sexta-feira, 20 de abril de 2018

30 anos de "fanzinagem"


Ano I – No. 01 – Abril de 1988. 30 Anos, portanto. Está lá na capa da primeira edição do NAPALM. Uma produção da FUCK YOU PROMOÇÕES ARTÍSTICAS. Mas não havia “equipe”. Havia apenas minha vontade de divulgar o mundo do rock, que eu estava descobrindo lá no meu cantinho do mundo, em Itabaiana, Sergipe. Eu, apenas eu e só eu, com toda a minha verborragia “aborrescente” (tinha 17 anos) e aquele linguajar arrogante de quem não sabe de nada mas acha que já sabe tudo – "Fuck or get fucker", que porra eu queria dizer com isso?!!!! Com o tempo e o passar das edições fui cedendo e aceitando colaborações, especialmente as de um amigo que era fanático por cinema, o que diversificou o conteúdo mas desvirtuou um pouco a proposta original – o cara fez uma matéria enorme com uma biografia de Marilyn Monroe!

“Fanzine”, entre aspas, porque eu nem sabia que estava fazendo um fanzine – isso já virou até folclore, mas é verdade. Chamava de “apostilha”. Só depois, quando a noticia de que havia uma publicação independente dedicada ao rock circulando pelo interior do estado chegou à capital, mais precisamente aos olhos e ouvidos de Silvio, vocalista da Karne Krua, e de Antonio Passos, um dos proprietários da Distúrbios Sonoros – a primeira loja especializada em rock da cidade – e produtor do programa “Rock Revolution”, que ia ao ar aos sábados pela Atalaia FM, eu fui saber o nome do que estava fazendo. Uma revista de (e para) fãs. Um fanzine.

Passos me conseguiu, gratuitamente (a distribuição também era gratuita) uma tiragem de 100 exemplares para uma das edições através da repartição pública onde trabalhava, e com isso minha “obra” passou a ter um alcance maior. Silvio me mandou uma carta, na verdade um pacotão cheio de materiais impressos e xerocados, saudando minha iniciativa e me convidando a se juntar a uma verdadeira rede de comunicação que eu não fazia a mínima idéia de que existia, através de flyers – papeizinhos que divulgavam outras publicações – panfletos – quase todos dedicados aos ideais punks e anarquistas – e outros fanzines, de todo o Brasil.

Fiquei maravilhado. Tanto que dediquei uma edição inteira à divulgação daquele material. Na verdade eu já tinha algum contato com um pessoal “de fora”, mas de forma ainda bastante tímida. Não me lembro como cheguei até eles, mas muito provavelmente foi através da sessão “Headbanges Voice”, da revista Rock Brigade. Lembro apenas que eram dois correspondentes – um de Teresina, Piauí, outro de Belém do Pará. Um deles me mandou inclusive uma fitinha gravada com a Dorsal Atlântica (acho que “Antes do fim”) de um lado e uma banda local, provavelmente o Megahertz, do outro. Mas aquilo que Silvio me mostrava era algo muito além do que eu imaginava. Era uma verdadeira corrente militante, muito rica e ativa e com ideais mais ousados que a simples busca por diversão descompromissada que parecia ser mais a onda do pessoal do metal.

Não me transformei em nenhum punk, no entanto. Na verdade houve uma quebra de continuidade no meu trabalho logo no ano seguinte, 1989. Entrei para a Universidade – UFS, Federal de Sergipe – e o ambiente acadêmico, associado à descoberta do marxismo, me dominou. Parei de publicar o Napalm. Na faculdade, ajudei a criar uma outra publicação, desta vez de forma mais coletiva e colaborativa. Se chamava “Anti-Tese”, era cheio de teses pouco amadurecidas e confusas e, por isso mesmo, teve apenas duas edições. Mas chegou a chamar a atenção no campus, provavelmente por ser uma iniciativa independente, desvinculada da luta partidária que dominava o movimento estudantil – nosso grupo oscilava entre o anarquismo, o comunismo – do “partidão”, o “Brizolismo” e o “petismo”. E o Nacional Socialismo! Havia um entre nós que se autointitulava “skinhead” – ou “careca do Brasil”, apesar de ser negro (!!!) e vivia para cima e para baixo com um livro chamado “Holocausto, judeu ou alemão”, de um tal S. E. Castan, um nazista gaúcho que se dedicava a negar o holocausto e pregar que o nazismo não era racista, mas nacionalista. Por aí dá pra se ter uma idéia do nível da confusão mental em que este meu grupinho de jovens calouros militantes estava mergulhado ...

Em 1990 deixei a faculdade e fui trabalhar nas empresas de minha família. Voltei ao mundo do rock “underground” e, em 1991, lancei um novo fanzine, o “Escarro Napalm”. Com este fui mais persistente: publiquei-o por cinco anos ininterruptos, com tiragem e periodicidade variável – de 100 a 150 exemplares que saiam a cada seis meses, aproximadamente – e consegui bem mais do que esperava conquistar.

Uma grande conquista foi o convite para participar, como “palestrante”, de um grande festival de rock independente, o BHRIF, que aconteceu em Belo Horizonte em 1994. Mas a maior de todas, sem sobre de dúvidas, foi a rede de amigos que fiz por todo o Brasil – o primeiro deles foi Fellipe CDC, do Distrito Federal. Foi dele a primeira carta que recebi em resposta ao envio do numero 1 do escarro. Nunca vou esquecer.

Há uns 7, 8 anos, eu estava na casa de meu amigo Lenaldo, em Itabaiana, quando apareceu por lá um camarada de quem eu, confesso, não lembrava mais. Seu nome era Aldo e ele havia sido, veja só, o “feliz ganhador” de uma fita cassete (OH!!!) que eu havia sorteado entre os leitores de meu primeiro fanzine, o NAPALM – o nome foi inspirada na célebre casa noturna paulistana do início dos anos 80. Isso havia sido há mais de 20 anos e, para minha extrema surpresa, o cara ainda tinha a tal fita! Intacta, em perfeito estado! Nela, uma compilação com o “supra-sumo” do Heavy Metal da época – Iron Maiden, Ozzy Osbourne, Megadeth e Metallica. Confesso que fiquei emocionado em ver aquela sementinha que eu havia plantado lá atrás ainda germinando e reverberando, tanto tempo depois...  

A.

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terça-feira, 12 de abril de 2016

Benazir Bhutto

Benazir Bhutto, nascida em Karachi no dia 21 de junho de 1953, foi a primeira mulher a comandar um estado muçulmano moderno. Por duas vezes. E não foi um estado qualquer: o Paquistão, por sua posição geopolítica estratégica, tem sido terreno de disputa acirrada entre interesses imperiais e imperialistas diversos ao longo do tempo. Uma disputa banhada em sangue de mártires ...
 
Benazir era filha de Zulfikar Ali Bhutto, político de tendência socialista que assumiu a presidência em 1971, dando início a um grande projeto de nacionalização e a uma ambiciosa reforma agrária. Conquistou a admiração do povo, mas desagradou setores poderosos, como o empresariado, o clero islâmico e as Forças Armadas. Foi deposto, condenado à morte e por fim executado pelo governo oriundo de um golpe de estado comandado pelo general Muhammad Zia-ul-Haq.
 
Zia-ul-Haq era um daqueles “ditadores amigos” do “Grande Irmão do norte”, os Estados Unidos da América, país que posa de farol da democracia mas que não hesita em apoiar regimes ditatoriais e autoritários quando lhe é conveniente – vide a longa relação fraternal com o brutal regime saudita. Na ocasião, eles precisavam do Paquistão para deter o avanço dos soviéticos no Afeganistão. O novo “amiguinho” dos ianques aproveitou a chancela para fazer um governo corrupto, violento, repressor e “islamizante”. Também ajudou a armar, para os americanos, os “mujahedins”, como eram chamadas as milícias combatentes do país vizinho que posteriormente dariam origem ao Taleban e à Al Qaeda.
 
O ditador tinha, no entanto, uma pedra encrustrada em seu sapato: a filha mais velha de seu antigo desafeto, Benazir Bhutto, que havia jurado vingança pela morte do pai, só que por via democrática e pacífica – “a democracia é a melhor vingança”, ela dizia. Ele – o ditador - não sobreviveu, no entanto, para presenciar sua vitória: morreu no dia 17 de agosto de 1988, quando o avião em que viajava com o embaixador dos Estados Unidos e outras 28 pessoas foi sabotado e caiu minutos depois de decolar do aeroporto de Bahawalpur. A autoria do crime é, até hoje, um mistério.
 
Benazir assumiu o cargo de primeira-ministra do Paquistão no mesmo ano, depois de uma longa trajetória de militância política na qual permaneceu presa por cerca de 7 anos, parte deles em condições subhumanas. Ficou tanto tempo confinada numa solitária que, por um período, teve que se comunicar através de bilhetes, já que havia perdido a capacidade de falar - sua mandíbula estava atrofiada. Mas falou, e muito, quando foi finalmente libertada e exilada, como fruto de uma forte pressão internacional. Percorreu o mundo denunciando os crimes da ditadura, até finalmente ascender ao poder.
 
Seu primeiro governo foi conturbado e sofreu forte oposição dos setores conservadores, dentre eles os militares, que não se sentiam nem um pouco à vontade em ter que prestar continência a uma mulher. Chegaram, inclusive, a tentar convencer seu marido, Asif Ali Zardari – depois presidente do Paquistão - a ocupar seu lugar. Com pouca habilidade para se manter no comando da nação, foi deposta dois anos depois – mas voltou ao cargo em 19 de outubro de 1993, quando ganhou um novo mandato após mais uma vitória eleitoral de seu partido, o PPP – Partido do Povo do Paquistão.
 
Mais experiente, fez um governo melhor, mas voltou a ser deposta em 1996 sob denuncias de corrupção e improbidade administrativa. Foi também acusada de tramar a morte de seu irmão, com o qual tinha uma querela política desde que ela, e não ele, como era mais comum na tradição local, havia sido escolhida como herdeira por seu pai. Acuada, em 1999 se auto-exilou em Londres e Dubai, onde cuidava da família ao mesmo tempo em que continuava sua militância política – consta que, às 19H, fizesse o que estivesse fazendo, em alguma palestra ou encontro com Chefes de estado, pedia licença pois precisava voltar para casa para jantar com seus filhos.
 
Voltou ao Paquistão no dia 18 de outubro de 2007, sob forte comoção popular, depois de uma anistia promulgada pelo general/presidente Pervez Musharraf. Já na chegada, no entanto, sofreu um primeiro atentado, quando duas explosões ocorreram em meio à multidão de cerca de 100.000 pessoas, perto dos carros da sua comitiva, matando ao menos 140 e ferindo mais de 200. A ex-primeira ministra, entretanto, não foi atingida - e não fugiu! Morreu vítima de um novo ataque reivindicado pela Al Qaeda dois meses depois. O ataque ocorreu enquanto seu carro trafegava, seguido por simpatizantes, e ela acenava para a multidão pelo teto solar do veículo. Bhutto foi alvejada no pescoço e no peito, possivelmente por um homem bomba que, em seguida, se explodiu, provocando a morte de cerca de 20 pessoas.
 
Falei em martírio no primeiro parágrafo. Benazir foi, também, martirizada. Foi uma mártir da tolerância e da causa democrática. Sua trajetória, em certos aspectos, principalmente por sua vocação para a conciliação, pode ser, a meu ver, comparada à de outro grande líder carismático de esquerda, o nosso ex-presidente Lula. Ambos compartilhavam algumas características, como a opção por uma política transformadora porém moderada e a grande empatia com o povo – Benazir fez uma festa popular à qual compareceu uma verdadeira multidão por ocasião de seu casamento. Ambos sofreram, também, pesadas acusações de corrupção – como de praxe, aliás: parece ser um caminho “natural” para a derrubada de governos populares ao redor do mundo. Foi assim também no Brasil, no passado, com os ex-presidentes Jango, Juscelino e Getúlio Vargas.
 
