o metalúrgico que perdeu o dedo num acidente na fábrica, o sindicalista do ABC que ia à Praia Grande. Primeiro mandatário, ele continuava o mesmo brasileiro que aprendeu nas mesas dos bares que o nacionalismo é uma virtude.

Lulismo, Carisma Pop e Cultura Anticrítica passa pelas duas imagens para analisar como funcionou a figura do presidente na sociedade brasileira e no exterior. O autor do livro, o psicanalista Tales Ab’Sáber, vai à intersecção da cultura com a política para sustentar que o corpo de Lula tem uma dimensão simbólica: ele próprio é a encarnação do pacto social que sustentou o seu governo. Aquele corpo que em Londres foi elogiado por Obama é o de milhões de brasileiros que carregam um isopor na cabeça na praia, de todos os que compartilham uma história semelhante à dele, e nele se reconhecem. O presidente americano se referiu a ele com um linguajar que não é o da política (this is the guy) para sublinhar a sua popularidade e aparência (good looks). Para além dos dados econômicos, Lula tem carisma. E, como está no título do livro, esse carisma pertence ao universo pop e integra uma cultura que atenua antagonismos.



Carisma é a atração que um corpo desperta em outros corpos. O sujeito carismático, que expressa outros humanos e às vezes os lidera, tem um poder cuja origem é atribuída ao divino. As Escrituras registram a incorporação do sobrenatural no humano: o Verbo se fez carne. A partir da Antiguidade, e sobretudo na Idade Média, o corpo dos santos católicos manifestavam poderes excelsos. Santos curavam, faziam milagres. O carisma não está só na religião, passa igualmente pela arte e pela política. O herói artístico torna-se carismático porque assume uma responsabilidade social, como Aquiles na Ilíada. Os reis recebem unção da Igreja, que representa Deus, e têm eles também o dom da cura. Luís XIV, o Rei Sol, fez de Versalhes o theatrum mundi onde demonstrava o poder de seu corpo absolutista. Napoleão, ao ser sagrado imperador, tirou a coroa das mãos do papa e dispensou a intercessão do Vigário de Cristo. Fez-se por si mesmo representante da soberania francesa.

Depois de se aproveitar de crises para se livrar de dois ministros que ambicionavam a sua sucessão, José Dirceu e Antonio Palocci, Lula exerceu o poder plenamente. E desenvolveu uma política a favor dos extremos da sociedade, os milionários e os muito pobres. Para estes últimos, concedeu bolsas sociais, de no máximo 200 reais, a quase 13 milhões de famílias, introduzindo-as num universo mais amplo de consumo. Tais bolsas não ultrapassaram o custo total de 1% do Produto Interno Bruto. Mas, aos que vivem de rendas financeiras, em 2009 Lula destinou 5,4% do PIB apenas em serviços dos juros da dívida pública. No ano seguinte, os juros e a rolagem da dívida consumiram 45% do orçamento da União, 635 bilhões de reais. Com isso, diz Ab’Sáber, o presidente “cooptou amplamente os muitíssimo ricos”.

A ação bifronte resultou na anestesia da oposição. À direita, tucanos e DEM ficaram sem ter o que falar: a pregação deles se dirigiu às classes médias, que, se não se aproveitaram diretamente de bolsas sociais e juros estratosféricos, beneficiaram-se da melhoria geral dos indicadores econômicos. À esquerda, houve a agregação ao Planalto das centrais sindicais e o crescimento de fundos de pensão, que passaram a gerir parte significativa dos investimentos estatais e se associaram a grupos privados. Integraram aquilo que o sociólogo Francisco de Oliveira chamou de “nova classe” e desmobilizaram a militância radical.

Lula promoveu um acordo entre os socialmente antagônicos que foi a quadratura do círculo. Conciliação enunciada, sibilinamente, pelo próprio presidente: “Foi preciso um torneiro mecânico, metido a socialista, para fazer o país virar capitalista.” Como Lula há muito deixou de ser torneiro, o socialismo saiu do horizonte contemporâneo e o Brasil nunca deixou de ser capitalista, tal acordo se dá em condições peculiares: no corpo do presidente, que o avaliza pessoalmente. O seu carisma é isso.

O carisma teve muito de construção edificante, de obra de marketing. Mas também foi real e consistente, como na cena da praia baiana, na qual Lula se portou sem saber que era fotografado pela imprensa. Alguém consegue ver Fernando Henrique Cardoso carregando uma caixa de isopor de bermuda e camiseta? Mais fácil imaginá-lo de pulôver de cashmere e paletó de tweed com protetores de couro nos cotovelos.