Juscelino, Getúlio e Jango estão mortos. Benazir Bhutto também. Lula está vivo, e no olho do furacão. Sobreviverá? 
 
Quem viver, verá.
 
por Adelvan Kenobi
 
para Joanne Mota
 
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quinta-feira, 27 de agosto de 2015

1 Ano sem Roberto Nunes, do "Cine Cult"

(NOTA: Matéria publicada originalmente no jornal Folha da praia) Ele passou mal durante a madrugada e foi ao hospital, mas se recusou a ficar internado. Apresentava um caso grave de hemorragia no sistema digestivo, e só saiu de lá depois de assinar um termo de responsabilidade. O quadro piorou quando ele voltou pra casa e em duas horas precisou voltar ao pronto socorro. Tarde demais: O produtor cultural Roberto Nunes, responsável pela programação nacional das Sessões “Cine Cult”, do Cinemark, faleceu na madrugada do dia 15 de julho do ano passado, aos 47 anos. Em Natal, RN, para onde havia se mudado há cerca de 1 ano. Era um tremendo “cabeça dura” que vivia brigado com Deus e o mundo, mas era também um agitador, responsável por alguns dos projetos mais inusitados que vimos por estas plagas e que geraram noites memoráveis no saguão do principal complexo cinematográfico da cidade. Faz falta ...

Não posso dizer, no entanto, que me surpreendi com a notícia. Roberto bebia e comia muito, de tudo, e não controlava nem a diabetes nem a hipertensão. Cansei de recusar convites para acompanhá-lo nas madrugadas por botecos e biroscas da cidade. Aceitei alguns, como na noite em que degustamos uma deliciosa macaxeira com carne ensopada num treiler ao lado da rodoviávia velha, no centro. Quem conhece o “pico” sabe que aquele não é, especialmente naquele horário, um ambiente freqüentado pelas famílias da sociedade sergipana ...

Roberto era paulista do interior, de Bauru – notava-se isso facilmente por seu sotaque carregado no “erre”. Veio parar em Aracaju acompanhando sua mulher, que havia se apaixonado pelo calor – humano e climático – de nossa terra. Por aqui, continuou trabalhando com sua grande paixão: o cinema. Sucedeu Ivan Valença na programação dos filmes alternativos que eram exibidos nas extintas salas, pré-multiplex, do Grupo Severiano Ribeiro. Com o advento do Cinemark, emplacou a Sessão “Cine Cult”, que seguia mais ou menos a mesma linha, mas tinha maior regularidade e, aos poucos, foi arrebanhando um público cativo e significativo, ao ponto da rede criar um circuito que chegava a 16 capitais de todo o país. Tudo coordenado a partir daqui, de Aracaju. Pelo Roberto.

Aos poucos ele foi se aventurando por novos projetos – sempre ligados, de alguma forma, à sétima arte. Trouxe à cidade a “Virada Cinematográfica”, que já existia na capital paulista e consistia na exibição de três filmes em sequencia, a partir da meia-noite, com um café da manhã sendo servido aos sobreviventes da maratona. A primeira aconteceu na madrugada do dia 15 de junho de 2008 e foi um tremendo sucesso. Teve várias edições e gerou um novo projeto, ainda mais ousado: As Sessões “Notívagos”, nas quais um filme seria exibido e na sequencia o público acompanharia, no saguão do cinema, à apresentação de uma ou mais bandas, geralmente oriundas do circuito independente e/ou alternativo, local e nacional.

Na primeira edição foi exibido o filme “Repulsa ao sexo”, de Roman Polanski, estrelado por Catherine Deneuve, seguido de uma apresentação da banda sergipana The Baggios. Foram noites memoráveis, como a que uniu “Guidable”, documentário sobre a trajetória da mais importante banda punk do Brasil, o Ratos de Porão, com uma apresentação da Karne Krua, nossos heróis da resistência. Ou o show da Plástico Lunar precedido pela exibição do filme dos Rolling Stones dirigido por Martin Scorcese. Ou ainda o memorável encontro do Retrofoguetes, de Salvador, com a Pata de elefante, de Porto Alegre – dois dos maiores expoentes da música instrumental nacional.

Mas nem tudo era perfeito: Roberto era intransigente, desorganizado e, por isso mesmo, desestruturado. Deixava faltar cerveja no bar e “contratava” (as “vítimas” entenderão as aspas) estruturas além de suas possibilidades. Quando não conseguia, improvisava: deu uma certa vergonha alheia o som com o qual o Cidadão Instigado teve que se virar para tocar. Idem para os show do Eddie e do Autoramas. Que, no entanto, aconteceram. E foram – repito – noites memoráveis, gravadas para sempre na memória de quem compareceu.

A última vez que eu encontrei Roberto foi em mais um aniversário do Cine Cult, no qual foi exibido o clássico de Alfred Hitchcock, “Os pássaros”. Estava acompanhado de sua esposa, uma pessoa queridíssima que conheci pouco, mas pela qual tenho uma grande estima. Minto: encontrei com ele, também, na saída da exibição de “A Laranja Mecânica”, do projeto de exibição de filmes clássicos do cinemark. Projeto que, no final das contas, acabou substituindo o Cine Cult.

Que, no entanto, faz falta.

Ainda.

A.

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quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Necro.

Vem de Alagoas – terra do Mopho! - uma das maiores promessas de renovação do cenário do rock independente nacional: a banda Necro. Trata-se de um “power trio” formado em 2009, em Maceió, com o nome de “Necronomicon”, em referência ao livro dos mortos da mitologia lovecraftiana. Influenciados pela psicodelia, pelo rock progressivo e pelo Hard rock “setentista”, conseguiram chamar a atenção de um pequeno selo norte-americano especializado no estilo, o Hydro-phonic records, que lançou no mercado internacional, em vinil, seus dois únicos álbuns – que foram precedidos por um EP de estréia, lançado em 2011.

O primeiro, “Queen of death”, de 2012, é um disco conceitual cantado em inglês que conta, em suas letras, uma história baseado num conto de fantasia e ficção científica escrito pelo baixista/vocalista Pedro Ivo. Se fosse "quadrinizado", poderia ser publicado na célebre revista “Heavy Metal”. Narra as desventuras de um assassino contratado para matar a tal Rainha da Morte, líder de um culto poderosíssimo baseado em Yamoth, o planeta sagrado. É para lá que somos levados através de musicas longas com vários mudanças de andamento e refrões poderosos entremeados por riffs de guitarra precisos – as seis cordas são comandadas por mãos femininas, de Lillian Lessa, uma fiel discípula de Tony Iommy, o lendário guitarrista do Black Sabbath, e sua Gibson SG batizada nos quintos dos infernos.

Para o segundo disco – homônimo, lançado no ano passado - abreviaram o nome da banda e vieram com uma proposta mais diversificada, com parte das letras em português e a presença marcante da guitarrista Lillian assumindo, também, os vocais principais, em algumas faixas. O resultado foi impressionante! Trata-se de uma verdadeira obra-prima, perfeita já a partir da capa, magnificamente elaborada por Cristiano Suarez. Excelentes composições num clima totalmente “retrô”, com direito a uma “balada Heavy Metal”, daquelas que começam suavemente para logo em seguida explodir numa barulheira infernal, e um solo de bateria, a mais anacrônica das manifestações musicais.

Deliciosamente anacrônica, a Necro navega contra a maré de mediocridade que impera no cenário “roqueiro” tupiniquim. Tem vencido pela persistência e pela qualidade, e aos poucos vão chamando a atenção por onde passam, em incursões esporádicas pelos estados vizinha e por São Paulo, onde são “apadrinhados” pelo lendário Luiz Calanca, criador da primeira loja e selo independente da galeria do rock.

E não param! Lançaram um novo single, “Contact”, e o casal, Pedro e Lillian, tem se aventurado em carreiras solo promissoras, com dois EPs  precedidos de uma seqüência de singles matadora que inclui uma sensacional homenagem a Salvador Allende cantada – por Lillian – em francês! Um charme! Come se não bastasse os dois fazem parte, ainda, do Messias Elétrico, outra sensacional banda alagoana que conta, em suas fileiras, com ex-integrantes da Mopho.

Você precisa conhece-los! AGORA! 


A.


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quinta-feira, 18 de junho de 2015

KARNE KRUA

Karne Krua, a mais importante banda de rock de Sergipe, começou há exatos 30 anos, no início de 1985, na cidade de Aracaju. É, muito provavelmente – quase que certamente - a mais antiga banda de punk rock em atividade na região nordeste do Brasil. Em atividade ininterrupta! É muito comum que bandas de rock “underground” se formem, marquem uma época – ou não – e então sucumbam às dificuldades e interrompam suas atividades, pelo menos por um tempo. Às vezes por um longo período. Isso não aconteceu com a Karne Krua: eles nunca pararam! Houve uma grande rotatividade de membros, ao ponto de existir, na formação atual, apenas um componente egresso do “line up” original: Silvio Campos. Que já era inquieto e montava bandas – The Merda´s (com Helder “podre”, o DJ Dolores), Sem Freio na língua – desde o final da década de 1970. Ainda hoje, incansável, toca diversos projetos ao mesmo tempo, indo do blues da Máquina Blues ao “grindcore” da Logorréia.  

Dificuldades não faltaram: nos primórdios, eles eram vigiados de perto por camburões da polícia ao saírem nas ruas com seu visual agressivo, especialmente para uma capital provinciana, num país recém-saído de uma ditara militar brutal. As oportunidades de se apresentar eram raríssimas, e geralmente esbarravam na falta de equipamentos e de estrutura. Mesmo assim, gravaram fitas “demo” (de “demonstração”, não é o que você provavelmente está pensando) caseiras e as espalharam por todo o Brasil, criando uma verdadeira lenda em torno de seu nome. Raramente foram muito longe, em termos estritamente geográficos – uma apresentação em Brasília há cerca de 5 anos é o máximo que consigo lembrar – mas estão sempre se apresentando por aqui e pelas cidades e estados vizinhos. Na maioria organizando, eles mesmos, os seus próprios eventos e shows, na melhor tradição punk que legou ao mundo a cultura DIY, de DO IT YOURSELF – Faça você mesmo!

Em 1994 conseguiram lançar, finalmente, seu primeiro disco, ainda em vinil. Karne Krua, o álbum, foi gravado no Recife devido à escassez de estúdios na cidade. Produzido e distribuído de forma absolutamente independente, teve uma repercussão morna: o repertório era impecável, maturado ao longo dos anos e com verdadeiros clássicos do cancioneiro roqueiro local, mas a produção musical deixou muito a desejar e a época, com todos ainda muito empolgados com a transição para as mídias digitais, então em ascensão, não ajudou. Hoje é item de colecionador ...

Seguiram trocando de formação e lançando demos até que, no início do novo século, conseguiram colocar na praça, desta vez com a ajuda do poder público, via lei de incentivo – municipal – o primeiro CD, “Em Carne Viva”. O lançamento do disco foi histórico, com um show lotado no espaço EMES que comprovou a incrível capacidade da banda de renovar seu público.

O maior triunfo, no entanto, ainda estava por vir: o álbum “Inanição”, uma verdadeira obra-prima do gênero em terras brasilis. Gravado num momento de transição, ainda com o grande baterista Thiago “Babalu”, que se mudou para São Paulo e hoje toca com Deus e o mundo por lá, e Alexandre, o guitarrista, fazendo também o papel de baixista, demorou uma eternidade para ser lançado. Só veio ao mundo em 2012, exatos dez anos depois do segundo. Mas valeu a pena a espera: trata-se de uma impecável coleção de canções que, alinhadas, traçam um impressionante painel de angustia e revolta diante das injustiças do mundo, do drama dos retirantes ao sofrimento dos animais usados em testes de laboratório. E tem, pelo menos, um novo clássico: a música título, “inanição”. Nele a banda consegue finalmente registrar todo o potencial que, até então, só se revelava em toda a sua plenitude em cima do palco. É um registro que não pode faltar na coleção de ninguém que se diga apreciador do combativo e altivo punk rock nacional.

Hoje, 30 anos depois do começo de tudo, lá no Conjunto Bugio, a Karne Krua volta às origens com um som mais cru, urbano, “Hard Core”, virando a página das influências que moldaram sua personalidade ao longo do tempo – notadamente os “aboios” sertanejos e, paradoxalmente, o chamado “som de Nova York”, difundido por nomes como Biohazard e Agnostic Front – para fechar um ciclo e tomar impulso para novas jornadas. Voltaram, inclusive, ao vinil: lançaram, no ano passado, um EP de 7 polegadas – mais conhecido em outras eras como “compacto” – em parceria com a banda brasiliense “Besthoven”. E agora, em 2015, trazem ao mundo seu novo álbum de inéditas, “Bem Vindos ao Fim do mundo” ...

Trata-se de um LP (Long Play) de vinil lançado em conjunto por 11 selos independentes e pelo programa de rock (19H, todo sábado,  104,9 FM em Aracaju e região) emoldurado por um belíssimo trabalho gráfico assinado pelo guitarrista Alexandre Gandhi (capa) e pelo baixista Ivo Delmondes (layout). Desta vez foi inteiramente produzido em sua cidade natal. Pela própria banda, “with a little help from her friends”. São 18 faixas talhadas a ferro e fogo na energia primal da música feita com a alma e as vísceras expostas. Ainda em carne viva, e sem concessões. Sempre!

Em Aracaju, o disco pode ser encontrado na “Freedom”, que fica na Rua Santa Luzia, 151, próximo à Catedral Metropolitana. Vá lá, compre o disco e troque uma idéia com Silvio, o vocalista. É dele, a loja.

Um verdadeiro Herói da resistência.

por Adelvan k.

fdp

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sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

povo pop no poder

Luiz Inácio Lula da Silva contou com a aprovação de 87% da opinião pública ao sair do Planalto. A popularidade colossal faz dele um dos governantes mais bem-sucedidos da história contemporânea, e o de maior êxito num período democrático: foi eleito, reeleito e passou o cargo a uma sucessora que escolheu à revelia das forças que o sustentavam, além de jejuna nas urnas. O triunfo de Lula se deve à percepção de que, ao longo da sua Presidência, houve aumento real do salário mínimo, dezenas de milhões de brasileiros passaram a comprar o essencial para viver e uma parcela significativa do povo dispôs de bolsas estatais para dirimir a miséria. Noutra esfera da sociedade, a do privilégio, nunca na história deste país os poderosos – do exterior e do interior – ganharam tanto. Em termos econômicos, o governo do petista foi a favor de todos, e conseguiu agradar a quase todos.

Como a vida não é só economia, ainda que ela a determine, há outras maneiras de explicar a popularidade de Lula. Duas imagens de seu governo ajudam a pensar o que aconteceu nos oito anos em que esteve à testa do Estado. Na primeira, em abril de 2009, ele estava numa reunião do G20, em Londres, e o presidente americano aproximou-se para cumprimentá-lo. This is the guy, disse Barack Obama aos que estavam em torno, apontando o brasileiro. I love this guy. The most popular politician on Earth. Because of his good looks. Amo esse cara, o político mais popular do planeta, porque ele é bonitão. Lá estava ele: o líder de uma nação pobre que parecia sair do buraco, o governante que seguira um caminho diverso do receituário neoliberal e dirimira a crise que vergava países poderosos. E lá estava o outro: o dirigente do império capitalista e gerente geral da Pax Americana.

Na segunda imagem, no feriado de Réveillon de 2010, Lula foi flagrado a distância, na praia de uma base naval na Bahia. Entrou duas vezes no mar, tomou uma chuveirada ao ar livre, bebeu uma latinha e, de camiseta, bermudão e sandália de dedo, botou na cabeça a caixa de isopor com as tralhas levadas à praia e foi embora. Lá estava ele: o menino do sertão pernambucano que foi de pau de arara para São Paulo, morou nos fundos de um bar e usava o mesmo banheiro que a freguesia, o metalúrgico que perdeu o dedo num acidente na fábrica, o sindicalista do ABC que ia à Praia Grande. Primeiro mandatário, ele continuava o mesmo brasileiro que aprendeu nas mesas dos bares que o nacionalismo é uma virtude.

Lulismo, Carisma Pop e Cultura Anticrítica passa pelas duas imagens para analisar como funcionou a figura do presidente na sociedade brasileira e no exterior. O autor do livro, o psicanalista Tales Ab’Sáber, vai à intersecção da cultura com a política para sustentar que o corpo de Lula tem uma dimensão simbólica: ele próprio é a encarnação do pacto social que sustentou o seu governo. Aquele corpo que em Londres foi elogiado por Obama é o de milhões de brasileiros que carregam um isopor na cabeça na praia, de todos os que compartilham uma história semelhante à dele, e nele se reconhecem. O presidente americano se referiu a ele com um linguajar que não é o da política (this is the guy) para sublinhar a sua popularidade e aparência (good looks). Para além dos dados econômicos, Lula tem carisma. E, como está no título do livro, esse carisma pertence ao universo pop e integra uma cultura que atenua antagonismos.



Carisma é a atração que um corpo desperta em outros corpos. O sujeito carismático, que expressa outros humanos e às vezes os lidera, tem um poder cuja origem é atribuída ao divino. As Escrituras registram a incorporação do sobrenatural no humano: o Verbo se fez carne. A partir da Antiguidade, e sobretudo na Idade Média, o corpo dos santos católicos manifestavam poderes excelsos. Santos curavam, faziam milagres. O carisma não está só na religião, passa igualmente pela arte e pela política. O herói artístico torna-se carismático porque assume uma responsabilidade social, como Aquiles na Ilíada. Os reis recebem unção da Igreja, que representa Deus, e têm eles também o dom da cura. Luís XIV, o Rei Sol, fez de Versalhes o theatrum mundi onde demonstrava o poder de seu corpo absolutista. Napoleão, ao ser sagrado imperador, tirou a coroa das mãos do papa e dispensou a intercessão do Vigário de Cristo. Fez-se por si mesmo representante da soberania francesa.

Depois de se aproveitar de crises para se livrar de dois ministros que ambicionavam a sua sucessão, José Dirceu e Antonio Palocci, Lula exerceu o poder plenamente. E desenvolveu uma política a favor dos extremos da sociedade, os milionários e os muito pobres. Para estes últimos, concedeu bolsas sociais, de no máximo 200 reais, a quase 13 milhões de famílias, introduzindo-as num universo mais amplo de consumo. Tais bolsas não ultrapassaram o custo total de 1% do Produto Interno Bruto. Mas, aos que vivem de rendas financeiras, em 2009 Lula destinou 5,4% do PIB apenas em serviços dos juros da dívida pública. No ano seguinte, os juros e a rolagem da dívida consumiram 45% do orçamento da União, 635 bilhões de reais. Com isso, diz Ab’Sáber, o presidente “cooptou amplamente os muitíssimo ricos”.

A ação bifronte resultou na anestesia da oposição. À direita, tucanos e DEM ficaram sem ter o que falar: a pregação deles se dirigiu às classes médias, que, se não se aproveitaram diretamente de bolsas sociais e juros estratosféricos, beneficiaram-se da melhoria geral dos indicadores econômicos. À esquerda, houve a agregação ao Planalto das centrais sindicais e o crescimento de fundos de pensão, que passaram a gerir parte significativa dos investimentos estatais e se associaram a grupos privados. Integraram aquilo que o sociólogo Francisco de Oliveira chamou de “nova classe” e desmobilizaram a militância radical.

Lula promoveu um acordo entre os socialmente antagônicos que foi a quadratura do círculo. Conciliação enunciada, sibilinamente, pelo próprio presidente: “Foi preciso um torneiro mecânico, metido a socialista, para fazer o país virar capitalista.” Como Lula há muito deixou de ser torneiro, o socialismo saiu do horizonte contemporâneo e o Brasil nunca deixou de ser capitalista, tal acordo se dá em condições peculiares: no corpo do presidente, que o avaliza pessoalmente. O seu carisma é isso.

O carisma teve muito de construção edificante, de obra de marketing. Mas também foi real e consistente, como na cena da praia baiana, na qual Lula se portou sem saber que era fotografado pela imprensa. Alguém consegue ver Fernando Henrique Cardoso carregando uma caixa de isopor de bermuda e camiseta? Mais fácil imaginá-lo de pulôver de cashmere e paletó de tweed com protetores de couro nos cotovelos.

Para Lulismo, o alcance da imagem de Fernando Henrique Cardoso era de outra ordem. O presidente do PSDB “tinha imenso impacto de personalidade apenas sobre o seu grupo social, bem paulistano, que envolvia dois ou três departamentos de universidade e três ou quatro bairros ricos da cidade”, diz o livro. “O seu imenso amor por si mesmo, expresso na forma de vaidade, jamais totalizou o amor e a confiança dos brasileiros a seu respeito, brasileiros a quem mais de uma vez o presidente tucano se referiu como ‘caipiras’.”

Conscientemente, Lula fortaleceu a sua imagem identificatória com os brasileiros. Promoveu todos os anos em Brasília festas juninas, para as quais se vestia a caráter. Ofereceu churrascos a auxiliares e aliados. Falava de política com termos do futebol e disputou peladas em fins de semana. Ia a programas de televisão popularescos e se comportava como animador de auditório. De camiseta canarinho, tocou vuvuzela na Copa do Mundo. O rei não estava nu como na fábula. Foi um dos do povo que chegou ao poder, como aliás pregava o seu antigo jingle de campanha: Lula lá. De lá, do Planalto, ele dizia ao povo que a expansão do salário mínimo e do crédito era o máximo que ele poderia oferecer aos seus iguais em origem. O carisma cerrava o vínculo com os governados, que nele projetaram as suas aspirações e realizações.



Na história republicana, outro presidente teve um carisma que emanou da base empobrecida da sociedade, Getúlio Vargas. Houve semelhanças entre ele e Lula: atenção ao salário mínimo, codificação de direitos populares, algo da demagogia, benesses à burguesia – industrializante num caso, financeira noutro – e elementos de bonapartismo, no qual o líder paira sobre os conflitos das classes. Mas as diferenças entre eles eram grandes. Getúlio foi golpista em 1930,  depois ditador militar e por fim populista eleito até o seu suicídio – gesto altamente carismático – em 1954.

Lula agiu num cenário com elementos legados pelo varguismo, dos quais Lulismo fala de maneira muito breve. Em vez disso, o livro vai ao cinema para ver a continuidade entre Getúlio e o presidente petista. Num momento forte do ensaio, Ab’Sáber volta-se para o personagem Jerônimo, o sindicalista de Terra em Transe. No filme de Glauber Rocha, numa sequência na qual sambistas, militantes do Partido Comunista, um acadêmico de fraque e agentes de segurança dançam no transe que precedeu o golpe de 1964, Jerônimo, o representante dos trabalhadores, é instado a falar. Ele diz:

Sou um homem pobre, um operário, sou presidente do meu sindicato, estou na luta das classes, acho que está tudo errado, e eu não sei mesmo o que fazer. O país está numa grande crise e o melhor é aguardar a ordem do presidente.