Para Lulismo, o alcance da imagem de Fernando Henrique Cardoso era de outra ordem. O presidente do PSDB “tinha imenso impacto de personalidade apenas sobre o seu grupo social, bem paulistano, que envolvia dois ou três departamentos de universidade e três ou quatro bairros ricos da cidade”, diz o livro. “O seu imenso amor por si mesmo, expresso na forma de vaidade, jamais totalizou o amor e a confiança dos brasileiros a seu respeito, brasileiros a quem mais de uma vez o presidente tucano se referiu como ‘caipiras’.”

Conscientemente, Lula fortaleceu a sua imagem identificatória com os brasileiros. Promoveu todos os anos em Brasília festas juninas, para as quais se vestia a caráter. Ofereceu churrascos a auxiliares e aliados. Falava de política com termos do futebol e disputou peladas em fins de semana. Ia a programas de televisão popularescos e se comportava como animador de auditório. De camiseta canarinho, tocou vuvuzela na Copa do Mundo. O rei não estava nu como na fábula. Foi um dos do povo que chegou ao poder, como aliás pregava o seu antigo jingle de campanha: Lula lá. De lá, do Planalto, ele dizia ao povo que a expansão do salário mínimo e do crédito era o máximo que ele poderia oferecer aos seus iguais em origem. O carisma cerrava o vínculo com os governados, que nele projetaram as suas aspirações e realizações.



Na história republicana, outro presidente teve um carisma que emanou da base empobrecida da sociedade, Getúlio Vargas. Houve semelhanças entre ele e Lula: atenção ao salário mínimo, codificação de direitos populares, algo da demagogia, benesses à burguesia – industrializante num caso, financeira noutro – e elementos de bonapartismo, no qual o líder paira sobre os conflitos das classes. Mas as diferenças entre eles eram grandes. Getúlio foi golpista em 1930,  depois ditador militar e por fim populista eleito até o seu suicídio – gesto altamente carismático – em 1954.

Lula agiu num cenário com elementos legados pelo varguismo, dos quais Lulismo fala de maneira muito breve. Em vez disso, o livro vai ao cinema para ver a continuidade entre Getúlio e o presidente petista. Num momento forte do ensaio, Ab’Sáber volta-se para o personagem Jerônimo, o sindicalista de Terra em Transe. No filme de Glauber Rocha, numa sequência na qual sambistas, militantes do Partido Comunista, um acadêmico de fraque e agentes de segurança dançam no transe que precedeu o golpe de 1964, Jerônimo, o representante dos trabalhadores, é instado a falar. Ele diz:

Sou um homem pobre, um operário, sou presidente do meu sindicato, estou na luta das classes, acho que está tudo errado, e eu não sei mesmo o que fazer. O país está numa grande crise e o melhor é aguardar a ordem do presidente.

Paulo Martins, o jornalista e poeta que trocara a fidelidade à elite pelo apoio à demagogia populista, tapa a boca de Jerônimo, olha direto para a câmara, para quem assiste ao filme, e, ainda que com a crítica do distanciamento brechtiano, recai na rudeza oligárquica:

Estão vendo o que é o povo – um imbecil, um analfabeto, um despolitizado! Já pensaram um Jerônimo no poder?

A cena de Terra em Trans e está entre os momentos capitais do cinema nacional. Em Verdade Tropical, Caetano Veloso escreveu a respeito dela que “nada do que veio a se chamar de ‘tropicalismo’ teria tido lugar sem esse momento traumático”. Para o compositor, a sequência do filme marcou a morte de sua “fé nas forças populares – e o próprio respeito que os melhores sentiam pelos homens do povo”. Num poderoso ensaio recém-publicado no livro Martinha Versus Lucrécia, Roberto Schwarz retomou a cena e a interpretação de Caetano Veloso. Para o ensaísta, as conclusões do cantor “enxergavam oportunidades e saídas onde o filme de Glauber desembocava em frustração nacional, autoexame político e morte”.

Para Ab’Sáber, o sindicalista que é manipulado pelo populismo e calado pelo intelectual de esquerda na crise de 1964 não é Jerônimo. É Lula. Nascido no chão da fábrica da industrialização getulista, ele é o operário que se politiza depois do golpe. Não era tutelado pelos pelegos nem pelos intelectuais, e o PCB se opõe a ele. Sua força no panorama nacional dependia da categoria que o elegeu para dirigir o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema. Quando comanda greves e passa a construir o Partido dos Trabalhadores, sua liderança se estende à classe operária e ao conjunto dos trabalhadores. Segundo Ab’Sáber, Lula “representou todos os anseios reprimidos de voz e confronto com a ditadura militar”.