Paulo Martins, o jornalista e poeta que trocara a fidelidade à elite pelo apoio à demagogia populista, tapa a boca de Jerônimo, olha direto para a câmara, para quem assiste ao filme, e, ainda que com a crítica do distanciamento brechtiano, recai na rudeza oligárquica:

Estão vendo o que é o povo – um imbecil, um analfabeto, um despolitizado! Já pensaram um Jerônimo no poder?

A cena de Terra em Trans e está entre os momentos capitais do cinema nacional. Em Verdade Tropical, Caetano Veloso escreveu a respeito dela que “nada do que veio a se chamar de ‘tropicalismo’ teria tido lugar sem esse momento traumático”. Para o compositor, a sequência do filme marcou a morte de sua “fé nas forças populares – e o próprio respeito que os melhores sentiam pelos homens do povo”. Num poderoso ensaio recém-publicado no livro Martinha Versus Lucrécia, Roberto Schwarz retomou a cena e a interpretação de Caetano Veloso. Para o ensaísta, as conclusões do cantor “enxergavam oportunidades e saídas onde o filme de Glauber desembocava em frustração nacional, autoexame político e morte”.

Para Ab’Sáber, o sindicalista que é manipulado pelo populismo e calado pelo intelectual de esquerda na crise de 1964 não é Jerônimo. É Lula. Nascido no chão da fábrica da industrialização getulista, ele é o operário que se politiza depois do golpe. Não era tutelado pelos pelegos nem pelos intelectuais, e o PCB se opõe a ele. Sua força no panorama nacional dependia da categoria que o elegeu para dirigir o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema. Quando comanda greves e passa a construir o Partido dos Trabalhadores, sua liderança se estende à classe operária e ao conjunto dos trabalhadores. Segundo Ab’Sáber, Lula “representou todos os anseios reprimidos de voz e confronto com a ditadura militar”.

Essa militância de classe, que não se prestava às manobras da política tradicional e do stalinismo, como ocorrera na luta popular do início dos anos 60, teve enorme potencial. É o que sustenta Lulismo:

Lula não representava, como todos sempre o soubemos, a liderança do novo, amplo e de esquerda Partido dos Trabalhadores; ele, desde o início e sempre, foi a liderança esperançosa de todos nós, com alguns traços messiânicos, embora muito esmaecidos, da tradição imaginária dos revolucionários de esquerda. Desde o início, o desejo inconsciente que o colocava naquela posição já aspirava e sonhava que ele se tornasse o líder de todos os brasileiros.

Nessa condição, Lula pôde aplastar, ao longo de trinta anos de petismo, não só o PCB como todas as forças da esquerda que se juntaram para construir o partido, oriundas da luta armada, da Teologia da Libertação, do castrismo, de dissidências do populismo radicalizado e do trotskismo. Junto com elas, foram sendo marginalizados também intelectuais como o Paulo Martins de Terra em Transe. Ab’Sáber cita uma entrevista de Marilena Chaui, em 2009, que capta o deslumbramento dos letrados com o movimento no qual o ímã eram os trabalhadores. Ela disse:

Sobretudo na fase inicial, havia um laço entre os intelectuais, os sindicalistas e as lideranças de movimentos populares que era impressionante. Eu tenho o caderno das primeiras grandes reuniões, dos cursos que foram organizados, em que eu anotava até a respiração de cada um. Com aqueles operários e aquelas lideranças eu aprendi a pensar, a ver a política a partir deles, e eles diziam o mesmo de nós.

A especialista em Spinoza que “anotava até a respiração de cada um” e dizia que aprendia “a pensar” com os operários prefigura um quadro no qual a discussão e a crítica passam para um segundo plano. Ab’Sáber nota que as atitudes de Lula sempre foram um tanto diferentes do petismo, e ao longo do tempo foram se distanciando ainda mais: ele “se colocou no espaço público de modo relativamente soft, agregador, mediador, cordial, de modo a merecer pessoalmente, no trato quase individual com cada um, o imenso desejo político”. O líder se impõe ao partido na mesma medida em que a sua figura pessoal vai se compondo com as camadas acima e abaixo da sociedade. Esse percurso tem momentos de tensão, como o afastamento ou a domesticação de diversos grupos do pt. Ao chegar ao poder do Estado, o partido havia abdicado do ideário da esquerda independente. E Lula permanecia o mesmo. Agora, ele era Jerônimo: tinha uma política própria. Mas ela era de conciliação.



O carisma do presidente se manifestou por completo no Planalto. Ele encenou “o seu teatrinho de fantoches de luta de classes, que não enganava ninguém, da luta entre o seu povo brasileiro e as elites deste país”. Esse “não enganava ninguém” pode parecer exagerado. Mas ao lado de José Sarney, o representante por excelência do patrimonialismo, alvejado pela enésima denúncia de nepotismo e corrupção, Lula o classificou de um político “incomum”, e conclamou a todos a prosseguir na luta contra as “elites”. O transe do pré-64 ressurgia, agora, orquestrado por Jerônimo.

Nesse ponto, a análise de Lulismo passa do nacional para o internacional, e da política para a cultura. No plano interno, emergiram os trabalhadores mais pobres, mas apenas enquanto consumidores, que aqui receberam o apelido neutro de “nova classe média”. No externo, os ciclos de crises capitalistas se tornaram uma convulsão contínua, pegando em cheio os países centrais. O novo mercado brasileiro passou a contar mais para o sistema econômico mundializado, que se interessa por ele. O interesse é percebido na crescente atenção pelo Brasil e por Lula na imprensa americana e europeia, principalmente a econômica, mas não só ela. Jornais e revistas viram no petista alguém que não resvalava para as atitudes tradicionais da esquerda e do populismo, como Chávez na Venezuela: tudo se fazia aqui dentro da ordem, sem mobilização, nacionalizações e expropriações. O processo culminou na famosa capa da Economist, em novembro de 2009, revista inglesa que Ab’Sáber classifica de “vanguarda neoliberal radical”, e dela diz:

Brazil Takes Off, “o Brasil decola”, com o famigerado Cristo Redentor decolando rumo aos céus como um foguete, em uma espécie de imagem neotropicalista, internacional brega, muito apropriada ao jogo de popular e avançado do lulismo para fora, do lulismo pop.

O presidente deixou de ser um símbolo local para se tornar universal, num panorama internacional em que o Brasil ganhou realce. Tanto que o país e o presidente foram presenteados com a oportunidade de sediarem a Copa do Mundo e a Olimpíada. E por isso Lula virou “o cara” para “um Obama em busca de alguma referência para o próprio descarrilamento econômico e social de seu mundo”. Ainda que o americano tenha demonstrado inveja ao tratar o brasileiro, houve também uma ponta de condescendência. Ele foi encarado como um pequeno boneco de pelúcia inofensivo, com uma expressão brava divertida. O bichinho por sinal existe. Foi criado pelo artista plástico Raul Mourão, o “Lulinha paz e amor”, e segundo Ab’Sáber ele é “a obra-prima da época”.

Obra-prima possível porque outras operações ocorriam no domínio da cultura no Brasil e lá fora. Lentamente, as artes e a cultura deixaram de pensar o presente criticamente e renderam-se à lógica da circulação de mercadorias. Sem mediações, foram do sujo solo pátrio às imagens da propaganda mundial. O movimento geral tende à esterilidade, por um lado, e, pelo outro, à celebrização de astros. É o mundo dos valores imateriais e ideológicos. Das leis de incentivo cultural. Do colecionismo elegante de grandes empresas em busca de verniz artístico. De cantoras que são “garotas bonitinhas ligeiramente fashion que, a julgar por sua música, nunca foram tristes, nunca tomaram um porre ou um tapa na cara”. Das Beatriz Milhazes, “que vendeu um quadro com a sua estamparia de vestido hippie da Praça da República por um milhão dedólares”. Do ensaísmo que só fala de coisas muito mortas, para mumificá-las. Das megaexposições que são mais espetáculo que raciocínio. Dos anúncios de loiras lânguidas em poses de transgressão dark que ocupam as primeiras páginas dos cadernos culturais de jornais para propagandear artigos de luxo. De roqueiros sessentões com os cabelos pintados de acaju à la Sarney, gritando pela enésima vez, mas agora em playback, hinos de rebeldia juvenil de há muito incorporados ao repertório do conformismo.

Esse universo é o do pop, aquele em que o artista é mercadoria fantasmagórica. Um universo que obviamente não se materializou ontem nem anteontem. No ciclo de palestras que Oscar Wilde fez nos Estados Unidos, no final do século XIX, o artista foi tratado e se comportou como um ídolo pop. Lula e Obama participam desse circuito. O primeiro transita entre o auditório de Ratinho e palestras em que recebe títulos universitários mundo afora. Não é, como Oswald de Andrade falou de Rui Barbosa, “uma cartola na Senegâmbia”, mas o seu contrário: um pau de arara entre doutores, o metalúrgico metido a socialista que celebra o capital. E Obama, no seu cartaz de campanha com a palavra Hope, está mais para um modelo de Andy Warhol do que para o comandante de operações colonialistas no Iraque e no Afeganistão.



Na última semana de novembro de 2010, a um mês do fim do segundo governo de Lula, Paul McCartney se apresentou em São Paulo. Também fizeram shows na cidade Lou Reed, o guitarrista Jeff Beck, o jazzista Ornette Coleman e a cantora Martina Topley Bird. Para Ab’Sáber, tivemos, então, “uma boa medida de nossa nova presença no circuito mundial de cultura, e das mercadorias culturais, e mais, do nosso modo de lidarmos com esta condição, talvez síntese do espírito cultural da era lulista”.

Lulismo centra a análise em McCartney (“um verdadeiro inventor da relação superficial encantada e apaixonada da massa com seus ídolos”) e Reed (“o enfant terrible do rock de todos os tempos, bem como o seu típico artista hiperconsciente”). Diz que 60 mil pessoas foram ao primeiro show do ex-Beatle, entre elas José Dirceu e Fernando Henrique Cardoso, Eike Batista e Kaká, José Serra e a família de Lula – e se congregaram numa

Festa pop do tipo total, do tipo Carnaval, do tipo celebração religiosa de massa, verdadeira competição do pop, religião laica, com a religião materialista e telemarqueteira de hoje... Uma festa universal do gozo do reconhecimento no próprio signo universal da melhor mercadoria.

Lou Reed não ofereceu o que a plateia esperava, e ela abandonou o show aos poucos. Para Ab’Sáber, as duas atitudes foram lógicas. O músico, “como verdadeiro artista, não deu o óbvio ao seu público, e o seu público, como a verdadeira experiência de massa da época preconiza, reconhecendo apenas a marca universal da mercadoria, deu o seu óbvio ao artista, a sua recusa em entrar em contato com o outro e o seu desprezo”. Ou seja, o público de Paul McCartney era exatamente igual ao de Lou Reed. Mas enquanto um dizia a 60 mil fãs All You Need Is Love e era aplaudido por eles, o outro não lhes entregava a mercadoria, e eles o abandonavam. Ambas as plateias queriam amor e mercadoria.

Lula é como McCartney, tem carisma. Propiciou uma circulação maior de mercadorias e foi amado por isso. Ele tem valor, é ouro puro, dinheiro. Ou, conforme disse Ab’Sáber:

Como o ídolo pop, Lula articulou os efeitos de crescimento e excitação de sua grande distribuição de dinheiro a todos, como uma mágica pessoal, advinda de sua personalidade, e se tornou uma espécie de novo equivalente geral, o dinheiro.