Essa militância de classe, que não se prestava às manobras da política tradicional e do stalinismo, como ocorrera na luta popular do início dos anos 60, teve enorme potencial. É o que sustenta Lulismo:

Lula não representava, como todos sempre o soubemos, a liderança do novo, amplo e de esquerda Partido dos Trabalhadores; ele, desde o início e sempre, foi a liderança esperançosa de todos nós, com alguns traços messiânicos, embora muito esmaecidos, da tradição imaginária dos revolucionários de esquerda. Desde o início, o desejo inconsciente que o colocava naquela posição já aspirava e sonhava que ele se tornasse o líder de todos os brasileiros.

Nessa condição, Lula pôde aplastar, ao longo de trinta anos de petismo, não só o PCB como todas as forças da esquerda que se juntaram para construir o partido, oriundas da luta armada, da Teologia da Libertação, do castrismo, de dissidências do populismo radicalizado e do trotskismo. Junto com elas, foram sendo marginalizados também intelectuais como o Paulo Martins de Terra em Transe. Ab’Sáber cita uma entrevista de Marilena Chaui, em 2009, que capta o deslumbramento dos letrados com o movimento no qual o ímã eram os trabalhadores. Ela disse:

Sobretudo na fase inicial, havia um laço entre os intelectuais, os sindicalistas e as lideranças de movimentos populares que era impressionante. Eu tenho o caderno das primeiras grandes reuniões, dos cursos que foram organizados, em que eu anotava até a respiração de cada um. Com aqueles operários e aquelas lideranças eu aprendi a pensar, a ver a política a partir deles, e eles diziam o mesmo de nós.

A especialista em Spinoza que “anotava até a respiração de cada um” e dizia que aprendia “a pensar” com os operários prefigura um quadro no qual a discussão e a crítica passam para um segundo plano. Ab’Sáber nota que as atitudes de Lula sempre foram um tanto diferentes do petismo, e ao longo do tempo foram se distanciando ainda mais: ele “se colocou no espaço público de modo relativamente soft, agregador, mediador, cordial, de modo a merecer pessoalmente, no trato quase individual com cada um, o imenso desejo político”. O líder se impõe ao partido na mesma medida em que a sua figura pessoal vai se compondo com as camadas acima e abaixo da sociedade. Esse percurso tem momentos de tensão, como o afastamento ou a domesticação de diversos grupos do pt. Ao chegar ao poder do Estado, o partido havia abdicado do ideário da esquerda independente. E Lula permanecia o mesmo. Agora, ele era Jerônimo: tinha uma política própria. Mas ela era de conciliação.



O carisma do presidente se manifestou por completo no Planalto. Ele encenou “o seu teatrinho de fantoches de luta de classes, que não enganava ninguém, da luta entre o seu povo brasileiro e as elites deste país”. Esse “não enganava ninguém” pode parecer exagerado. Mas ao lado de José Sarney, o representante por excelência do patrimonialismo, alvejado pela enésima denúncia de nepotismo e corrupção, Lula o classificou de um político “incomum”, e conclamou a todos a prosseguir na luta contra as “elites”. O transe do pré-64 ressurgia, agora, orquestrado por Jerônimo.

Nesse ponto, a análise de Lulismo passa do nacional para o internacional, e da política para a cultura. No plano interno, emergiram os trabalhadores mais pobres, mas apenas enquanto consumidores, que aqui receberam o apelido neutro de “nova classe média”. No externo, os ciclos de crises capitalistas se tornaram uma convulsão contínua, pegando em cheio os países centrais. O novo mercado brasileiro passou a contar mais para o sistema econômico mundializado, que se interessa por ele. O interesse é percebido na crescente atenção pelo Brasil e por Lula na imprensa americana e europeia, principalmente a econômica, mas não só ela. Jornais e revistas viram no petista alguém que não resvalava para as atitudes tradicionais da esquerda e do populismo, como Chávez na Venezuela: tudo se fazia aqui dentro da ordem, sem mobilização, nacionalizações e expropriações. O processo culminou na famosa capa da Economist, em novembro de 2009, revista inglesa que Ab’Sáber classifica de “vanguarda neoliberal radical”, e dela diz:

Brazil Takes Off, “o Brasil decola”, com o famigerado Cristo Redentor decolando rumo aos céus como um foguete, em uma espécie de imagem neotropicalista, internacional brega, muito apropriada ao jogo de popular e avançado do lulismo para fora, do lulismo pop.