O autor de Lulismo, Carisma Pop e Cultura Anticrítica tem 46 anos. Ele nasceu em Porto Alegre, aonde seu pai, o geógrafo Aziz Ab’Sáber, fora trabalhar, mas fez a vida em São Paulo. Demorou a decidir qual profissão seguiria. Estudou administração pública na Fundação Getulio Vargas e cinema na Universidade de São Paulo, onde fez mestrado sobre o cinema paulista nos anos 80. Fez psicologia, também na USP, e doutorou-se com uma tese sobre o sonho em Winnicott, Bion e Freud. Tornou-se analista de crianças, inclusive psicóticas, e hoje é professor de filosofia da psicanálise na Universidade Federal de São Paulo. Com 2 metros de altura, barbudo e com jeito de urso, ele mora num apartamento pequeno para o seu porte, o que fica visível quando faz café na cozinha, num prédio sem elevador em Pinheiros.

Suas duas teses deram origem a livros, e ele tem pronto um quarto, a ser lançado no segundo semestre pela Cosac Naify, sobre música techno e raves. Lulismo é um ensaio de 100 páginas, com fotos de João Bittar do presidente quando sindicalista. Ele foi escrito no fim do governo Lula, entre dezembro de 2010 e janeiro do ano seguinte – o que explica alguns tropeços de exposição –, para registrar a quente o balanço da administração do presidente. A sua análise, que combina teoria crítica, psicanálise, política e semiótica, é pouco usual no Brasil. No mundo de língua inglesa, Terry Eagleton, Fredric Jameson e Slavoj Žižek fazem coisas semelhantes.

Há uma indagação subjacente ao ensaio: O que é ser de esquerda hoje, numa conjuntura em que a maioria parece feliz, o capitalismo continua a produzir mazelas e as crises não param de estourar? Num contexto em que a própria ideia de crítica entrou em parafuso, a resposta é problemática. Na última página do livro, Tales Ab’Sáber colocou assim a questão:

Até segunda ordem estamos em uma situação muito difícil, em que cabe de fato perguntar qual é o sentido da noção de crítica em um mundo que se forma cotidianamente de modo radicalmente anticrítico. Como alguém já disse com precisão, o que não for de consumo, que silencie, o que leva a crer que, nesta ordem concreta das coisas, como há muito já foi intuído, arte e pensamento estão mortos.

Embora a proposição seja pertinente, o próprio Lulismo é uma negativa à afirmação de que o pensamento está morto. Da mesma forma, também estão muito vivos os escritos de Chico de Oliveira e André Singer sobre Lula e o Partido dos Trabalhadores. Oliveira, que rompeu com o PT no início do governo Lula, e Singer, ex-porta-voz do presidente, partiram de pressupostos diferentes e chegaram a conclusões quase opostas. (Ambos publicaram ensaios a respeito do assunto em piauí; Oliveira os reuniu em O Ornitorrinco e Singer prepara um livro com suas descobertas e análises.) Embora o trabalho de Ab’Sáber tenha escopo diferente do desses autores, os três fazem críticas que visam tornar consciente – tornar presente e modificável – o que o poder petista fez e faz.

 A morte do pensamento está em outro lugar. Mais precisamente, no próprio PT. Nenhum prócer ou formulador político do partido se dispôs a debater as críticas de Oliveira, Singer e Ab’Sáber, mesmo quando elas elogiam aspectos do governo de Lula. O raciocínio de alguns dirigentes do PT parece ser o seguinte: enquanto o capitalismo crescer no Brasil, proporcionando alguma melhoria material na vida dos trabalhadores, tudo bem, aproveitaremos a onda para nos eleger e reeleger, para arrumar cargos em governos municipais, estaduais e nacionais, ou então para montar consultorias que azeitem o trânsito de pleitos de empresários junto ao partido.

Tudo bem?

Por Mario Sergio Conti

JUNHO DE 2012


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quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Carbonos do pop

Em uma manhã de novembro de 1975, Guto Graça Mello, um jovem de 27 anos, recebeu um telefonema na sede da gravadora Som Livre, da qual era diretor: “Guto? Preciso falar com você, urgente! Larga o que estiver fazendo aí e vem pra cá agora!” A ordem era de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, todo-poderoso da Globo.

Boni precisava resolver um problema sério: não aprovara a trilha sonora que um produtor havia feito para a novela Pecado Capital, que estava prestes a estrear, e tinha quatro dias para preparar uma nova. Guto disse que a única maneira de conseguir isso em tão pouco tempo seria fazer uma coleta nas gravadoras e escolher as melhores músicas de cada uma. Boni concordou, mas fez uma exigência: o tema de abertura teria de ser inédito. Guto pediu socorro a Paulinho da Viola: “Fui à casa do Paulinho e ele compôs Pecado Capital (“Dinheiro na mão é vendaval...”) ali, na minha frente, em menos de duas horas. Foi uma coisa assombrosa.”

Guto correu às principais gravadoras e conseguiu uma ótima seleção, incluindo Moça (Wando), Se Você Pensa (Moraes Moreira), Você Não Passa de uma Mulher (Martinho da Vila), Meu Perdão (Beth Carvalho), Beijo Partido (Nana Caymmi) e Juventude Transviada (Luiz Melodia). “Várias faixas do disco eram sambas, e a gente era meio proibido de usar samba em novela, mas o Boni estava com a faca no pescoço e teve que engolir.”

Na época, a Globo tentava consolidar uma imagem “sofisticada” em sua programação, o que explica essa repulsa pelo samba (em 1972, Chacrinha saiu da emissora e, com ele, muitos dos artistas considerados “bregas” e “cafonas”). Nelson Motta, então produtor da casa, diz que Guto foi corajoso ao colocar um samba na abertura: “Antes de Pecado Capital, nenhuma novela abria com um samba. Nas novelas que eu fiz, usava pop moderno (Véu de Noiva), ‘baiano épico’ (Verão Vermelho) ou sertanejo ‘heroico’ (Irmãos Coragem).” Até meados dos anos 70, a venda de discos com a trilha sonora internacional superava em muito a dos discos com a trilha nacional. Isso acontecia porque os LPs internacionais reuniam sucessos que a Som Livre pegava de outras gravadoras, enquanto os nacionais eram quase sempre compostos de músicas inéditas ou pouco conhecidas. A trilha nacional de O Rebu (1974–75), por exemplo, foi assinada por Raul Seixas e Paulo Coelho e trouxe faixas que, em sua maioria, não haviam entrado nos discos de Raul. Já o LP internacional da mesma novela tinha sucessos de Elton John, Stevie Wonder e Sérgio Mendes. A soundtrack nacional era, nas palavras de Guto Graça Mello, “o patinho feio da Som Livre”.

A trilha nacional de uma novela raramente ultrapassava 70 mil, 80 mil cópias vendidas. Pecado Capital, entretanto, mudou essa história: o LP chegou a 300 mil cópias, superando o internacional, que tinha canções de Michael Jackson, Domenico Modugno e Gladys Knight & The Pips.

A Som Livre havia sido fundada por João Araújo – o pai de Cazuza – em 1969, com o objetivo de lançar as músicas das novelas da Globo. A primeira trilha de Guto Graça Mello para a emissora foi uma parceria com Nelson Motta, Cavalo de Aço (1973). Guto não tem boas lembranças do disco: “Ficou uma merda. O Boni também achou e me deu um esporro danado.” Em 1975, Guto acumulava as funções de diretor da Som Livre e diretor musical da TV Globo, o que o deixava na estranha posição de ser cliente de si mesmo. Como ele tinha liberdade para escolher o que tocaria nas novelas, tornou-se um dos executivos mais influentes e poderosos da indústria do disco no Brasil.

Na trilha internacional de Pecado Capital, em meio a artistas consagrados como Michael Jackson e The Trammps, destacava-se um tal de Dave D. Robinson, que interpretava a balada Words of Love. O que o público não sabia era que a música não fora gravada em Los Angeles ou Nova York, mas no estúdio da Gazeta, na avenida Paulista. E eram também poucos os que conheciam o verdadeiro nome de Dave D. Robinson: José Eduardo França Pontes, conhecido por Dudu França.

Dave/Dudu era um dos muitos artistas brasileiros que cantavam em inglês e fizeram parte de um dos fenômenos mais populares e curiosos do pop brasileiro: o dos falsos gringos. E ele não foi um fenômeno isolado: Jessé era Tony Stevens; Ivanilton de Souza virou Michael Sullivan; Thomas Standen foi Terry Winter. Alguns cantores se valiam de mais de um pseudônimo: Fábio Jr. gravou em inglês, com os nomes de Mark Davis e Uncle Jack; Dudu França também gravou como Joe Bridges, tradução do prosaico José Pontes. Outros adotavam nomes parecidos com os de astros internacionais: Hélio Costa Manso ficou famoso como Steve Maclean, nome inspirado no galã do cinema Steve McQueen. Em 1975, quando o argentino de pais britânicos Chris de Burgh estourou com Flying, uma balada de sucesso, Jessé regravou a canção, assinando Christie Burgh. A EMI, selo do Burgh original, chiou, obrigando o brasileiro a trocar o nome.



De todos os falsos gringos, o mais famoso foi o carioca Maurício Alberto Kaiserman. Filho de uma família de classe alta do Rio, ele ganhou o concurso “O Homem Mais Bonito do Brasil” no programa de Flávio Cavalcanti, na TV Tupi, e integrou grupos de rock no fim dos anos 60, como Hangmen e The Thunders. No início da década de 70, estudou alguns anos nos Estados Unidos. Quando retornou ao Rio de Janeiro, tentou a carreira de cantor, interpretando músicas em português com seu nome verdadeiro e, em inglês, com o pseudônimo de Morris Albert.

Em 1974, Albert lançou pela gravadora Beverly o compacto de Feelings, uma balada romântica em inglês. A música acabou na novela Corrida do Ouro, da Globo, e fez um tremendo sucesso. A norte-americana United Artists, que tinha um contrato de distribuição internacional com a Beverly, não gostou da canção e deixou que a brasileira negociasse internacionalmente com arca. Resultado: Feelings chegou ao sexto lugar na parada norte-americana, vendeu muito na Europa e América Latina, foi cantada em shows por Frank Sinatra e gravada por Nina Simone, Johnny Mathis e Ella Fitzgerald. Morris Albert foi o único cantor da leva de brasileiros que gravavam em inglês a fazer sucesso no exterior. Em 1976, recebeu três indicações ao Grammy, principal prêmio da indústria musical nos Estados Unidos: música do ano, melhor cantor pop e artista revelação. Nos anos 80, foi acusado pelo compositor francês Loulou Gasté de ter plagiado a canção Pour Toi, lançada em 1957.



A onda de falsos gringos era coisa antiga no pop brasileiro. Desde o início dos anos 60, vários artistas nacionais se projetaram cantando em inglês ou imitando astros do pop estrangeiro. Em 1964, o cantor americano Trini Lopez, filho de mexicanos, fazia sucesso no mundo todo com a canção If I Had a Hammer. O compacto foi número 1 nas paradas de 36 países e saiu no Brasil pelo selo Reprise, com a canção Americano lado B. Mas a brasileira RGE tinha sido mais rápida e, pouco antes, pusera na praça um disco com as mesmas canções. Só o nome do cantor era diferente: Prini Lorez. Meses depois, a Reprise lançou outro sucesso de Trini Lopez, La Bamba, versão de uma tradicional canção folclórica mexicana que havia sido gravada originalmente em ritmo de rock por Ritchie Valens – na certidão de batismo, Ricardo Valenzuela, outro filho de mexicanos nascido nos Estados Unidos, morto em 1959, aos 17 anos, em um desastre de avião que também tirou a vida de dois outros astros

do rock, Buddy Holly e The Big Bopper. A RGE contra-atacou imediatamente com seu próprio compacto de La Bamba, na versão do dublê. “Modéstia à parte, meu disco era tão bom quanto o do Trini”, diz Prini Lorez, ou melhor, José Gagliardi Filho, um roqueiro do bairro da Pompeia, em São Paulo.