O presidente deixou de ser um símbolo local para se tornar universal, num panorama internacional em que o Brasil ganhou realce. Tanto que o país e o presidente foram presenteados com a oportunidade de sediarem a Copa do Mundo e a Olimpíada. E por isso Lula virou “o cara” para “um Obama em busca de alguma referência para o próprio descarrilamento econômico e social de seu mundo”. Ainda que o americano tenha demonstrado inveja ao tratar o brasileiro, houve também uma ponta de condescendência. Ele foi encarado como um pequeno boneco de pelúcia inofensivo, com uma expressão brava divertida. O bichinho por sinal existe. Foi criado pelo artista plástico Raul Mourão, o “Lulinha paz e amor”, e segundo Ab’Sáber ele é “a obra-prima da época”.

Obra-prima possível porque outras operações ocorriam no domínio da cultura no Brasil e lá fora. Lentamente, as artes e a cultura deixaram de pensar o presente criticamente e renderam-se à lógica da circulação de mercadorias. Sem mediações, foram do sujo solo pátrio às imagens da propaganda mundial. O movimento geral tende à esterilidade, por um lado, e, pelo outro, à celebrização de astros. É o mundo dos valores imateriais e ideológicos. Das leis de incentivo cultural. Do colecionismo elegante de grandes empresas em busca de verniz artístico. De cantoras que são “garotas bonitinhas ligeiramente fashion que, a julgar por sua música, nunca foram tristes, nunca tomaram um porre ou um tapa na cara”. Das Beatriz Milhazes, “que vendeu um quadro com a sua estamparia de vestido hippie da Praça da República por um milhão dedólares”. Do ensaísmo que só fala de coisas muito mortas, para mumificá-las. Das megaexposições que são mais espetáculo que raciocínio. Dos anúncios de loiras lânguidas em poses de transgressão dark que ocupam as primeiras páginas dos cadernos culturais de jornais para propagandear artigos de luxo. De roqueiros sessentões com os cabelos pintados de acaju à la Sarney, gritando pela enésima vez, mas agora em playback, hinos de rebeldia juvenil de há muito incorporados ao repertório do conformismo.

Esse universo é o do pop, aquele em que o artista é mercadoria fantasmagórica. Um universo que obviamente não se materializou ontem nem anteontem. No ciclo de palestras que Oscar Wilde fez nos Estados Unidos, no final do século XIX, o artista foi tratado e se comportou como um ídolo pop. Lula e Obama participam desse circuito. O primeiro transita entre o auditório de Ratinho e palestras em que recebe títulos universitários mundo afora. Não é, como Oswald de Andrade falou de Rui Barbosa, “uma cartola na Senegâmbia”, mas o seu contrário: um pau de arara entre doutores, o metalúrgico metido a socialista que celebra o capital. E Obama, no seu cartaz de campanha com a palavra Hope, está mais para um modelo de Andy Warhol do que para o comandante de operações colonialistas no Iraque e no Afeganistão.



Na última semana de novembro de 2010, a um mês do fim do segundo governo de Lula, Paul McCartney se apresentou em São Paulo. Também fizeram shows na cidade Lou Reed, o guitarrista Jeff Beck, o jazzista Ornette Coleman e a cantora Martina Topley Bird. Para Ab’Sáber, tivemos, então, “uma boa medida de nossa nova presença no circuito mundial de cultura, e das mercadorias culturais, e mais, do nosso modo de lidarmos com esta condição, talvez síntese do espírito cultural da era lulista”.

Lulismo centra a análise em McCartney (“um verdadeiro inventor da relação superficial encantada e apaixonada da massa com seus ídolos”) e Reed (“o enfant terrible do rock de todos os tempos, bem como o seu típico artista hiperconsciente”). Diz que 60 mil pessoas foram ao primeiro show do ex-Beatle, entre elas José Dirceu e Fernando Henrique Cardoso, Eike Batista e Kaká, José Serra e a família de Lula – e se congregaram numa

Festa pop do tipo total, do tipo Carnaval, do tipo celebração religiosa de massa, verdadeira competição do pop, religião laica, com a religião materialista e telemarqueteira de hoje... Uma festa universal do gozo do reconhecimento no próprio signo universal da melhor mercadoria.

Lou Reed não ofereceu o que a plateia esperava, e ela abandonou o show aos poucos. Para Ab’Sáber, as duas atitudes foram lógicas. O músico, “como verdadeiro artista, não deu o óbvio ao seu público, e o seu público, como a verdadeira experiência de massa da época preconiza, reconhecendo apenas a marca universal da mercadoria, deu o seu óbvio ao artista, a sua recusa em entrar em contato com o outro e o seu desprezo”. Ou seja, o público de Paul McCartney era exatamente igual ao de Lou Reed. Mas enquanto um dizia a 60 mil fãs All You Need Is Love e era aplaudido por eles, o outro não lhes entregava a mercadoria, e eles o abandonavam. Ambas as plateias queriam amor e mercadoria.