O disco da RGE copiava o original em tudo. Os compactos de Trini Lopez vendidos no Brasil foram tirados do LP Trini Lopez at P.J.’s, gravado ao vivo na famosa boate de Los Angeles. A imitação de Americaera tão fiel que começava com um apresentador dizendo, em inglês, a mesma frase que abria o disco gringo: “And now, P.J.’s proudly presents...”(“E agora, a P.J.’s orgulhosamente apresenta...”). Quando Prini foi gravar La Bamba na RGE, no bairro da Luz, o dono da gravadora lotou o estúdio de adolescentes e mandou que gritassem e aplaudissem. Entre eles estava uma menina de 17 anos, que cantava no grupo Teenage Singers: Rita Lee.

“Muita gente no Brasil não sabia que Trini e Prini eram cantores diferentes”, conta Antonio Paladino, produtor musical e executivo de gravadora na época. Paladino sugeriu a José Scatena, o dono da RGE, que criasse um clone de Trini Lopez. E Scatena achou o homem certo quando viu Gagliardi Filho, o Zezinho, cantando na boate Lancaster, na rua Augusta. Na época, Zezinho tinha 22 anos, mas já era um veterano do rock paulistano: havia fundado a banda The Rebels em 1959 e gravara compactos com o pseudônimo de Galli Júnior. Um de seus primeiros fãs foi Erasmo Carlos, que teve uma epifania ao entrar na Lancaster e ver o cantor interpretar What’d I Say, de Ray Charles. “Ele cantava igualzinho ao Ray Charles, era impressionante”, recorda o Tremendão. Na Lancaster, o público se surpreendia com a voz potente e a boa pronúncia de inglês do cantor. “Meu pai era bicheiro e tinha grana para pagar uma professora particular de inglês.” E o nome Prini Lorez pegou: “Hoje, até minha mulher me chama de Prini.”

Confusões entre artistas nacionais e estrangeiros não eram incomuns no Brasil. Luiz Calanca, que em 1978 abriria em São Paulo a Baratos Afins, importante loja e gravadora de rock brasileiro, conta que, na década de 60, discos estrangeiros podiam demorar dois anos para sair no país. “Eu trabalhava em farmácia e discotecava em bailinhos. A gente curtia Ronnie Cord e Renato e Seus Blue Caps cantando versões dos Beatles, antes de conhecer as músicas originais. Então, quando ouvíamos os Beatles, achávamos que eles é que estavam imitando Renato e Seus Blue Caps.”

Ronnie Von foi pivô de uma história exemplar: no início de 1966, seu pai, membro do corpo diplomático brasileiro em Londres, trouxe para ele de presente o disco Rubber Soul, dos Beatles, que acabara de sair na Inglaterra. Semanas depois, Ronnie gravou Meu Bem, versão da música Girl. “Um dia, eu estava ouvindo a Rádio Bandeirantes e tocaram Girl. No final, o locutor disse: ‘Acabamos de ouvir Meu Bem, com os Beatles.’ Fiquei nas nuvens!”, lembra Ronnie Von.



Antonio Paladino havia transformado a Eletroarte, um negócio de material elétrico do pai, na rua Augusta, numa das melhores lojas de discos de São Paulo nos anos 50. Ele fez amizade com alguns pilotos de avião, que lhe traziam do exterior todos os lançamentos da época. Ponto de encontro de bandas, fãs de rock e programadores de rádios, a loja tinha uma seleção tão boa que se tornou fornecedora de emissoras de rádio como

Difusora e Excelsior, em São Paulo, e Mundial, no Rio de Janeiro. Não era raro Paladino chegar à loja às nove da manhã e encontrar um sujeito sentado na calçada. Era Big Boy – Newton Alvarenga Duarte, famoso disc jockey da época –, que vinha do Rio de Janeiro só para comprar discos. O trabalho na Eletroarte fez de Paladino um especialista em prever o gosto do público. Ele sabia que discos tinham mais chance de vender e que artistas faziam a cabeça da moçada. Também começou a notar que as gravadoras demoravam a lançar certos discos: músicas de grande sucesso lá fora nem sequer saíam no país. Foi então que teve a ideia de montar grupos brasileiros para gravar em inglês, valendo-se do atraso das empresas estrangeiras.

Em 1966, Paladino percebeu que duas músicas famosas no exterior não haviam sido lançadas no Brasil: See You in September”, do grupo The Happenings, e Sunny, de Bobby Hebb. Ele procurou Hélio Costa Manso, cantor do grupo de rock paulistano The Mustangs, que fazia shows de covers em inglês, e propôs à banda um compacto com as duas canções. O conjunto foi batizado de The Happiness. “O pessoal escutava a música original no rádio e, sem saber o que tinha ouvido, dizia na loja: ‘Ontem ouvi uma banda, não lembro direito o nome, acho que é happy não sei o quê...’ O vendedor, então, respondia: ‘É essa’, e sacava o nosso disco. O cliente sempre levava”, conta Hélio.

A versão original do Happenings foi comercializada no Brasil pelo pequeno selo Mocambo, enquanto o compacto “trambique” do Happiness teve a chancela da poderosa estrangeira RCA, o que prova que não eram apenas as empresas menores que apelavam para essas jogadas. Hélio define a cena musical da época como “uma terra de ninguém”, onde todos tentavam ser mais espertos que a concorrência. Os covers, porém, não eram ilegais: bastava pedir autorização e pagar à editora que representava o autor.

No fim dos anos 60, a falta de informação do público e o pequeno número de brasileiros que falava inglês incentivaram a indústria dos falsos americanos. Além de Os Mustangs, conjuntos como Lee Jackson, Sunday, Kompha, Memphis e Watt 69 eram confundidos com grupos internacionais e bombavam. O Sunday chegou a ter um programa na TV Excelsior, com o bizarro nome de Sunday é Sábado. Os grupos lotavam as domingueiras de clubes tradicionais de São Paulo, como Paulistano, Harmonia, Pinheiros e Círculo Militar, atraindo um público de classe alta que tinha preconceito contra a música cantada em português. “Hoje é até ridículo dizer isso, mas a turma que frequentava esses clubes tinha vergonha de ouvir Roberto Carlos”, diz Dudu França, que antes de ficar famoso como Dave D. Robinson foi vocalista do Memphis. “Roberto Carlos era considerado o cantor das empregadas.”

O inglês imperfeito não era barreira. “Estudei inglês quando garoto, mas falar mesmo eu não falava. Eu mal sabia o que estava cantando”, confessa Dudu. O grupo Pholhas escrevia letras juntando frases tiradas de um velho livro de conversação em inglês. Fábio Jr. revelou que evitava conversar com as fãs, para que não percebessem que Mark Davis não era americano: “Eu dava autógrafos, mas não podia falar nada com elas. Era tudo rápido, e de óculos escuros.” Chrystian, da dupla Chrystian e Ralf, foi gravar um disco em Nashville, nos Estados Unidos, produzido por Hélio Costa Manso. Quando terminou o trabalho, um técnico do estúdio lhe perguntou alguma coisa, e o cantor, que não falava uma palavra de inglês, permaneceu mudo. O sujeito ficou impressionado: “Como assim? A pronúncia dele é perfeita!”

O fenômeno dos falsos estrangeiros, embora execrado pela crítica da época, foi importante para o desenvolvimento da indústria de discos do país. Executivos sentiram que o público estava gostando cada vez mais de música pop internacional e tentaram criar produtos para esse consumidor. Havia outro fator que incentivava as gravadoras a lançar músicas em inglês: canções estrangeiras não passavam pelo departamento de censura e, portanto, não corriam risco de ser proibidas.

Os falsos gringos ficaram tão populares que acabaram nas trilhas de novelas: Hélio Costa Manso e a irmã, Maria Amélia, que depois seria cantora do grupo de discoteca Harmony Cats, gravaram com a banda Sunday uma versão de I’m Gonna Get Married, do norte-americano Lou Christie, para a novela Super Plá (1969–70), da TV Tupi. A faixa foi produzida por – quem mais seria? – Antonio Paladino.

Cantar em inglês foi o caminho que muitos artistas encontraram para obter algum destaque na cena musical. O idioma, entretanto, limitava a chance de um sucesso mais duradouro. “As bandas dos anos 60, como Sunday, Lee Jackson, Memphis, Kompha e Watt 69, é que deveriam ter criado o rock nacional do Brasil”, diz Hélio Costa Manso. “A gente tinha o aparato tecnológico, tinha expertise de tocar Beatles, Led Zeppelin e Deep Purple, tinha tudo na mão. Mas havia um problema: tínhamos vergonha de cantar em português. Se tivéssemos enxergado que poderíamos ter sido ídolos cantando rock em português, a revolução que chegou nos anos 80 teria ocorrido em 1971 ou 72.”



* * *

E

m 4 de fevereiro de 1980, a TV Globo estreava a novela Água Viva, escrita por Gilberto Braga e Manoel Carlos. A trilha nacional, da Som Livre, trazia sucessos como Menino do Rio (Baby Consuelo), Realce (Gilberto Gil), Grito de Alerta (Maria Bethânia), Desesperar, Jamais (Simone), Amor, Meu Grande Amor (Ângela Ro Ro), Noites Cariocas (Gal Costa), Altos e Baixos (Elis Regina) e 20 e Poucos Anos (Fábio Jr.). A seleção havia sido feita por Lulu Santos, ou melhor, Lulu dos Santos, como dizia a contracapa do LP.

O disco com a trilha internacional também contava com uma forte seleção, marcada pela discoteca, gênero que ainda reinava no país. Misturava faixas dançantes – como D.I.S.C.O. (Ottawan), Love I Need (Jimmy Cliff), The Second Time Around (Shalamar) e Mandolay (La Flavour) – a baladas românticas, como Babe (Styx), Ships (Barry Manilow), Just Like You Do (Carly Simon) e Memories (Bianchi). Imagens de uma vela de windsurfe e de praticantes do esporte ilustravam a capa e a contracapa do LP internacional, assinada por Hans Donner, o designer austríaco que havia criado o logotipo da TV Globo.

Na semana de lançamento do LP internacional de Água Viva, um disco parecido chegou às lojas. Não era da Som Livre, mas da Continental. Água Viva – Temas Internacionais da Novela exibia na capa a foto de um sujeito praticando windsurfe e tinha um repertório idêntico ao do LP da Som Livre: Ottawan, Jimmy Cliff, Barry Manilow, Carly Simon... As versões, no entanto, não eram originais. Escondida no canto da capa, em fonte pequena, constava a palavra Covers. Não demorou para uma cópia chegar às mãos do diretor da Som Livre, Hélio Costa Manso, que ao constatar a qualidade das versões não teve dúvidas: aquilo só podia ser obra dos Carbonos.

Hélio os conhecia muito bem. Dois anos antes, produzira, na própria Som Livre, um medley de músicas dos Bee Gees para a trilha da novela Dancin’ Days, cantado pelo grupo vocal Harmony Cats e executado pelos Carbonos. Na época, muita gente ficou impressionada com a semelhança entre a gravação e as músicas originais dos Bee Gees (cujos discos saíram no Brasil pela PolyGram). Agora, a Som Livre experimentava o seu próprio veneno.

O Água Viva da Continental era tão bem gravado que começou a prejudicar a venda do LP da Som Livre, pois o público não distinguia a matriz da cópia. Muita gente chegava à loja, pedia o “disco da novela” e saía de lá com a versão cover. A Som Livre ameaçou banir os artistas da Continental dos programas da Globo caso o disco não fosse retirado do mercado. Assustada, a gravadora suspendeu as vendas e hoje o LP é uma raridade muito disputada no mercado de discos usados.

Trinta e três anos depois do episódio, em fevereiro de 2013, Beto Carezzato, baixista dos Carbonos, bate os olhos na capa do disco Água Viva da Continental e diz: “É, acho que participamos desse estelionato!” O irmão, Raul, cantor e percussionista, põe o disco na vitrola, ouve alguns segundos, e comenta: “Me lembro dessa percussão... Fui eu que gravei.”

O grande público ignora Os Carbonos, mas muita gente conhece os hits do pop brasileiro de que eles participaram, como músicos de estúdio: Feelings (Morris Albert), Summer Holiday (Terry Winter), Domingo Feliz (Ângelo Máximo), Aquela Nuvem (Gilliard), Flying (Jessé), Fuscão Preto (Almir Rogério),
O Boi Vai Atrás (João da Praia), É o Amor (Zezé di Camargo e Luciano), além de dezenas de LPs de Melindrosas, Harmony Cats, Bartô Galeno, Trio Parada Dura, Amado Batista, Carlos Alexandre, Los Maneros, Tony Damito, Marcos Roberto, Chrystian e Ralf, e dez LPs de Paulo Sérgio, o maior rival de Roberto Carlos. Somando tudo, Os Carbonos são uma das bandas que mais venderam discos no Brasil.

De meados dos anos 60 ao fim dos anos 80, eles foram o grupo de estúdio mais atuante de São Paulo, gravando por diversos selos: RGE, Top Tape, AMC, Beverly, Copacabana, Continental, Mocambo, Som Livre e Chantecler. Além do trabalho com outros artistas, lançaram cerca de quarenta LPs próprios, entre discos de covers, músicas italianas, rock, samba, sertanejo e forró. Também produziram jingles famosos, como “Toddy, sabor que alimenta” e o inesquecível comercial da dedetizadora D.D.Drin (“A pulguinha dançando iê-iê-iê, o pernilongo mordendo o meu nenê”).

Calcular com exatidão o número de músicas gravadas pelos Carbonos é impossível. Nem eles têm registro de tudo. Em um dia normal, faziam um LP inteiro, com dez ou doze faixas. Chegavam a passar dias e noites seguidos no estúdio, dormindo nos sofás. Trabalhavam de segunda a sábado. Um cálculo possível – dez músicas por dia, cinco dias por semana, durante vinte anos – daria um total de mais de 50 mil músicas. O lendário baterista Hal Blaine, um dos músicos de estúdio mais prolíficos e celebrados dos Estados Unidos, que tocou com Elvis Presley, Beach Boys, Simon & Garfunkel e The Supremes, calcula ter gravado 35 mil músicas em quatro décadas. Os Carbonos poderiam talvez estar no Guinness.



A base do grupo são os irmãos Mário, Beto e Raul Carezzato. Beto e Raul, gêmeos não idênticos, nasceram em 1946. Mário é cinco anos mais velho. A família, de origem italiana, tem longa história na música. Os tios dos rapazes eram os Trigêmeos Vocalistas, grupo que fizera sucesso nos anos 30 e 40 cantando no Cassino da Urca e na Rádio Nacional (assim como os Carbonos, os Trigêmeos Vocalistas eram formados por dois gêmeos e o irmão mais velho). No início dos anos 60, quando os Carezzato viviam no bairro de Santa Cecília, em São Paulo, Beto e Raul começaram a se interessar por rock. Mário só queria saber de música clássica: formou-se em piano, canto, regência de coral e orquestração, e chegou a excursionar pela Europa como barítono do Madrigal da Orquestra de Câmara de São Paulo.

Os gêmeos juntaram-se aos amigos “Ricardão” Fernandes de Morais (guitarra) e Igor Edmundo (baixo e guitarra) – um guatemalteco que vivia no Brasil –, e, com o nome de Os Quentes, gravaram o primeiro compacto. Logo depois, o baterista Antônio Carlos de Abreu, irmão do autor de novelas Sílvio de Abreu, juntou-se ao grupo, e Mário, o irmão mais velho, assumiu os teclados.

Impressionada com a qualidade técnica dos rapazes, a gravadora Beverly encomendou um LP de covers com sucessos do momento. Os Quentes gravaram A Praça (Ronnie Von), Só Vou Gostar de Quem Gosta de Mim (Roberto Carlos), Coração de Papel (Sergio Reis) e Vem Quente que Eu Estou Fervendo (Erasmo Carlos), além de hits internacionais como With a Girl Like You (The Troggs) e Black Is Black (Los Bravos). Um dia, Beto e Raul andavam pelo Centro de São Paulo quando viram vários cartazes anunciando o disco, mas com o nome de outro conjunto: Os Carbonos. A Beverly havia rebatizado o grupo e nem os avisara. O nome, contudo, era perfeito: ninguém copiava músicas com tanta competência.

O disco foi o primeiro de uma série chamada As 12 Mais da Juventude. Os Carbonos gravaram Beatles (Ob-la-di, Ob-la-da), Jorge Ben (Ela é Minha Menina), Otis Redding (Sittin’ On, the Dock of the Bay), Roberto Carlos (É Meu, É Meu, É Meu), Procol Harum (A Whiter Shade of Pale) e muitos outros sucessos. Às vezes o conjunto preparava versões antes que as músicas originais chegassem às lojas. Raul conta que os produtores subornavam funcionários de outras gravadoras para ter acesso aos acetatos (discos “modelo”, que serviam de base para a prensagem de LPs) de futuros lançamentos. Os Carbonos decoravam as músicas e corriam para gravá-las no estúdio. A Beverly logo percebeu que o talento dos rapazes não se limitava ao rock e transformou Mário Carezzato no cantor “italiano” Mario Bruno, responsável pela série de discos As 12 Mais Italianas, com hits da música pop da terra de Rita Pavone.



Os Carbonos chegaram a tocar com Roberto Carlos no programa de tevê Jovem Guarda e se firmaram como uma das melhores bandas de baile do país, apresentando-se em longas excursões pelo Norte e Nordeste. Um de seus grandes sucessos foi a série Super Erótica– lançada em 1970 sob o pseudônimo de Magnetic Sounds –, que trazia canções de temas “adultos” como Doin’ It, de Ike Turner, Je t’Aime... Moi Non Plus, de Serge Gainsbourg. Os gemidos de Jane Birkin na versão brasileira foram gravados por Norma Aguiar, irmã da cantora Nalva Aguiar. Os discos chegavam às lojas com uma tarja que dizia: “Censura 18 anos”, além de um texto alertando que a radiodifusão e execução das músicas estavam proibidas em locais públicos. Foi um estouro de vendas.

Os rapazes, entretanto, logo cansaram da vida na estrada e passaram a se concentrar no trabalho em estúdios. Em pouco tempo se transformaram na banda mais procurada por gravadoras e artistas. Além de registrar incontáveis discos em conjunto, os músicos participaram, individualmente, de outros tantos: Raul fez vocais de apoio – junto com Antonio Marcos – em Aleluia (Che Guevara não morreu), de Sérgio Ricardo, e Moça, de Wando, e percussão em Entre Tapas e Beijos (Leandro e Leonardo) e Comer, Comer (Genghis Khan). Beto tocou baixo em inúmeros discos de Odair José e César Sampaio.

O trabalho no estúdio era extenuante. Os integrantes dos Carbonos liam partituras, registravam rapidamente e quase nunca erravam. Muitas vezes nem sabiam o que estavam gravando. “Os maestros e arranjadores chegavam com as partituras, a gente dava uma olhada e gravava, sempre de primeira”, conta Beto. Um dia, o maestro Rogério Duprat, responsável por alguns dos principais arranjos da Tropicália, entrou no estúdio acompanhado de Jorge Ben e Gal Costa. Duprat disse que queria gravar uma música, mas não tinha partitura. Pediu a Beto e Raul que observassem o violão de Jorge Ben e o acompanhassem. Beto tocou baixo e Raul, percussão. Meses depois, quando ouvia rádio, uma música chamou a atenção de Beto, uma canção bonita, suingada, com arranjo lindo e vocais de Gal e Caetano Veloso. Era Que Pena (do disco Gal Costa, de 1969). “Eu imediatamente reconheci o baixo e a percussão. Fomos nós que gravamos.” Músicos de estúdio raramente recebiam créditos nos discos. Raul diz que se arrepende de ter sido tão relapso: “Só nos interessava ganhar pela tabela do sindicato e não nos preocupávamos com os direitos.”

Os Carbonos impressionavam pela versatilidade: eram capazes de gravar rock, samba, sertanejo ou forró, imitando com perfeição os timbres característicos de cada estilo. “Não houve, em São Paulo, banda de estúdio tão boa; eles eram os melhores, os mais profissionais e os mais competentes”, diz Carlos Alberto Lopes, o “Sossego”, radialista e produtor musical que conheceu o conjunto em meados dos anos 60. “Há músicos que arrasam no palco, mas não rendem no estúdio. Os Carbonos eram ótimos nos dois”, conta Carlinhos Borba Gato, músico que fez sucesso cantando country (Pegue o Seu Sorriso) e se tornou um dos produtores e letristas mais requisitados do pop brasileiro na década de 80, como letrista para Genghis Khan (Comer, Comer), Rita Cadillac (É Bom para o Moral) e Gugu Liberato (Bota Talquinho).

Quando uma gravadora queria lançar uma canção de algum artista de outro selo, a solução mais fácil e barata era encomendar uma versão. Na segunda metade dos anos 70, com o mercado do disco em expansão e cada vez mais competitivo, a indústria dos covers proliferou. Não só as gravadoras menores apelavam a eles, mas também as multinacionais. A Odeon lançou a série Década Explosiva Romântica, em que o grupo The Fevers tocava – sem créditos, claro – versões de Bridge Over Troubled Water (Simon & Garfunkel), My Sweet Lord (George Harrison), Skyline Pigeon (Elton John) e Hey Jude (Beatles). A PolyGram atacou com a série Festa de Sucessos, com versões de You Are the Sunshine of My Life (Stevie Wonder), Why Can’t We Live Together (Timmy Thomas) e Oh, Girl (The Chi-Lites). Até a Som Livre, que chiou tanto com a versão cover do disco Água Viva, passou anos fazendo o mesmo com as outras gravadoras, como prova a série Super Parada – Sucessos Internacionais nas Paradas de Todo o Brasil.

A qualidade variava enormemente. Algumas gravações eram fiéis às originais, com bons arranjos e vocais em inglês correto; outras eram cantadas em puro “embromation”. As séries Premier Mundial [sic] e Super Explosão Mundial, da gravadora CID/Square, pareciam ter sido registradas no fundo de uma caverna, por cantores que estudaram inglês com o técnico Joel Santana. Já as faixas interpretadas pelos Carbonos impressionavam pela qualidade e apuro técnico. Em 1981, Hélio Costa Manso pediu a Mário Carezzato que gravasse Piano, música instrumental do argentino Bebu Silvetti, para a trilha da novela Jogo da Vida, da TV Globo. Com o pseudônimo de Bruno Carezza, Mário tocou em três pianos de cauda diferentes. O resultado foi tão bom que a RGE, gravadora que fora incorporada pela Som Livre, colocou a faixa na abertura do LP Piano Songs, com músicas românticas executadas por pianistas pop famosos, como Liberace e Pedrinho Mattar.