Lula é como McCartney, tem carisma. Propiciou uma circulação maior de mercadorias e foi amado por isso. Ele tem valor, é ouro puro, dinheiro. Ou, conforme disse Ab’Sáber:

Como o ídolo pop, Lula articulou os efeitos de crescimento e excitação de sua grande distribuição de dinheiro a todos, como uma mágica pessoal, advinda de sua personalidade, e se tornou uma espécie de novo equivalente geral, o dinheiro.



O autor de Lulismo, Carisma Pop e Cultura Anticrítica tem 46 anos. Ele nasceu em Porto Alegre, aonde seu pai, o geógrafo Aziz Ab’Sáber, fora trabalhar, mas fez a vida em São Paulo. Demorou a decidir qual profissão seguiria. Estudou administração pública na Fundação Getulio Vargas e cinema na Universidade de São Paulo, onde fez mestrado sobre o cinema paulista nos anos 80. Fez psicologia, também na USP, e doutorou-se com uma tese sobre o sonho em Winnicott, Bion e Freud. Tornou-se analista de crianças, inclusive psicóticas, e hoje é professor de filosofia da psicanálise na Universidade Federal de São Paulo. Com 2 metros de altura, barbudo e com jeito de urso, ele mora num apartamento pequeno para o seu porte, o que fica visível quando faz café na cozinha, num prédio sem elevador em Pinheiros.

Suas duas teses deram origem a livros, e ele tem pronto um quarto, a ser lançado no segundo semestre pela Cosac Naify, sobre música techno e raves. Lulismo é um ensaio de 100 páginas, com fotos de João Bittar do presidente quando sindicalista. Ele foi escrito no fim do governo Lula, entre dezembro de 2010 e janeiro do ano seguinte – o que explica alguns tropeços de exposição –, para registrar a quente o balanço da administração do presidente. A sua análise, que combina teoria crítica, psicanálise, política e semiótica, é pouco usual no Brasil. No mundo de língua inglesa, Terry Eagleton, Fredric Jameson e Slavoj Žižek fazem coisas semelhantes.

Há uma indagação subjacente ao ensaio: O que é ser de esquerda hoje, numa conjuntura em que a maioria parece feliz, o capitalismo continua a produzir mazelas e as crises não param de estourar? Num contexto em que a própria ideia de crítica entrou em parafuso, a resposta é problemática. Na última página do livro, Tales Ab’Sáber colocou assim a questão:

Até segunda ordem estamos em uma situação muito difícil, em que cabe de fato perguntar qual é o sentido da noção de crítica em um mundo que se forma cotidianamente de modo radicalmente anticrítico. Como alguém já disse com precisão, o que não for de consumo, que silencie, o que leva a crer que, nesta ordem concreta das coisas, como há muito já foi intuído, arte e pensamento estão mortos.

Embora a proposição seja pertinente, o próprio Lulismo é uma negativa à afirmação de que o pensamento está morto. Da mesma forma, também estão muito vivos os escritos de Chico de Oliveira e André Singer sobre Lula e o Partido dos Trabalhadores. Oliveira, que rompeu com o PT no início do governo Lula, e Singer, ex-porta-voz do presidente, partiram de pressupostos diferentes e chegaram a conclusões quase opostas. (Ambos publicaram ensaios a respeito do assunto em piauí; Oliveira os reuniu em O Ornitorrinco e Singer prepara um livro com suas descobertas e análises.) Embora o trabalho de Ab’Sáber tenha escopo diferente do desses autores, os três fazem críticas que visam tornar consciente – tornar presente e modificável – o que o poder petista fez e faz.

 A morte do pensamento está em outro lugar. Mais precisamente, no próprio PT. Nenhum prócer ou formulador político do partido se dispôs a debater as críticas de Oliveira, Singer e Ab’Sáber, mesmo quando elas elogiam aspectos do governo de Lula. O raciocínio de alguns dirigentes do PT parece ser o seguinte: enquanto o capitalismo crescer no Brasil, proporcionando alguma melhoria material na vida dos trabalhadores, tudo bem, aproveitaremos a onda para nos eleger e reeleger, para arrumar cargos em governos municipais, estaduais e nacionais, ou então para montar consultorias que azeitem o trânsito de pleitos de empresários junto ao partido.

Tudo bem?

Por Mario Sergio Conti

JUNHO DE 2012


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