Lançar um disco de covers era um excelente negócio: os músicos de estúdio recebiam cachês fixos, sem direitos autorais, e o custo de produção era baixíssimo. Quando a Polydor lançou o álbum com a trilha sonora do filme Grease – Nos Tempos da Brilhantina (1978), pelo menos três discos de covers chegaram às lojas brasileiras ao mesmo tempo. Um deles, da RGE, não registrava nenhuma informação sobre os músicos, a não ser um nome claramente inventado: The Fantastic Soundtrack Band. Outro LP, do obscuro selo Aladdin, ligado à gravadora K-Tel, tinha um desenho tosco na capa, imitando John Travolta e Olivia Newton-John, e trazia versões produzidas pela gravadora alemã Countdown, especializada em covers. “Existiam muitas empresas na Europa e nos Estados Unidos, como a Countdown, a Odyssey e a PPX, que só vendiam covers”, conta Hélio Costa Manso. “Você comprava um cover por 200 dólares. Elas vendiam as músicas com ou sem vocal, caso você quisesse gravar a letra em português. Era fantástico.”

Muitos grupos da Jovem Guarda se especializaram em covers. Integrantes dos Fevers e do Renato e Seus Blue Caps fundaram o Big Seven, banda instrumental responsável pela série de LPs Os Sucessos num Super Embalo. Já Os Super Quentes, formado por membros dos Golden Boys, dos Fevers, do Trio Esperança e do Renato e Seus Blue Caps, lançaram dez discos de versões numa série chamada Os Super Quentes e os Sucessos.

As gravadoras brasileiras apostavam não só em covers gringos, mas também nos nativos. A partir do fim da década de 60, houve uma enxurrada de versões de músicas brasileiras de sucesso, com músicos de estúdio imitando artistas famosos. As capas dos discos – com títulos genéricos, como O Melhor de 1979 ou Sertanejo Bom Demais– exibiam os nomes das músicas e dos artistas que as tinham gravado originalmente, sem dizer que eram versões. O público também não percebia que se tratava de covers. Dono de um talento sobrenatural para imitar vozes, Raul Carezzato gravou sucessos de Paulinho da Viola, Benito di Paula, Wilson Simonal, Jair Rodrigues, Ronnie Von e até Johnny Rivers; Dudu França imitou Sidney Magal; e o sertanejo Fabiano se especializou em copiar duplas, como Tonico e Tinoco e Milionário e José Rico. O caso mais curioso é o de Wando, que gravou um coverde si mesmo: “Ele precisava de uma grana e topou gravar suas próprias músicas para um disco de versões”, revela Antonio Paladino.



No fim dos anos 70, o auge do mercado de versões no Brasil, a indústria do disco parecia um ringue de telecatch, onde vencia o mais esperto. E ninguém era mais esperto que Carlos Imperial. Alguns anos antes, ele descobrira o lucrativo e inexplorado filão das músicas de domínio público e passou a registrar várias em seu nome. Na biografia Dez, Nota Dez! Eu Sou Carlos Imperial, o autor, Denilson Monteiro, conta que até a mãe do produtor se indignou quando ele atribuiu a si a autoria de Meu Limão, Meu Limoeiro: “Carlos Eduardo, como você tem a coragem de dizer que essa música é tua? Meu filho, eu cansei de te embalar cantando ela quando você era recém-nascido!” Imperial respondia: “Comigo é assim: mulher e música, se não tiver dono, eu vou lá e apanho.”

Dudu França revela que, certa vez, ao gravar uma música de Imperial chamada Eu Te Amo Tanto, percebeu que se tratava de um plágio de Proposta, de Roberto Carlos. A canção era tão parecida que os músicos ironizaram: “Dudu, essa música chama Proposta ou Contraproposta?” Indignado, o cantor ligou para Imperial e disse que não iria cantar a música. “Eu falei: ‘Imperial, não vou gravar essa merda, é uma humilhação!’ Daí ele começou a gritar: ‘Seu babaca, você não apita porra nenhuma. Quem manda aqui sou eu!’ Mas eu não ia assumir um plágio, e só cantei a música depois que ele concordou em trocar a melodia. O Imperial mudava uma palavra de uma música minha e já entrava como compositor da faixa.” Hélio Costa Manso, que cansou de se apresentar como Steve Maclean no programa de tevê de Imperial, considera o amigo “um gênio do trambique”: “Tem uma música dele, Pra Nunca Mais Chorar, que foi um dos maiores sucessos da Vanusa e é chupada de Monday, Monday, do The Mamas & The Papas. O Imperial me dizia: ‘Hélio, eu não sou batedor de carteira; sou arrombador de cofre.’”

Um dos grandes trunfos do mercado, a partir da segunda metade da década de 70, foram os discos com medleys de faixas dançantes, também conhecidos como “som contínuo”. Com a popularidade da discoteca e a onda de bailinhos caseiros – quem era menor de idade ou não tinha grana para ir às badaladas Aquarius ou Papagaio fazia a festa em casa –, as gravadoras investiram com força no filão e ganharam muito dinheiro. Eram discos com faixas mixadas, sem intervalo, ideais para a pista de dança. Um dos primeiros LPs do gênero lançado no país foi New York City Disco, gravado pelo DJ Ricardo Lamounier, em 1976, que trazia faixas de sucesso de Diana Ross, K.C. & The Sunshine Band e Napoleon Jones (um dos muitos pseudônimos de um músico disco francês chamado – acredite – Jacques Pépino). A K-Tel inundou as lojas do Brasil com LPs como Disco Dance – Som Contínuo, Hit Machine e Dynamite; e Mister Sam lançou cerca de trinta bolachas com medleys de discoteca.

Outros ritmos dançantes, como samba e forró, ganharam discos com potpourris de sucessos. Os Carbonos gravaram as séries Samba Bom Nunca Morre e Forró Bom Demais (este, com o pseudônimo de Grupo Chamego). O disco de samba reunia 47 sucessos de Paulinho da Viola, Adoniran Barbosa, Martinho da Vila e Benito di Paula. Um dos volumes de Forró Bom Demais trazia 51 clássicos do gênero, como Asa Branca, Fricote, Homem com He Eu Só Quero um Xodó. É difícil imaginar um bando de descendentes de italianos fazendo-se passar por Martinho da Vila ou por Luiz Gonzaga em um disco, mas os Carbonos conseguiram tal proeza.

Dos integrantes originais dos Carbonos, apenas Mário, Raul e Beto Carezzato continuam se dedicando à música em 2014. Antônio Carlos de Abreu largou a bateria e foi trabalhar com o irmão, Sílvio de Abreu. O baixista e guitarrista Igor Edmundo morreu atropelado, e o guitarrista Ricardão faleceu após sofrer um AVC dentro do ônibus que levava a banda de Amado Batista.

Entre os milhares de discos que gravaram, um deles ainda hoje deixa Os Carbonos cheios de orgulho: Country Music, um LP com sete medleys, reunindo 51 canções de folke country de artistas como Bob Dylan (Blowin’ in the Wind), Creedence Clearwater Revival (Lookin’ Out My Back Door), Jimmy Webb (Wichita Lineman) e Bobbie Gentry (Ode to Billie Joe). O grupo gravou o LP com nome The Midnight Ramblers, e o disco é um verdadeiro “quem é quem” da cena brasileira de covers. Reúne a nata dos músicos de estúdio da época: além dos Carbonos, Luiz Carlos Maluly, do grupo Lee Jackson, nas guitarras e gaita; Reinaldo Brito no banjo; Chrystian (da dupla Chrystian & Ralf) nos vocais, junto com Vivian e Maria Amélia (Harmony Cats) e Hélio Costa Manso.



Se em São Paulo os Carbonos eram os mais requisitados para gravações, no Rio de Janeiro havia uma banda que parecia estar em todos os estúdios e bailes da cidade: Os Famks. Nos anos 70, o conjunto se apresentava em clubes como Ideal de Olinda, Pavunense, Mesquita, Centro Cívico Leopoldinense, Tijuca Tênis Clube e Grajaú Tênis Clube. Em 1980, resolveram parar de executar apenas música feita por outros e começaram um trabalho mais autoral. Decidiram também mudar de nome. Viraram Roupa Nova. O grupo gravou com Roberto Carlos (Côncavo e Convexo), Gal Costa (Chuva de Prata), Rita Lee (Flagra) e também com Erasmo Carlos, José Augusto, Joanna, Simone e Fafá de Belém.

Antes de se tornarem Roupa Nova, Os Famks lançaram onze discos de covers com o pseudônimo Os Motokas. Cada disco trazia na capa uma gata de biquíni montada em uma motocicleta (o volume 9 exibia Myrian Rios) e trinta músicas, divididas em dez medleys. Certa faixa podia começar com Lady Laura, de Roberto Carlos, e terminar com A Veces Tu, a Veces Yo, de Julio Iglesias, ou misturar Como Vovó Já Dizia, de Raul Seixas, com Kung Fu Fighting, o clássico da discoteca gravado por Carl Douglas. “No mesmo disco, eu tinha de imitar o Julio Iglesias, o Benito di Paula e o Genival Lacerda”, conta o cantor Paulinho, do Roupa Nova. Para os vocais femininos, Os Famks tinham a ajuda de cantoras como Claudia Telles, Lílian (da dupla Leno e Lílian) e Jane Duboc.

No começo da década de 80, já com o novo nome, o grupo passou a trabalhar para a TV Globo, em temas de programas como Jornal Nacional e Chico City. Gravaram também a antológica abertura do Cassino do Chacrinha (“Abelardo Barbosa/Está com tudo e não está prosa”) e o Tema da Vitória, canção instrumental composta pelo maestro Eduardo Souto Neto que acabou associada ao piloto Ayrton Senna.



Os Carbonos e Os Famks permanecem como heróis anônimos do pop brasileiro, sem créditos em discos nem menções em enciclopédias. Como ocorreu com muitos músicos de estúdio e compositores de aluguel, sempre atuaram nos bastidores, sem o reconhecimento do público. E os fãs raramente descobriram os mistérios detrás de muitas músicas. Ao menos no Brasil.

Um caso raro – talvez único – em que as maquinações da indústria musical vieram à luz foi o escândalo envolvendo o grupo pop Milli Vanilli. Criado em 1988 pelo produtor alemão Frank Farian, o Milli Vanilli era formado por dois dançarinos e modelos, o francês Fab Morvan e o alemão Rob Pilatus. O primeiro disco da dupla, Girl You Know It’s True, foi um grande sucesso no mundo todo e ganhou um prêmio Grammy de artista revelação.

O triunfo virou vergonha quando se descobriu o que muita gente já desconfiava: Fab e Rob não haviam cantado no disco. A farsa começou a desmoronar durante um show transmitido pela MTV – um problema no CD com os vocais fez a música pular, enquanto Fab e Rob continuavam a dançar e a cantar como se nada estivesse acontecendo. Para piorar a situação, Rob afirmou em entrevistas que era mais talentoso que Paul McCartney e Bob Dylan. Humilhados pela revelação de que não passavam de impostores, os dois modelos tiveram de devolver o Grammy. Rob morreria em 1998, de overdose de drogas e álcool, depois de passar alguns meses na cadeia por roubo. Fab continuaria cantando e lançando discos, mas sem o sucesso que obteve na época do Milli Vanilli.

Embora seja segredo de alguns poucos, o Brasil também teve seu Milli Vanilli: os primeiros discos dos Los Maneros, um trio pop formado em São Paulo nos anos 80 e que fez muito sucesso em programas de tevê, foram quase todos gravados pelos Carbonos. E uma pessoa que esteve presente em sessões de gravação dos discos dos grupos Blitz e Sempre Livre garante que boa parte deles foi executada pelo Roupa Nova.

por André Barcinsky

piauí

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